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Estado e Judicialização da política.

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Agenda 31/08/2024 às 10:15

 

Resumo: O termo "judicialização da política" indica que pode haver algo errado e que a fronteira entre os Poderes está se borrando, algo que não deveria acontecer. A origem do termo repousa no estranhamento. A Constituição Federal brasileira de 1988, que propiciou todo um terreno institucional, que promove essa interação, explica. Assim, o controle e as decisões caracterizadas como interferência ou judicialização não ocorrem, na maioria das vezes, por voluntarismo dos juízes ou porque os políticos têm o poder de recorrer ao Judiciário, mas porque a própria Constituição desenhou isso. Além disso, o Supremo Tribunal Federal tem o poder de controlar a constitucionalidade das leis aprovadas pelo Parlamento e o de aprovar, questionar e cobrar políticas propostas pelo Poder Executivo, exercendo enorme influência sobre políticos (deputados, senadores, prefeitos, governadores e até mesmo presidentes).

Palavras-chave: Direito Constitucional. Constituição Federal brasileira de 1988. Direitos Fundamentais. Estado de Direito. Liberdades e garantias constitucionais.

 

 

O Estado de Direito em sua acepção clássica por uma abrangente pretensão que é a de que todo o âmbito estatal esteja presidido por normas jurídicas, que o poder estatal e a atividade por este desenvolvida se ajustem ao que é imposto e determinado pelas prescrições legais.

Uma vez obtida a vigência da referida fórmula, pretendeu-se tornar o seu alcance mais exato, afirmando-se que através desta o Direito seria respeitoso com as liberdades individuais tuteladas pela Administração Pública.

Segundo Friedrich Von Hayek[1] ressaltou a previsibilidade das condutas firmada pela normatividade estabelecida, de modo que os indivíduos possam pautar por estas sua liberdade de agir. 

A característica que mais claramente distingue um país livre de um país submetido a um governo arbitrário é a observância, no primeiro, dos grandes princípios[2] conhecidos como o Estado de Direito.

Deixando de lado os termos técnicos, isso significa que todas as ações do governo são regidas por normas previamente estabelecidas e divulgadas-as quais tornam possível prever com razoável grau de certeza de que modo a autoridade usará seus poderes coercitivos em dadas circunstâncias, permitindo a cada um planejar suas atividades individuais com base nesse conhecimento.

Assim, um governo submetido ao Estado de Direito seria o contrário de um governo arbitrário. A elaboração pelo Estado de normas fixas, claras e estáveis seria o único meio que teriam os indivíduos de não serem submetidos às incertezas do imprevisível.

Observa-se que tal formulação clássica é insuficiente para a conformação da ideia de um Estado de Direito. Um Estado de Direito desse tipo seria compatível com um regime autoritário zeloso da disposição livre dos assuntos individuais e assecuratório de um grau de segurança e certeza para os cidadãos.

No regime nacional-socialista, por exemplo, o homem é garantido em seu “vínculo social”. O Direito se dirige ao homem não como pessoa individual, isolado como indivíduo, mas como pessoa concreta, como empresário, como trabalhador, empregado ou representante de comércio etc.

O Direito registra a atuação humana em suas relações sociais, em seu papel social. O indivíduo se caracteriza pelo pertencimento a uma determinada comunidade de raça e sangue e tem nelas garantidas suas funções individuais e sociais, como empresário, obreiro, arrendador, arrendatário, empregado etc.

Seu papel social e sua função social (determinada pelos deveres inerentes ao seu papel social) são ressaltados e assegurados pelo Direito. Assim, um regime autoritário não obstante, é capaz de assegurar um critério uniforme de aplicação do Direito consoante a lei, ainda que autoritariamente elaborada (tem um critério legal do justo e do injusto) e é assecuratório da previsibilidade das condutas (compreendida nos valores maiores da comunidade).

O Estado Liberal de Direito caracteriza-se pela difusão da ideia de direitos fundamentais, da separação de poderes, bem como, do império das leis, próprias dos movimentos constitucionalistas que impulsionaram o mundo ocidental a partir da Magna Charta Libertatum de 1215[3].

No Estado Liberal[4], há uma nítida divisão bem evidente entre o que é público, ligadas ao Estado (direitos à comunidade estatal: a cidadania, segurança jurídica, representação política etc.) e o privado (a vida, liberdade, individualidade, propriedade, mercado de trabalho, econômico e emprego).

Essa separação dicotômica (público/privado) era garantida por intermédio do Estado, que lançando uso do Império das Leis, garantia a certeza das relações sociais por meio do estrito exercício da legalidade.

