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As Múltiplas Faces da Vulnerabilidade Social: Desigualdade de Gênero, Mercado de Trabalho e os Desafios da Previdência

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Agenda 07/10/2024 às 17:59

As Múltiplas Dimensões da Vulnerabilidade Social: Uma Perspectiva Multidimensional

A vulnerabilidade social deve ser compreendida como um conceito dinâmico e relacional, que vai além de fatores como a pobreza ou a carência material. A condição de vulnerabilidade não pode ser interpretada de forma unidimensional, pois está atrelada a diversas formas de exclusão social e privação, resultantes de fatores como gênero, raça, classe social, idade e deficiência. A interação desses elementos configura o que se chama de interseccionalidade, um conceito que ajuda a entender como múltiplas formas de desigualdade se sobrepõem, agravando a condição de certos grupos sociais.

Esse conceito é central para compreender que a vulnerabilidade social não é uma condição natural de determinados grupos, mas sim o produto de relações estruturais e históricas que produzem desigualdade. Como afirma Misztal (2011), a vulnerabilidade está intrinsecamente ligada à condição humana, sendo inevitável em determinados aspectos. No entanto, as formas como as desigualdades sociais, econômicas e políticas são organizadas amplificam os efeitos dessa vulnerabilidade, especialmente para determinados grupos marginalizados, como mulheres, negros, idosos e pessoas com deficiência.

A Interseccionalidade e a Ampliação da Vulnerabilidade Social

A teoria da interseccionalidade, proposta por Kimberlé Crenshaw (1991), torna-se fundamental para o entendimento das múltiplas dimensões da vulnerabilidade social. Esse conceito reconhece que as formas de discriminação e opressão não ocorrem de forma isolada, mas interagem, criando sistemas de desigualdade que afetam de maneira diferenciada grupos específicos. No caso das mulheres negras, por exemplo, a combinação de racismo e sexismo resulta em formas únicas de vulnerabilidade, o que leva à exclusão tanto do mercado de trabalho formal quanto dos sistemas de proteção social.

Esse ponto é corroborado por Hooks (2000), que argumenta que a opressão das mulheres negras não pode ser analisada exclusivamente pelo viés do gênero, ignorando as questões de raça e classe que também as afetam. A interseccionalidade permite identificar como as políticas públicas e os sistemas sociais tratam de maneira desigual grupos que estão em posições de maior vulnerabilidade. No caso das mulheres, especialmente as de classes mais baixas e negras, há uma sobrecarga de funções, principalmente relacionadas ao trabalho doméstico e ao cuidado, que historicamente são desvalorizadas e invisibilizadas pelo Estado e pela sociedade.

Essa sobrecarga de trabalho, que frequentemente é não remunerada ou sub-remunerada, contribui diretamente para a vulnerabilidade econômica dessas mulheres. O trabalho de cuidado, apesar de ser essencial para o funcionamento da sociedade, não é considerado uma atividade produtiva no sentido econômico, o que resulta em uma exclusão estrutural dessas mulheres dos benefícios oferecidos pelo mercado de trabalho formal e pelo sistema previdenciário. Como consequência, elas ficam mais expostas a riscos sociais, como a pobreza na velhice, visto que suas contribuições à economia doméstica e familiar não são reconhecidas de maneira oficial.

O Papel das Desigualdades Sociais na Ampliação da Vulnerabilidade

As desigualdades sociais também ampliam o impacto da vulnerabilidade, de modo que certos grupos enfrentam maior risco de exclusão e privações. Segundo Mitchell (2020), a vulnerabilidade deve ser entendida como uma condição relacional, ou seja, ela não surge de forma isolada, mas é moldada pelas estruturas sociais e pelas relações de poder. A partir dessa perspectiva, é importante observar que a vulnerabilidade social está diretamente relacionada à maneira como as sociedades distribuem recursos e oportunidades de forma desigual.

