Resumo: a presente reflexão tem por finalidade analisar a tentativa dos Delegados de Polícia de fortalecer a posição dos investigados por cometimento de infrações penais na fase extrajudicial da persecução penal, enfraquecendo a posição da acusação pública e deixando-a à deriva no mar da justiça penal, consagrando o garantismo hiperbólico monocular, além de burocratizar o inquérito policial.
Palavras-chave: Direito Constitucional. Segurança pública. Polícia judiciária. Ministério público. defesa.
Conforme temos reiteradamente visto na doutrina policial, os Delegados de Polícia tem copiosamente defendido a ampliação da participação da defesa nos autos do inquérito policial, apesar de ser um procedimento administrativo e apuratório e não um processo decisório, e também o afastamento da acusação pública com o argumento de não ser unidirecional o caderno apuratório por servir como filtro para evitar acusações infundadas.
Uma das primeiras críticas, dentre muitas realizadas por Rafael Francisco Marcondes de Moraes (p. 278), é a de que, como o Supremo Tribunal Federal autorizou a investigação acusatória direta, também caberia a investigação defensiva direta. Eis trecho de sua obra:
Tendo em vista que, por lei, há atuação frequente do órgão acusador na tramitação do inquérito policial, seja nas manifestações em sede de prorrogação de prazos, de representação por medidas cautelares, nas requisições de instauração do procedimento investigatório criminal ou de diligências apurativas ou, ainda, no controle externo dos órgãos policiais, como regra, não há equivalência de mecanismos disponíveis para a participação defensiva na investigação preliminar. O cenário torna-se ainda mais complexo diante da convalidação, pela Suprema Corte brasileira, da investigação criminal direta pela acusação, a despeito da falta de explícito respaldo na Carta Magna ou em lei federal, a potencializar discussões e ensejar, como contraposição, iniciativas de regulamentação da investigação criminal direta também pela defesa. (g.n.)
Ademais, o autor (p. 284) assevera que mesmo que se consinta com a investigação ministerial, esta exige prévia edição de lei federal que a discipline, além de claros limites.
No entanto, logo após, o policial (p. 285) destaca que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil editou o Provimento n. 188 de 2018 para regulamentar a chamada investigação criminal defensiva, sob o prisma lógico da igualdade das partes.e paridade de armas.
Conclui aludindo que a investigação criminal direta pela defesa, assim como aquela promovida diretamente pela acusação, não ostenta disciplina em lei processual penal, apenas em atos administrativos (p. 287).
Conquanto seja verdade que nenhum desses procedimentos apuratórios encontrem morada no Código de Processo Penal, a Resolução n. 181 de 2017 do Conselho Nacional do Ministério Público extrai sua força diretamente da Constituição Federal (art. 130-A, § 2º inc. I), enquanto o Provimento da OAB extrai seu fundamento da Lei Federal n. 8.906 de 1994 (art. 54, inc. V).
Assim, em uma queda de braços para verificar eventual inconstitucionalidade desses normativos, a Resolução do CNMP nadaria de braçada por possuir sede na Lei Maior, porto mais seguro.
Aqui, é importante salientar que por força de expressa disposição constitucional, a investigação preliminar é sim unidirecional, senão o constituinte não teria elencado o controle externo da atividade policial e o poder de requisição de diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial como funções institucionais do Ministério Público, a quem compete a promoção privativa da ação penal pública (art. 129, inc. I, VII e VIII, da CF), somente excepcional em caso de inércia do órgão de execução.
De outro vértice, ainda sobre o poder investigatório do MP, Rafael Marcondes destaca que
A leitura dos anais da Assembleia Constituinte esclarece que a concessão de poder investigatório criminal ao órgão acusador foi suscitada e expressamente negada, em articulação que pretendia substituir o inquérito policial por um “inquérito preliminar” para sustentar e servir de mero instrumento da acusação. Também houve novas negativas pelo legislador em posteriores tentativas de emenda constitucional, de maneira que, se é poder negado, não há que se falar em pretenso poder implícito, mas em limite explícito. (g. n.)
Nesse ponto, cumpre relembrarmos que a exclusividade da investigação criminal pela Polícia Civil e Federal também foi negada pelo Poder Constituinte Derivado Reformador (PEC n. 37 de 2011). Dessa forma, nenhum órgão público é dono da investigação preliminar, ainda que existam preferências.
Nesse particular, incide em hipocrisia a doutrina policial quando articula que seria necessário
Compreender o poder investigatório criminal sob uma visão holística e não sob ângulo isolado de um grupo ou de uma instituição, restrita a pretender se arvorar da incumbência da legítima autoridade investigante, em descompasso com a distribuição constitucional de poderes de cada órgão estatal. (g. n.)