Portanto, havendo a definição do espaço privado e do espaço público, o indivíduo guiado pelo ideal da liberdade busca no espaço público a possibilidade de materializar as conquistas implementadas no âmbito do Estado que assume a feição de não interventor.

E, assim, na busca de interesses próprios, procura encontrar a sobrevivência e a felicidade, por isso, o Estado tem por propósito garantir as liberdades individuais necessárias a esse empreendimento personalíssimo. Verifica-se, portanto, que o Estado de Direito é caracterizado por um ser Estado Mínimo[5], objetivando acautelar apenas a ordem social e a segurança pública.

E, nesse sentido, lecionou Canotilho com sua peculiar clareza solar, in verbis:

       "(...) o Estado de direito é um Estado liberal no seu verdadeiro sentido. Limita-se à defesa da ordem e segurança públicas (“Estado polícia”, “Estado gendarme”, “Estado guarda nocturno”), remetendo-se os domínios económicos e sociais para os mecanismos da liberdade individual e da liberdade de concorrência. Neste contexto, os direitos fundamentais liberais decorriam não tanto de uma declaração revolucionária de direitos, mas do respeito de uma esfera de liberdade individual. Deve o Estado, por meio do direito posto, garantir a certeza nas relações sociais, através da compatibilização dos interesses privados de cada um com o interesse de todos, mas deixar a felicidade ou a busca da felicidade nas mãos de cada indivíduo, rompendo-se, via de consequência, com a anterior concepção de Estado (pré-moderno), no qual, até a felicidade dos indivíduos era uma atribuição estatal".

Enfim, a igualdade de todos diante da lei é consagrada e, formalmente, todos são iguais perante a lei, ou são iguais no sentido de todos se apresentarem agora como proprietários, no mínimo, de si próprios e, assim, formalmente, todos devem ser iguais perante a lei, porque proprietários, sujeitos de direito, devendo-se pôr fim aos odiosos privilégios de nascimento e status social.

Anteriormente, os indivíduos que no passado eram coisificados, tornados objetos, doravante contam com a elevação de sua dignidade pessoa e alçado à sujeitos de direitos, mormente, com a realização de contratos, compra e venda de sua força de trabalho.

Consagra-se a vida, a liberdade e a propriedade como valores máximos. E, por outro viés, no âmbito da esfera pública, convencionam-se direitos perante o Estado e direitos à comunidade estatal, seja na qualidade de seu status de membro, igualdade perante a lei, certeza e segurança jurídicas, tutela jurisdicional, segurança pública e direitos públicos etc.

Verifica-se que o constitucionalismo moderno surge com o tema central da fundação e legitimação do poder político, bem como a constitucionalização das liberdades.

Enfim, propõe-se impor limites ao Leviatã[6] (idealizado por Hobbes)[7] e garantir os direitos individuais.  Para que se configure um verdadeiro Estado de Direito é necessário mais requisitos do que a, por si só importante, submissão à lei.

A lei não pode ser qualquer modalidade de lei, mas sim aquela que conta com o assentimento dos governados (além disso, aquela que se elaborou com a participação deles).

Também não caracteriza simplesmente o Estado de Direito a simples enunciação de um sistema político com divisão de poderes, mas sim que existam sistemas de controle que respeitem e garantam efetivamente os direitos e as liberdades fundamentais.

Em outras palavras, deve existir um substrato mínimo material para todos assecuratório dos direitos e das liberdades fundamentais. Se de um lado o homem alcançou o ideal de liberdade em face do Estado, mormente com a implementação de um documento formal que lhe garantia formalmente uma gama de direitos individuais, por outro, essa garantia reduzia-se ao campo meramente formal, pois, no paradigma constitucional do Estado Liberal de direito, a condição humana não melhorou muito em relação à noção pré-moderna.

Lembremos que o paradigma liberal é marcado pela grande expansão capitalista e, assim, pela grande exploração do homem pelo homem, o que ocasionou a miséria, a fome e profundas desigualdades sociais, nos aponta que a concretização de igualdade se apresentava como distante, tendo em vista a omissão do Estado perante os problemas econômicos e sociais.

O individualismo dos séculos XVII e XVIII que fora corporificado no Estado Liberal e a omissão do Estado diante dos problemas sociais e econômicos conduziu os homens a um capitalismo desumano e escravizador. O século XIX conheceu desajustamentos e misérias sociais que a Revolução Industrial[8] agravou e que o Liberalismo deixou alastrar em proporções crescentes e incontroláveis.

Combatida pelo pensamento marxista e pelo extremismo violento e fascista, a liberal-democracia viu-se encurralada. O Estado não mais podia continuar se omitindo perante os problemas sociais e econômicos.