No Brasil, essa realidade é particularmente evidente quando se considera a disparidade de acesso a direitos básicos como saúde, educação e trabalho entre diferentes grupos sociais. As mulheres negras, por exemplo, enfrentam taxas de desemprego e informalidade significativamente mais altas do que as mulheres brancas e os homens em geral. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que, em 2021, a taxa de desemprego entre mulheres negras era de 19,8%, enquanto entre homens brancos era de 8,6%. Essa disparidade reflete a intersecção de desigualdades de gênero e raça, que torna as mulheres negras mais vulneráveis à exclusão do mercado de trabalho formal e dos sistemas de seguridade social.

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Esses dados ilustram como a vulnerabilidade social é multifacetada, sendo exacerbada pela intersecção de diferentes formas de discriminação. A segregação ocupacional é outro exemplo claro de como as desigualdades sociais contribuem para a vulnerabilidade. Mulheres são frequentemente direcionadas a setores de trabalho que oferecem salários mais baixos e condições de trabalho mais precárias, como o trabalho doméstico e o setor de serviços. Esses setores, além de serem menos valorizados economicamente, oferecem menor proteção social e previdenciária, perpetuando a vulnerabilidade dessas trabalhadoras ao longo de suas vidas.

Vulnerabilidade de Grupos Específicos: Gênero, Raça e Deficiência

As mulheres não são o único grupo social vulnerável que enfrenta desafios estruturais e institucionais. Indivíduos com deficiência, por exemplo, enfrentam barreiras significativas para acessar o mercado de trabalho e os serviços públicos, o que agrava sua vulnerabilidade social. Segundo dados do Censo 2010, cerca de 6,7% da população brasileira possui algum tipo de deficiência, e, apesar das legislações que garantem o direito ao trabalho e à acessibilidade, muitos desses indivíduos permanecem excluídos do mercado formal de trabalho. A exclusão de pessoas com deficiência resulta, em grande parte, da falta de políticas públicas eficazes que promovam a inclusão plena desses indivíduos na sociedade.

Em relação à população idosa, a vulnerabilidade é frequentemente associada à exclusão econômica e social resultante da aposentadoria inadequada ou insuficiente. Com o envelhecimento da população brasileira, essa questão tem se tornado cada vez mais relevante. Segundo o IBGE (2020), em 2050, a população de idosos deverá representar cerca de 30% da população total do país, o que colocará uma pressão ainda maior sobre o sistema previdenciário e de seguridade social. Sem políticas que garantam um sistema de proteção robusto, muitos idosos estarão sujeitos a situações de pobreza e precariedade na velhice.

Políticas Públicas e o Combate à Vulnerabilidade Social

A vulnerabilidade social só pode ser efetivamente mitigada por meio de políticas públicas que reconheçam a complexidade das condições de vida das populações vulneráveis. Para isso, é necessário que as políticas adotem uma abordagem interseccional, reconhecendo que a vulnerabilidade é amplificada pela combinação de diferentes formas de exclusão e discriminação.

Uma das formas de enfrentar essa vulnerabilidade é através de políticas de seguridade social que não dependam exclusivamente da participação no mercado formal de trabalho. Autores como Goldblatt (2017) argumentam que a seguridade social deve ser universalizada, de forma a incluir indivíduos que, por diversos motivos, não conseguem contribuir regularmente para os sistemas previdenciários. O reconhecimento do trabalho de cuidado, a valorização do trabalho informal e a criação de mecanismos de proteção para os trabalhadores autônomos são passos importantes na direção de um sistema mais justo e inclusivo.

Além disso, a implementação de programas de transferência de renda, como o Auxílio Brasil (antigo Bolsa Família), também desempenha um papel crucial na redução da vulnerabilidade social. Tais programas são capazes de proporcionar uma rede mínima de segurança econômica para famílias em situação de extrema pobreza, especialmente aquelas chefiadas por mulheres. No entanto, esses programas precisam ser complementados por políticas que promovam a inclusão produtiva e o acesso a oportunidades de emprego formal, de modo a garantir que a vulnerabilidade não se perpetue por gerações.

