Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

O Trabalho de Cuidado e a Questão de Gênero

Exibindo página 2 de 2
Agenda 07/10/2024 às 17:55

Capítulo V: A Questão Histórica da Desigualdade Social: Gênero, Raça, Classe e o Trabalho de Cuidado

A questão do trabalho de cuidado no Brasil está profundamente enraizada em desigualdades históricas que envolvem gênero, raça e classe social. Para compreender plenamente a marginalização e desvalorização desse tipo de trabalho, é necessário contextualizar a forma como as relações de trabalho, especialmente as associadas ao cuidado, foram moldadas ao longo da história do país. As estruturas coloniais e pós-coloniais criaram condições que perpetuaram a exploração de determinados grupos, especialmente mulheres negras e pobres, e sustentaram um sistema econômico que ainda hoje reflete essas desigualdades.

5.1 A Herança Colonial e a Escravidão: O Trabalho de Cuidado no Período Escravocrata

O Brasil, enquanto colônia portuguesa, desenvolveu um sistema econômico baseado na exploração da mão de obra escravizada, que teve um impacto profundo nas relações de trabalho e nas divisões sociais. A partir do século XVI, milhões de africanos foram trazidos à força para trabalhar em plantações de açúcar, minas e nas casas das elites coloniais. Nesse contexto, o trabalho doméstico e de cuidado foi um dos principais papéis atribuídos às mulheres negras escravizadas. Elas eram responsáveis pela manutenção das casas dos senhores, pelo cuidado dos filhos das famílias brancas e pela realização de uma série de tarefas domésticas essenciais.

Esse trabalho de cuidado, realizado sob condições de violência e desumanização, foi uma extensão das funções tradicionais atribuídas às mulheres na sociedade patriarcal. No entanto, no Brasil, a interseção entre raça e gênero tornou a exploração das mulheres negras ainda mais severa. Segundo a historiadora Maria Helena Pereira Toledo Machado (1994), “o trabalho doméstico realizado por mulheres escravizadas foi um dos principais pilares do sistema escravocrata brasileiro, sustentando tanto a vida cotidiana das elites coloniais quanto o próprio desenvolvimento econômico da colônia”. Essas mulheres eram frequentemente vistas como "propriedade", e o trabalho que realizavam, por ser invisibilizado e associado à sua suposta “inferioridade” racial, foi historicamente desvalorizado.

Com a abolição formal da escravidão em 1888, a liberdade legal não trouxe uma transformação substancial nas condições de vida das mulheres negras. O fim da escravidão não foi acompanhado de políticas de integração econômica ou social para os ex-escravizados, o que forçou muitas mulheres negras a continuar trabalhando em condições precárias, muitas vezes nas mesmas funções que exerciam durante a escravidão, mas agora no regime de trabalho livre. Isso marcou o início da precarização do trabalho doméstico no Brasil, com as mulheres negras e pobres permanecendo relegadas às posições mais subalternas e sem acesso a direitos trabalhistas básicos.

5.2 O Trabalho de Cuidado no Período Republicano: Exclusão e Marginalização

A transição do Brasil para uma república no final do século XIX e início do século XX não alterou significativamente a posição das mulheres negras no mercado de trabalho. A industrialização incipiente e a urbanização criaram novas oportunidades de emprego para os homens, enquanto as mulheres, em sua maioria, continuavam confinadas ao trabalho doméstico e de cuidado. Segundo o sociólogo Florestan Fernandes (1978), “o processo de modernização brasileiro, embora tenha promovido a inclusão de alguns setores sociais na economia formal, não contemplou a massa de trabalhadores negros e pobres, que foram, em grande medida, marginalizados pela nova ordem social e econômica”.

Durante o início do período republicano, o trabalho de cuidado continuou a ser visto como uma extensão natural das responsabilidades femininas, o que refletia as normas sociais da época. Além disso, a ausência de legislação específica para regulamentar o trabalho doméstico fez com que as trabalhadoras desse setor ficassem desprovidas de direitos. Até a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 1943, o trabalho doméstico sequer era considerado uma atividade digna de regulamentação legal.