No Brasil do final do século XX, a questão da implementação plena das bases do Estado de Bem-Estar Social continua sendo um tema polêmico. Não obstante, a cultura jurídica e as práticas de aplicação do direito apresentam, nas últimas duas décadas, modificações significativas que a aproximam às características do Direito Social, base de sustentação jurídica e política do Estado-Providência.

Com o aumento da complexidade do Estado e o surgimento dos novos grupos e atores sociais, fruto da atuação acentuada dos movimentos sociais no final da década de 70, é comum no campo da Sociologia do Direito a observação de que o modelo liberal, no qual se embasava o exercício da magistratura, entrou definitivamente em crise, determinando a erosão da legitimação clássica da atuação dos juízes.

Em termos empíricos, essa constatação é comprovada pelo alto índice de resolução de conflitos por vias extrajudiciais que, de acordo com os dados obtidos por José Eduardo Faria, em 1983 e 1988, foi de 67%. Também nos anos noventa, os sociólogos Maria Tereza Sadek e Rogério Bastos Arantes, em análise dos dados obtidos pelo IBGE, demonstram que esse índice continua o mesmo.

Verifica-se, naquele período, a perda da importância do sistema judicial na resolução dos conflitos e o incremento de mecanismos privados de solução de litígios de caráter antissocial, tanto entre as camadas mais pobres da população, com o extermínio de moradores de rua, como entre as mais ricas, que, valendo-se de seu poder econômicos, nem sempre se submetem à normatividade estatal.

Foi consagrado no âmbito constitucional brasileiro, a partir da Carta de 1988, o elenco de direitos de natureza coletiva (direitos de moradia, educação, saúde e trabalho), cuja positivação repercutiu na mudança do modelo liberal e positivista de produção e aplicação do direito.

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A natureza diversa dos direitos sociais, em comparação com os direitos individuais, decorre do fato daqueles não serem somente normas como um a priori formal, mas porque possuem um sentido promocional prospectivo que pressupõe a implementação de políticas públicas.

A ordem liberal[9] é colocada em xeque com o surgimento de ideias socialistas, comunistas e anarquistas, que a um só tempo, animam os movimentos coletivos de massa cada vez mais significativos e neles reforça com a luta pelos direitos coletivos e sociais.

Com o desenvolvimento do movimento democrático e o surgimento de um capitalismo monopolista, o aumento das demandas sociais e políticas, além da Primeira Guerra Mundial, abrolha-se a crise da sociedade liberal, possibilitando o surgimento de uma nova fase do constitucionalismo (agora social) com alicerce na Constituição da República de Weimar, e em razão disso, inaugura-se o paradigma constitucional do Estado Social de Direito ou Welfare State.

Em “Política Social”, escrito em 1965, Marshall procura dar conta da origem do Estado Social de Direito na Inglaterra, bem como de sua evolução no pós-guerra, notadamente na década de cinquenta e início da década de sessenta.

Para o doutrinador, o Estado Social de Direito naquele país tem início em meados da era Vitoriana, qual seja, no último quartel do século XIX. Era de prosperidade e confiança, teria marcado o início da adoção de medidas de política social:  leis de assistência aos indigentes, leis de proteção aos trabalhadores da indústria, medidas contra a pobreza etc. Em tais medidas, estaria o embrião daquilo que, mais tarde, após a Segunda Grande Guerra, seria conhecido como welfare state.

A razão para o surgimento destas medidas, as quais legariam à sociedade inglesa do século XX um aparelho estatal administrativamente preparado para garantir o bem-estar social a seus cidadãos, está no impulso dado às sociedades pela industrialização.

Uma vez reharmonizada e readaptada ao novo “modo de vida”, após a pacificação dos conflitos que haviam acompanhado a origem da produção em escala industrial, a sociedade inglesa abraçou essa tarefa de desenvolver suas potencialidades (e) colocou em movimento forças inerentes ao próprio sistema que levaram, por processos lógicos e naturais, à sua transformação em algo totalmente imprevisto e incomum.

Este é um conceito central nesta explanação: a origem e desenvolvimento do Estado Social de Direito fazem parte de um processo que é definido fundamentalmente pela evolução lógica e natural da ordem social em si mesma (MARSHALL, Thomas H. Política Social. Rio de Janeiro: Zahar, 1967).

Estado Social de Direito nasce com base na concepção de que existem direitos sociais indissociáveis à existência de qualquer cidadão.