A vulnerabilidade social é um fenômeno complexo e multidimensional, que abrange diversos fatores como gênero, raça, classe social, deficiência e idade. A interação dessas variáveis cria formas únicas de exclusão e privações, que colocam certos grupos em condições de maior fragilidade diante de riscos sociais e econômicos. No Brasil, as mulheres, especialmente as negras, idosos e pessoas com deficiência, estão entre os grupos mais afetados pela vulnerabilidade social, devido às barreiras históricas e estruturais que limitam seu acesso ao mercado de trabalho formal e aos sistemas de proteção social.

Para enfrentar esse desafio, é fundamental que as políticas públicas adotem uma abordagem interseccional, reconhecendo que a vulnerabilidade é agravada por diferentes formas de discriminação e exclusão. A criação de políticas de seguridade social inclusivas e universais, que levem em consideração o trabalho de cuidado e as formas de trabalho informal, é essencial para garantir uma proteção mais ampla e equitativa para os grupos vulneráveis. Somente com a implementação de políticas públicas que reconheçam as múltiplas dimensões da vulnerabilidade social será possível construir uma sociedade mais justa e igualitária.

Para aprofundar ainda mais a discussão sobre as múltiplas dimensões da vulnerabilidade social, é necessário ampliar a análise de como essa vulnerabilidade afeta diferentes grupos sociais, especialmente em contextos de desigualdade sistêmica. Além disso, é essencial destacar as políticas públicas, as intervenções jurídicas e as abordagens teóricas que moldam a compreensão e o enfrentamento desse fenômeno no Brasil e no mundo. A seguir, será discutido como as desigualdades econômicas, de gênero, de raça, idade e deficiência afetam a vulnerabilidade social, e como essas interseções configuram um sistema de exclusão que requer políticas públicas específicas para seu enfrentamento.

4.5. Vulnerabilidade Social e Desigualdades Sistêmicas

A vulnerabilidade social não é apenas uma condição atribuída a grupos marginalizados, mas um reflexo das estruturas de poder e exclusão que permeiam a sociedade. Fineman (2016) destaca que a vulnerabilidade é inerente à condição humana, uma vez que todos os indivíduos, em algum momento da vida, enfrentarão riscos e adversidades. No entanto, as formas pelas quais as sociedades são organizadas exacerbam essa vulnerabilidade para certos grupos, devido à distribuição desigual de recursos e oportunidades.

Nesse sentido, a vulnerabilidade social emerge como uma característica relacional. Segundo Butler (2016), é preciso entender a vulnerabilidade não apenas como uma condição pessoal, mas como algo que é produzido e reproduzido pelas estruturas sociais que, ao distribuírem de forma desigual recursos, direitos e oportunidades, criam grupos mais expostos a riscos. Essa exposição maior às adversidades pode ser observada em grupos que estão historicamente à margem da sociedade, como mulheres, negros, idosos, deficientes e LGBTQIA+, e reflete as falhas de um sistema que privilegia certos indivíduos e marginaliza outros.

4.6. Gênero e Vulnerabilidade Social

Um dos principais vetores da vulnerabilidade social é o gênero. Mulheres, em especial, enfrentam uma série de desafios estruturais que as colocam em uma posição de maior exposição à pobreza e à exclusão social. Segundo Goldblatt (2017), as mulheres estão desproporcionalmente representadas em empregos informais e precários, o que afeta diretamente sua capacidade de contribuir para sistemas de seguridade social, como a previdência.

O conceito de “feminização da pobreza” reflete essa realidade. De acordo com Pearce (1978), as mulheres constituem uma parcela crescente da população empobrecida, devido, em grande parte, à sua sobrecarga de responsabilidades domésticas e à exclusão do mercado de trabalho formal. Isso é especialmente evidente em países como o Brasil, onde as desigualdades de gênero ainda são profundas. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2020), as mulheres ganham, em média, 77,7% do salário dos homens para funções equivalentes, e essa diferença é ainda maior quando se consideram mulheres negras.