A CLT, que representou um avanço na proteção dos trabalhadores brasileiros, excluiu as trabalhadoras domésticas de sua abrangência, perpetuando a ideia de que esse trabalho não merecia o mesmo reconhecimento e direitos concedidos a outros trabalhadores. Como explica a antropóloga Lilia Schwarcz (2019), “a exclusão das trabalhadoras domésticas da CLT refletia o preconceito de gênero e raça que estruturava o mercado de trabalho brasileiro, onde as mulheres negras continuavam sendo vistas como aptas apenas para o serviço doméstico e desprovidas de cidadania plena”. Essa exclusão legal formalizou, de certa forma, o abismo entre os direitos dos trabalhadores formais e o universo do trabalho de cuidado.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

5.3 A Luta por Direitos: Da Ditadura Militar à Constituição de 1988

Nas décadas seguintes, as condições das trabalhadoras domésticas e de cuidado começaram a ser mais debatidas, especialmente durante o período da ditadura militar (1964-1985). A repressão política desse período coincidiu com uma série de transformações no mercado de trabalho, impulsionadas pela modernização e urbanização. Muitas mulheres começaram a ingressar no mercado de trabalho formal, mas o trabalho doméstico continuou sendo uma atividade precária e mal remunerada. O movimento feminista, que ganhou força durante os anos 1970, começou a chamar atenção para as questões de gênero e trabalho, especialmente no que diz respeito à dupla jornada das mulheres, que acumulavam o trabalho remunerado com o cuidado da casa e da família.

A Constituição Federal de 1988 representou um marco na proteção dos direitos das mulheres trabalhadoras. Com a nova carta constitucional, o trabalho doméstico passou a ser reconhecido como uma atividade que deveria gozar de direitos trabalhistas básicos, como férias, 13º salário e limite de jornada. No entanto, esse reconhecimento foi limitado, e a equiparação total entre os trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores regidos pela CLT só viria com a Emenda Constitucional nº 72 de 2013, conhecida como a PEC das Domésticas, e a Lei Complementar nº 150 de 2015, que regulamentou esses direitos. Embora esses avanços legislativos tenham sido significativos, eles não eliminaram completamente as disparidades entre o trabalho doméstico e outras formas de trabalho formal, especialmente no que diz respeito à aplicação prática desses direitos.

5.4 Gênero, Raça e Classe: A Feminização do Trabalho de Cuidado no Brasil Contemporâneo

A combinação de gênero, raça e classe continua a estruturar o trabalho de cuidado no Brasil contemporâneo. A feminização da pobreza, um conceito utilizado por autoras como Helena Hirata e Heleieth Saffioti, é central para a compreensão das desigualdades que permeiam o trabalho de cuidado. As mulheres, especialmente as mulheres negras, continuam a ser as principais responsáveis pelas atividades de cuidado, tanto no âmbito doméstico quanto institucional, e, em geral, recebem baixos salários, trabalham em condições precárias e muitas vezes sem formalização.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2020, 92% das trabalhadoras domésticas no Brasil eram mulheres, e, dentre elas, 63% eram negras. Esses números refletem a interseção das desigualdades de gênero e raça, demonstrando que o trabalho de cuidado, além de ser subvalorizado, está profundamente marcado por questões raciais. Segundo a historiadora Angela Davis (2016), "o trabalho de cuidado, ao longo da história, foi utilizado para manter a subordinação racial e de gênero, sendo a principal atividade designada às mulheres negras em sociedades pós-escravistas".

Mesmo com os avanços legislativos, a informalidade no trabalho de cuidado persiste como um desafio estrutural. A precariedade associada a esse tipo de trabalho reflete a continuidade de estigmas e preconceitos enraizados na história colonial do Brasil, onde o trabalho das mulheres negras sempre foi considerado inferior. A desvalorização desse trabalho não apenas contribui para a perpetuação da pobreza entre essas mulheres, mas também reforça a exclusão social e a marginalização de grupos racialmente subordinados.