Segundo esta concepção, todo o indivíduo tem o direito, desde seu nascimento, a um conjunto de bens e serviços que devem ser fornecidos diretamente através do Estado, ou indiretamente, mediante seu poder de regulamentação sobre a sociedade civil.

Esses direitos contemplam cobertura de saúde e educação em todos os níveis, auxílio ao desempregado, garantia de uma renda mínima, recursos adicionais para sustentação dos filhos etc.

 De acordo com a doutrinadora Sônia Draibe, são características comuns das definições de Welfare State as seguintes:

   • a tendência do Estado de modificar o livre funcionamento do mercado;

   • o princípio de substituição do rendimento em caso de perda temporária ou definitiva da capacidade de obtê-lo, para a prevenção dos riscos próprios inerentes à economia de mercado (velhice, doenças, maternidade, desemprego);

   • a garantia, mesmo para os excluídos do mercado de trabalho, de uma renda mínima a um nível considerado suficiente para a satisfação das necessidades sociais e culturais essenciais.

O Estado Social de Direito procura equilibrar as relações econômicas e sociais, pois já estava superada àquela ideia de que a simples normatização de leis pudesse garantir a efetividade dos direitos fundamentais de liberdade, igualdade e propriedade.

Analisando sob o paradigma social, o Estado empenha-se por materializar os direitos individuais, considerados fundamentais, consagrados pelas Declarações e Constituições.

Ex positis, o Estado tem por objetivo principal assegurar aos indivíduos os direitos sociais, preocupando-se, por conseguinte, em garantir à coletividade “uma ordem jurídica materialmente justa”.

Neste contexto, o Welfare State seria uma tentativa de compensar os novos problemas criados por estas sociedades. Assim, a emergência dos Estados de Bem-Estar não apenas não representa uma mudança estrutural das sociedades capitalistas, mas seria essencialmente uma resposta funcional a seu desenvolvimento:

O Welfare State não pode lidar diretamente com as necessidades humanas fundamentais; ele pode apenas tentar compensar os novos problemas que são criados na vaga do crescimento industrial.

Nas palavras de Offe, o desenvolvimento do capitalismo gera problemas sociais, tais como: necessidade de moradia para os trabalhadores concentrados pela indústria, necessidade de qualificação permanente da força de trabalho, desagregação familiar etc. Ou seja, em seu desenvolvimento, o capitalismo destrói formas anteriores de vida social (ou instituições sociais), gerando disfuncionalidades, as quais se expressam sob a forma de problemas sociais.

O Welfare State representa, portanto, formas de compensação, um preço a ser pago ao desenvolvimento industrial.

O Welfare State é um desdobramento necessário da dinâmica de evolução destas sociedades, uma vez que há pequena margem para escolhas. Isto é, segundo o doutrinador, a emergência de programas sociais não é resultado de escolhas, porque as alternativas de políticas são pequenas.

São as condições econômicas e sociais que determinaram a emergência do Welfare State, e não opções feitas no campo do político:

   “(...) padrões ideológicos não são apenas ausentes, mas eles seriam inaplicáveis mesmo se existissem, porque a margem para políticas alternativas “viáveis” é muito pequena para permitir escolhas baseadas em princípios. É exatamente esta situação que melhor descreve o desenvolvimento do Welfare State.

Plataformas dos partidos e resultados eleitorais parecem não ter influência na percentagem do orçamento estatal que é gasto para fins de Welfare ou em novos programas de Welfare que são criados.

Muito mais importantes como determinantes das políticas (“policies”) são variáveis econômicas tais como o crescimento da produtividade, a extensão da mobilidade social, o nível tecnológico das indústrias básicas, o tamanho e composição da força-de-trabalho, a estrutura de idade da população e outros indicadores macroeconômicos e macrossociológicos”.

 Claus Offe negou explicitamente determinantes de ordem política na emergência dos programas sociais, dizendo que a decisão política no Welfare State está fadada a ser bastante reduzida. Ao contrário, aqueles programas expressam a natureza do Welfare State, qual seja, um contínuo processo de adaptação aos problemas sociais postos pelo desenvolvimento do capitalismo.

Compreende-se que o Estado Social de Direito ou Welfare State como um aspecto funcional do desenvolvimento do modo de produção capitalista, em que os programas sociais seriam fundamentalmente uma forma de corrigir/compensar disfuncionalidades, expressas no plano social, da operação do sistema capitalista.

 Verifica-se o Estado assumindo atividades privadas, exercidas, antes, somente pelo particular, vê-se, aqui, então, o nascimento dos direitos sociais, que redefiniram os conceitos de igualdade e liberdade.

 O Estado social e democrático de direito caracteriza-se pela constitucionalização das relações de classe. Exemplos empíricos dessa juridicização são as garantias trabalhistas e de seguridade social.