Essas desigualdades se refletem diretamente no acesso das mulheres à seguridade social. No Brasil, a reforma da previdência de 2019 impôs novas regras para aposentadoria, que, embora buscassem promover igualdade formal entre homens e mulheres, não levaram em conta as desigualdades estruturais que fazem com que as mulheres, em especial as de baixa renda, tenham menos tempo disponível para contribuir com o sistema previdenciário. Como resultado, muitas delas enfrentarão dificuldades para se aposentar, o que perpetua sua vulnerabilidade na velhice (TAVARES, 2020).

4.7. Raça e Vulnerabilidade Social

Além do gênero, a raça é outro fator fundamental para a compreensão da vulnerabilidade social. No Brasil, o racismo estrutural coloca a população negra em uma posição de desvantagem sistemática em comparação com a população branca. Isso se reflete nas taxas de desemprego, na precarização do trabalho e no acesso à educação e saúde. De acordo com dados do IBGE (2020), as taxas de desemprego entre a população negra são significativamente mais altas do que entre a população branca, e a maior parte dos trabalhadores informais no país é composta por negros.

Hooks (2000) argumenta que a interseção entre raça e gênero cria formas específicas de opressão, que colocam as mulheres negras em uma posição de maior vulnerabilidade do que as mulheres brancas. No mercado de trabalho, isso se traduz em maior exposição ao trabalho informal e a empregos precarizados, como o trabalho doméstico. A desvalorização do trabalho doméstico, historicamente associado às mulheres negras, contribui para a exclusão dessas trabalhadoras do sistema de seguridade social, resultando em aposentadorias insuficientes ou na completa falta de proteção previdenciária.

Essa exclusão também pode ser observada nos sistemas de saúde e educação. A população negra, especialmente nas periferias urbanas, enfrenta maiores dificuldades de acesso a serviços públicos de qualidade, o que amplifica sua vulnerabilidade. A ausência de políticas públicas que abordem diretamente o racismo estrutural perpetua as desigualdades e impede que esses grupos tenham acesso pleno aos direitos sociais previstos na Constituição Federal de 1988.

4.8. Idade e Vulnerabilidade Social

Outro grupo particularmente vulnerável no Brasil é a população idosa. Com o envelhecimento da população brasileira, questões relacionadas à seguridade social e à vulnerabilidade dos idosos têm ganhado destaque no debate público. De acordo com projeções do IBGE (2020), a população de idosos no Brasil deverá dobrar até 2050, representando cerca de 30% da população total. Isso coloca uma pressão significativa sobre o sistema previdenciário, que já enfrenta desafios relacionados à sustentabilidade financeira.

A reforma previdenciária de 2019 trouxe mudanças importantes para os trabalhadores mais velhos, como o aumento da idade mínima para aposentadoria. No entanto, para aqueles que passaram a vida em empregos informais ou precários, essas mudanças representam um risco de exclusão ainda maior. Como destaca Millar (2018), as reformas previdenciárias frequentemente ignoram as desigualdades que impedem os trabalhadores informais de contribuir de forma contínua para o sistema, resultando em uma aposentadoria insuficiente para garantir uma vida digna na velhice.

Essa vulnerabilidade é agravada pela falta de políticas públicas voltadas para o bem-estar dos idosos. No Brasil, muitos idosos dependem de suas famílias ou de programas de transferência de renda, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC), para sobreviver. Embora esses programas sejam essenciais para a proteção dos idosos em situação de pobreza, eles são insuficientes para lidar com a crescente demanda por serviços de saúde, moradia e cuidados de longa duração, especialmente em um contexto de envelhecimento populacional.

Sobre a autora
Helena Figueiredo

Advogada (UCAM). Mestranda em Política Social (UFF). Especialização em Direito Previdenciário (CBPJUR/OAB). Sempre em busca do melhor benefício previdenciário. Contato: (021) 99794-2067

Informações sobre o texto

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