A análise histórica da questão do trabalho de cuidado no Brasil revela como as desigualdades de gênero, raça e classe moldaram a economia e a sociedade do país, relegando o trabalho de cuidado a uma posição subalterna. As mulheres, especialmente as mulheres negras, foram historicamente empurradas para essas funções, perpetuando um ciclo de exploração e precariedade que ainda persiste. Embora a legislação trabalhista tenha avançado, os desafios práticos e estruturais permanecem. A história do trabalho de cuidado no Brasil, portanto, é uma história de resistência e luta por reconhecimento e dignidade.


Conclusão

O trabalho de cuidado é um pilar fundamental da sociedade contemporânea, mas permanece subvalorizado e invisibilizado, especialmente quando desempenhado por mulheres. O ordenamento jurídico brasileiro, embora tenha avançado com a PEC das Domésticas e outras reformas legislativas, ainda enfrenta desafios para garantir a plena proteção e valorização dessas trabalhadoras. As barreiras de gênero, raça e classe continuam a estruturar as desigualdades no campo do trabalho de cuidado, exigindo uma abordagem jurídica mais inclusiva e eficaz.

Por meio de uma análise detalhada das normas trabalhistas e processuais aplicáveis ao trabalho de cuidado, este TCC procurou demonstrar as limitações do sistema jurídico atual e apontar possíveis caminhos para a promoção de maior igualdade de gênero no mercado de trabalho. A superação dessas desigualdades requer não apenas mudanças legislativas, mas também um esforço contínuo de conscientização social e transformação cultural.


Referências Bibliográficas

BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2018.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2020.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.

FRASER, Nancy. Fortunes of Feminism: From State-Managed Capitalism to Neoliberal Crisis. London: Verso, 2016.

HIRATA, Helena. Trabalho, Gênero e Reestruturação Produtiva. São Paulo: Boitempo, 2014.

RAMOS, Luciana. O Acesso à Justiça pelas Trabalhadoras Domésticas no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2017.

SAFFIOTI, Heleieth. A Mulher na Sociedade de Classes: Mito e Realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2004.

BRASIL. Emenda Constitucional nº 72, de 02 de abril de 2013. Estende aos empregados domésticos os direitos já garantidos aos demais trabalhadores urbanos e rurais. Disponível em: https://www.planalto.gov.br.

BRASIL. Lei Complementar nº 150, de 1º de junho de 2015. Dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico; altera a Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, e a Lei no 8.213, de 24 de julho de 1991; revoga o art. 3o da Lei no 5.859, de 11 de dezembro de 1972; e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Nota Técnica sobre Trabalho Doméstico. Brasília: IPEA, 2021.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). Relatório sobre o Trabalho Doméstico no Brasil. Brasília: OIT, 2018.

FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ (FIOCRUZ). Estudo sobre as Condições de Trabalho de Cuidadores de Idosos em Instituições. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2019.

BRASIL. Lei Complementar nº 150, de 1º de junho de 2015. Dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico. Disponível em: https://www.planalto.gov.br.

BRASIL. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Reforma Trabalhista. Disponível em: https://www.planalto.gov.br.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2020.

FRASER, Nancy. Fortunes of Feminism: From State-Managed Capitalism to Neoliberal Crisis. London: Verso, 2016.

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: 2020. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.

IPEA. Trabalho Doméstico no Brasil: Desafios e Perspectivas. Brasília: IPEA, 2020.

BANCO MUNDIAL. Gender Diversity and Economic Performance. Washington, D.C.: World Bank, 2019.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br.

BRASIL. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Reforma Trabalhista. Disponível em: https://www.planalto.gov.br.

IBGE. Censo Demográfico 2020: Trabalho Doméstico e Informalidade. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.

IPEA. Trabalho Doméstico no Brasil: Desafios e Perspectivas. Brasília: IPEA, 2019.

DIEESE. Nota Técnica: O Trabalho Doméstico no Brasil. São Paulo: DIEESE, 2020.

FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS (FGV). Impactos da Reforma Trabalhista sobre o Acesso à Justiça. São Paulo: FGV, 2018.

Sobre a autora
Helena Figueiredo

Advogada (UCAM). Mestranda em Política Social (UFF). Especialização em Direito Previdenciário (CBPJUR/OAB). Sempre em busca do melhor benefício previdenciário. Contato: (021) 99794-2067

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!