E, essa onda de juridicização, como nas etapas anteriores, obedece a uma tentativa de equilibrar em termos jurídicos a disputa que ocorre no âmbito da ação.

E, nesse caso, as normas jurídicas têm a função de manter, em níveis razoáveis, o conflito entre classes sociais. Ora, a função específica das garantias oferecidas pelo Estado democrático e social é absolver os efeitos externos de uma produção baseada na mão-de-obra assalariada.

 No paradigma do Estado Social de Direito que amplia suas funções, vez que intervém nas esferas privadas para garantir a efetividade dos direitos sociais. Tem-se, portanto, uma ideia de tutela do Estado ao cidadão, pois aquele passa a estar presente em todos os setores da vida humana, transformando-se no centro da vida política, jurídica, social e econômica.

 A preocupação do Estado em materializar os direitos enseja novos métodos de interpretar o texto normativo, nos quais permite ao juiz uma maior liberdade quando construir uma decisão. Assim, não mais se admite uma interpretação na qual fica o julgador adstrito à literalidade da norma, faz-se necessário, por conseguinte, uma interpretação que atualize o texto da lei:

 (...) ao Estado social de direito (Welfare State) interessam as lacunas da lei para o juiz livremente decidir habilidosamente em parâmetros de conveniência (Common Law)[10] os conflitos que possam colocar em desequilíbrio o sistema social a ser mantido em suas bases de tradição e autoridade.

O Estado Social de Direito, no entanto, não consegue, seja no plano fático, seja no plano epistemológico, cumprir suas ambiciosas promessas. No plano fático a extensão de direitos sociais a todos, com os crescentes custos das prestações sociais positivas como encargo do Estado logo se mostram inviáveis de serem asseguradas com a extensão preconizada

Essa inviabilidade fática do atendimento das prestações sociais positivas preconizadas acarreta a chamada ineficácia dos direitos sociais. No plano epistemológico, sob a ótica do paradigma social, os conflitos, sociais e econômicos, devem ser pacificados a qualquer custo pelo Estado-juiz, ainda que não observe os preceitos fundamentais dispostos na Constituição brasileira vigente.

Neste aspecto, as decisões judiciais não têm amparo constitucional, vez que são fundamentadas em “fins metajurídicos de justiça[11] ou clamor social”.

Assim sendo, o direito não contempla com os requisitos de legitimidade e validade, qual seja, positivação e fundamentação (observância aos princípios constitucionais). Se os direitos sociais não podem ser extensíveis a todos, embora sejam formalmente assegurados, ao juiz cabe decidir, discricionariamente, a quem serão concedidos (àqueles que têm condição de acessar efetivamente o Judiciário), aprofundando-se a crise de legitimidade de tais direitos sociais.

 Portanto, o Estado Social de Direito[12] também não pode ser considerado um verdadeiro Estado de Direito. Só pode ser considerado um Estado de Direito aquele no qual sejam assegurados com efetividade a participação política na formação da vontade do Estado e os direitos e liberdades fundamentais.

Se os indivíduos são alienados de tal participação por um paternalismo da estrutura social, política e jurídica do próprio Estado que passa a tutelar tais interesses individuais e se os direitos sociais considerados fundamentais não podem ser assegurados pela inexequibilidade de sua excessiva abrangência, não há que se cogitar também aqui em Estado de Direito efetivo.

O exame do terceiro paradigma de Estado de Direito que procura dar conta desse paradoxo que é o chamado Estado Democrático de Direito[13]. A perspectiva mais consentânea do Estado Democrático de Direito é aquela que o define como uma nova análise dos institutos jurídicos constitucionais dos Estados anteriores, implicando em uma redefinição de Estado perante a ordem constitucional.

No Estado Social de Direito as decisões judiciais ficavam ao arbítrio do julgador. Ao juiz, de acordo com seus conceitos de justiça, bem-estar coletivo e paz social, caberia proferir as decisões, ainda que não amparada pelos princípios constitucionais.
Os princípios constitucionais foram, não poucas vezes, desrespeitados/inobservados (olvidados), pois a decisão resultava das convicções íntimas e subjetivas do julgador.

Diante disto, os indivíduos perceberam que não mais poderiam entregar toda a sua busca pela felicidade a um Estado Soberano, o qual aparece como macrossujeito abarcador de uma hipotética unidade cívica.

Uma nova definição de Estado se impunha, definição está na qual a ótica democrática fosse a vertente primordial da construção e da realização do Direito.

Este novo paradigma de Estado, o democrático, requer um modelo de sociedade aberta com uma teoria discursiva do Direito. Neste sentido, os partícipes da procedimentalidade instaurada são responsáveis pela construção da decisão.

No Estado Democrático de Direito, os cidadãos participam discursivamente na elaboração da decisão, são, pois, ao mesmo tempo, autores e destinatários do provimento final.

O império da lei, o controle jurídico do poder estatal e a segurança frente à arbitrariedade são os traços definitórios do Estado Democrático de Direito.

São, portanto, assim delimitadas as características mais básicas e indispensáveis a todo Estado Democrático de Direito:

 a) império da lei: lei como expressão da vontade geral;

 b) divisão de Poderes: executivo, legislativo e judiciário;

 c) legalidade da Administração: atuação segundo a lei e sufi ciente controle judicial;

 d) direitos e liberdades fundamentais: garantia jurídica formal e efetiva realização material.

O paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito, somente é legítimo o provimento final se construído por todos os partícipes envolvidos no procedimento, devendo este espaço procedimental ser orientado pelos princípios do sistema democrático.

Segundo Habermas:

 “(...) o princípio da democracia pressupõe preliminarmente a possibilidade da decisão racional de questões práticas, mais precisamente, a possibilidade de todas as fundamentações, a serem realizadas em discursos (e negociações reguladas pelo procedimento), das quais depende a legitimidade das leis.

(...) Partindo do pressuposto de que uma formação política racional da opinião e da vontade é possível, o princípio da democracia simplesmente afirma como esta pode ser institucionalizada – através de um sistema de direitos que garante a cada um igual participação num processo de normatização jurídica, já garantindo em seus pressupostos comunicativos.

(...) o princípio da democracia refere-se ao nível da institucionalização externa e eficaz da participação simétrica numa formação discursiva da opinião e da vontade, a qual se realiza em formas de comunicação garantidas pelo direito.

Portanto, no âmbito daquilo que se denomina um direito pós-positivista, no dizer de Luís Roberto Barroso, uma compreensão do direito que se apresenta: como uma terceira via entre as concepções positivista e jusnaturalista: não trata com desimportância as demandas do Direito por clareza, certeza e objetividade, mas não o concebe desconectado de uma filosofia moral e de uma filosofia política.

Contesta, assim, o postulado positivista de separação entre Direito, moral e política, não para negar a especificidade do objeto de cada um desses domínios, mas para reconhecer que essas três dimensões se influenciam mutuamente também quando da aplicação do Direito, e não apenas quando de sua elaboração.

No conjunto de ideias ricas e heterogêneas que procuram abrigo nesse paradigma em construção, incluem-se a reentronização dos valores na interpretação jurídica, com o reconhecimento   de normatividade aos princípios e de sua diferença qualitativa em relação às regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre a dignidade   da pessoa humana.  Nesse ambiente, promove-se uma reaproximação entre o Direito e a Ética[14]”.

Em que medida, porém, a quarta característica dos princípios do Estado Democrático de Direito na lição de Elias Díaz, a efetiva realização material dos direitos e liberdades fundamentais compõe a realização concreta do Estado Democrático de Direito? Todos os direitos prestacionais abarcados nas Declarações de Direitos devem ser efetivados para que se possa cogitar na materialização do Estado Democrático de Direito? Como garantir tal desiderato, se, por vezes, os exercícios dos direitos prestacionais são contraditórios entre si?

Este é o problema do Estado Democrático de Direito e nessa acepção é que seu conceito se conecta com a chamada judicialização da política.

O IBGE em 2024 concluiu que a população brasileira chegou a 212, 6 milhões. Somos muitos e diversos. O que requer alinhamento de políticas públicas e sociais para atender a população com concentração grande em quinze cidades, com mais de um milhão de habitantes e treze destas capitais tais como Rio de Janeiro e São Paulo.

O Brasil é assimétrico na distribuição da população em seu território. Sendo importante que possamos solver e concretizar os direitos fundamentais com previsão constitucional vigente.

As Políticas Públicas no Brasil são comumente categorizadas em políticas sociais, econômicas e ambientais. As políticas sociais se concentram em melhorar a vida das camadas marginalizadas e desfavorecidas da sociedade, como famílias de baixa renda, pessoas com deficiência, moradores de favelas e grupos indígenas.

No Brasil, várias políticas estão em vigor nas mais diversas áreas, como desenvolvimento social, educação e meio ambiente. Por exemplo, existem leis que tratam sobre preservação ambiental como a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente.

Nas áreas da educação há programas destinados à inclusão social, como o programa Educação Inclusiva: Direito à Diversidade e o programa Incluir.[15] Essas políticas proporcionam benefícios para os cidadãos brasileiros, além de contribuir para o desenvolvimento e o futuro do país como um todo.

A assim chamada judicialização da política (e das relações sociais) pode ser definida como uma nova tendência da democracia contemporânea, própria do sistema democrático procedural, caracterizada por uma política de direitos, pela pressão dos grupos de interesses no jogo democrático e, primordialmente, pelo ativismo judicial.

Diante da ineficácia do Estado Social de Direito e de sua incerteza na alocação social dos recursos o Poder Judiciário transforma-se em um espaço público de solução de conflitos e de distribuição da justiça:

Uma economia de mercado aberto descentraliza os fóruns de resolução de disputa. Enquanto o governo era o grande investidor nas sociedades latino-americanas, que controlava os preços, os sindicatos e a maioria dos empregos, os partidos políticos e as instituições do Executivo e Legislativo eram os fóruns mais importantes onde se colocavam as expectativas e as soluções dos conflitos entre os grupos sociais.

Os conflitos mais importantes que surgem hoje em dia na América Latina normalmente não acabam mais em exigências para o governo mudar o modo como os benefícios sociais são distribuídos. Ao contrário, os agentes privados se confrontam no mercado ou nos tribunais.

[...] Durante o século XX na América Latina, os governos, os partidos políticos e várias instituições públicas usaram a linguagem da justiça social e da dignidade humana.

Os não-privilegiados aprenderam por mais de cinquenta anos como se integrar à sociedade e conseguir hoje esses canais políticos perderam muito de seu peso.

O Judiciário, que com certeza não tem sido na tradição latino-americana um fórum importante para os não-privilegiados apresentarem as suas reivindicações, pode tornar-se, finalmente, sob as novas condições, um lugar importante para integrar a justiça social.

Esse novo papel do Poder Judiciário na democracia traz, no entanto, contradições no que se refere à concretização do conceito de Estado Democrático de Direito.[16]

O Judiciário[17], nos tempos contemporâneos[18], não pode se propor a exercer função apenas jurídica, técnica, secundária, mas deve exercer papel ativo, inovador da ordem jurídica e social, visto que é chamado a contribuir para a efetivação dos direitos sociais, procurando dar-lhes sua real densidade e concretude.

Esse conceito se ampara na materialidade de todos os direitos e garantias fundamentais, inclusive, também, na efetivação dos direitos sociais, como garantia da realização da igualdade entre os indivíduos?

Para saber se estamos ou não diante de um Estado Democrático de Direito tem-se que os direitos são garantias fundamentais em um Estado de Direito que devem ser compreendidos, a um só tempo, de forma holística, em um sentido histórico, e restritos em sua abrangência.

Deve-se com devida análise histórica da evolução do Estado se constatar que o seu elemento primordial do Estado de Direito é a certeza e segurança dos cidadãos quanto à atuação do poder político.

Enfim, trata-se do princípio da limitação e do controle do poder. É a prevenção da arbitrariedade e do abuso de poder, vinculando o poder na sua atuação ao Direito. A divisão dos poderes (funções do Estado) se apresenta então, historicamente, como o meio mais eficaz para evitar um uso arbitrário das faculdades que as leis outorgam aos poderes públicos.

 Nesse mesmo diapasão, de limitação e controle do poder, se incluem, segundo Karl Larenz, a inadmissibilidade das leis retroativas (mormente em direito penal, nulla poena sine lege), a vinculação da Administração ao Direito e a concessão a todos os cidadãos de uma ampla tutela jurídica. Acrescentem-se, ainda os princípios processuais do Estado de Direito: a imparcialidade do juiz e o princípio do contraditório e ampla defesa.

A abrangência dos direitos em um Estado Democrático de Direito está condicionada a esse papel de garantia da submissão dos poderes ao império da lei e de limitação do poder do Estado.

Conforme assinalou Benjamin Constant o “objetivo de los modernos es la seguridad de los disfrutes privados, y llaman libertad a las garantías concedidas por las instituciones a esos disfrutes”.

 Deste modo, em um conceito de Estado Democrático de Direito que tenha efetividade e não seja uma quimera simplesmente programática, a materialidade dos direitos prestacionais deve ser aquela necessária para a segurança dos desfrutes privados, alcançáveis pelos indivíduos de maneira autônoma.

 Portanto, o Estado de Direito não pode ser delimitado somente como aquele que garante a liberdade de um ponto de vista formal, o império da lei, nem, por outro lado, como um Estado igualitário onde a liberdade de escolha de cada cidadão acerca do seu próprio projeto de vida, não esteja assegurada.

Há que se fazer assim uma delimitação conceitual. Para que exista um Estado Democrático de Direito[19] é necessário que existam as condições políticas para que todos, inclusive o Estado, estejam efetivamente submetidos ao Direito e o controle do poder político deste esteja assegurado. Isso envolve direitos políticos e liberdades e as condições materiais assecuratórias para o exercício de tais liberdades.

Esse Estado de Direito não se confunde, entretanto, com um Estado prestacional[20]. A excessiva intervenção estatal, com fins igualitários, pode, em determinadas circunstâncias, em perigo a liberdade. Do mesmo modo, as liberdades, sem um marco de igualdade de oportunidades sociais e econômicas se convertem em fórmulas vazias.

O Estado Democrático de Direito deve ser, primordialmente, uma forma de organizar o Estado onde todos tenham a potencialidade de se expressar e influir na formação da vontade política desse Estado.

A partir daí, adentramos no campo da decisão democrática dos cidadãos acerca de uma modalidade mais social ou mais liberal de Estado de Direito, o campo por excelência da judicialização da política.

Compreender o campo da judicialização da política, significa entender, com Amartya Sem, que a maioria das discussões sobre a desigualdade se concentra em torno da desigualdade de renda, o que acaba por não explicar toda a extensão da desigualdade real de oportunidades.

Aquilo que as pessoas podem ou não fazer ou realizar não depende exclusivamente de suas rendas, mas também de inúmeras características físicas e sociais que acabam por afetar suas vidas.

Para Amartya Sen os homens apresentam necessidades diferentes e a simples igualdade de renda ou de bens primários falha ao tratar a variação destas necessidades como iguais.

Ao tentar buscar uma explicação sobre as inúmeras variáveis que afetam a nossa igualdade de bem-estar ou satisfação de necessidades, o doutrinador vai além da ideia de renda e busca mostrar como estas variáveis afetam a vida que podemos levar e a liberdade que podemos desfrutar.

Embora níveis de salário e remuneração façam parte da análise da desigualdade, eles não esgotam toda a questão. Um exemplo disso são as diferenças entre as liberdades desfrutadas por ambos os sexos em diferentes regiões, ou seja, na divisão de atividades desenvolvidas dentro das famílias, educação recebida, e liberdades permitidas dentre os diferentes membros componentes da mesma família.

Amartya Sen nos mostra que é a incapacidade de adquirir bens e não os bens em si mesmos que contribuem para a fome e a desigualdade.

Neste sentido, a explicação em torno da diferença de funcionamentos e da desigualdade de capacidades (por exemplo, escapar de doenças, evitar mutilações no corpo, ser livre para buscar carreiras independentes etc.), deve ser apreciada fugindo da questão da discussão em torno de renda recebida, bens primários e recurso recebidos por integrantes de uma mesma família:

Desenvolver capacidades é assim, fundamental, para atingir o desiderato da felicidade dos indivíduos, mas não se confunde com a ideia de um Estado Democrático de Direito.

Portanto, um conceito mais delimitado de Estado de Direito no plano jurídico-político é perfeitamente compatível e desejável com a realização de um Estado Social de Direito, mas não se confunde com ele.

É no campo da judicialização da política, compreendida em senso amplo, que se articula a realização das tarefas sociais que hoje se consideram imprescindíveis para uma vida humana digna, compatível com o pleno desenvolvimento das capacidades das pessoas: segurança social, educação básica, proteção frente ao desemprego, cuidados sanitários e pensões mínimas[21].

O paradigma contemporâneo do Estado Democrático de Direito se  caracteriza por ser um Estado de Direito em um contexto pós-positivista,  marcado por uma reentronização dos valores na interpretação jurídica, com o  reconhecimento de normatividade aos princípios e de sua diferença qualitativa em  relação às regras; pela reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica;  pela formação de uma nova hermenêutica; e pelo desenvolvimento de uma teoria  dos direitos fundamentais[22] edificada sobre a dignidade da pessoa humana.

 

 

 

Referências

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Sobre a autora
Gisele Leite

Professora universitária há três décadas. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Pesquisadora - Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Presidente da Seccional Rio de Janeiro, ABRADE Associação Brasileira de Direito Educacional. Vinte e nove obras jurídicas publicadas. Articulistas dos sites JURID, Lex Magister. Portal Investidura, Letras Jurídicas. Membro do ABDPC Associação Brasileira do Direito Processual Civil. Pedagoga. Conselheira das Revistas de Direito Civil e Processual Civil, Trabalhista e Previdenciária, da Paixão Editores POA -RS.

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