De seu turno, a própria autoridade judicial possui poderes instrutórios no processo penal. Eis o ficou decidido nas ADI’s n. 6298, 6299 e 6305, verbis:
DO ARTIGO 3º-A AO 3º-F. JUÍZES DAS GARANTIAS E NORMAS CORRELATAS. I – ARTIGO 3º-A. ESTRUTURA ACUSATÓRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. DERIVAÇÃO DO TEXTO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO. VEDAÇÃO, A PRIORI, À INICIATIVA DO JUIZ NA FASE DE INVESTIGAÇÃO E À SUBSTITUIÇÃO DA ATIVIDADE PROBATÓRIA DAS PARTES PELO JUIZ. COMPATIBILIZAÇÃO COM AS NORMAS QUE AUTORIZAM A AUTORIDADE JUDICIAL, PONTUALMENTE, I – ARTIGO 3º-A. ESTRUTURA ACUSATÓRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. DERIVAÇÃO DO TEXTO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO. VEDAÇÃO, A PRIORI, À INICIATIVA DO JUIZ NA FASE DE INVESTIGAÇÃO E À SUBSTITUIÇÃO DA ATIVIDADE PROBATÓRIA DAS PARTES PELO JUIZ. COMPATIBILIZAÇÃO COM AS NORMAS QUE AUTORIZAM A AUTORIDADE JUDICIAL, PONTUALMENTE, A DIRIMIR EVENTUAL DÚVIDA A DIRIMIR EVENTUAL DÚVIDA REMANESCENTE. REMANESCENTE. CONSTITUIÇÃO. (…) (f) A legítima vedação à substituição da atuação probatória do órgão de acusação significa que o juiz não pode, em hipótese alguma, tornar-se protagonista do processo. Simultaneamente, remanesce a possibilidade de o juiz, de ofício: (a) “determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante” (artigo 156, II); (b) determinar a oitiva de uma testemunha (artigo 209); (c) complementar a sua inquirição (artigo 212) e (d) “proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição” (artigo 385). (g. n.)
Nesse ponto, alega-se que a atividade investigante do magistrado se limitaria àquelas provas que fossem favoráveis a defesa, com espeque no in dubio pro reo ou favor rei, tendo por base o novel artigo 3º-A do CPP.
Com exceção da possibilidade do juiz condenar ainda que o Parquet tenha requerido a absolvição (que a nosso ver viola o sistema acusatório), ficou consagrado no julgado o sistema de garantias a que a constituição atribuiu aos jurisdicionados no processo penal.
Lado outro, conforme ensina Gustavo Badaró (pág. 137-138), não é defensável a posição de que os meios de prova solicitados pelo investigado poderiam ser deferidos ou não, de modo discricionário, pela autoridade policial, sob pena de cerceamento da garantia fundamental da defesa e ainda teceu críticas ao artigo 14-A do CPP, pois a defesa técnica deveria ser obrigatória para todos os investigados e não somente aos agentes da segurança pública, sob pena de violação ao princípio da igualdade (art. 5º, caput, da CF).
Avançando no tema, Rafael Marcondes (p. 229). defende a faculdade da representação recursal da autoridade policial, a possibilitar o recurso da decisão denegatória de primeiro grau de jurisdição.
Ora, se o Delegado de Polícia é sujeito imparcial da persecução penal, por que deveria possuir essa obsessão em ver deferido seu pedido?
Destarte, temos que se a atividade da polícia judiciária não for unidirecional, a despeito das garantias do artigo 5º da Constituição da República, e a defesa passar a exercer um efetivo contraditório na fase investigativa, o que sobrará para punir os autores de infrações penais? Qual força terá a sociedade para colocar um criminoso atrás das grades com tantos entraves burocráticos na fase preliminar?
Outrossim, as sindicâncias instauradas para a apuração de fatos relacionados à infrações disciplinares de servidores públicos é unidirecional, com possibilidade da participação de uma defesa técnica por profissional habilitado, e nem por isso é rechaçada pela doutrina e pelo Poder Judiciário (Súmula Vinculante n. 5).
Portanto, temos que todas essas críticas ao Ministério Público visam ao enfraquecimento da acusação pública, fator apto a configurar a quebra da paridade de armas, já que o investigado terá ao seu lado a Advocacia, a Polícia Civil/Federal e também o Poder Judiciário, todos zelando pelos seus direitos, em detrimento dos direitos da sociedade. Seriam 3 contra 1.
Nesse cenário, teríamos o que se conhece por garantismo hiperbólico monocular, que é aquele que é aplicado de uma forma ampliada, desproporcional e é monocular porque só enxerga os direitos fundamentais do infrator, além de contrapor-se ao garantismo penal integral, o qual visa resguardar os direitos básicos não só dos réus, mas também dos ofendidos.
Dessa forma, causa estranheza essa doutrina policial que visa tirar o Ministério Público do sistema de justiça criminal e relegá-lo a um mero espectador e coadjuvante na coleta de provas e na promoção da justiça, a despeito do artigo 127 da Constituição de 1988.
Finalmente, em franco devaneio, Rafael Marcondes (p. 56) salienta que o Ministério Público e a Defensoria Pública seriam instituições vinculadas ao Poder Executivo. Eis suas palavras:
De fato, a superação das críticas em relação à potencial influência à contaminação política das instituições de polícia judiciária seria relativamente simples de ser promovida com a concessão das apontadas proteções normativas, similar ao que se observou no Brasil com órgãos como o Ministério Público e a Defensoria Pública que, não vinculados nem ao Poder Judiciário e tampouco ao Poder Legislativo, por exclusão, a eles resta a subordinação ao Poder Executivo, como ocorre com as instituições de polícia judiciária. (g. n.)
Ora, com a devida venia, com exceção da Advocacia Pública (vinculada ao Poder Executivo), nenhuma das Funções Essenciais à Justiça é vinculada a quem quer que seja (justamente por isso estão elencados em capítulo próprio e separado dos demais Poderes), e a Polícia Judiciária, malgrado as investidas legislativas (art. 1º da Lei n. 14.735/2023), não é função indispensável à justiça, mas somente à segurança pública.
Aliás, o entendimento de que a Polícia Civil ou Federal é função essencial à justiça implícita é isolado do juiz André Nicolitt, posteriormente adotada por todos os autores policiais. Segundo Nicolitt (p. 73),
Muito embora não figure expressamente no capítulo das funções essenciais à justiça (arts. 127 a 135, CFR/1988), implicitamente, trata-se de função essencial à justiça em razão de fortalecer o sistema acusatório na medida em que o juiz está despido da função de investigar o que está entregue a órgão próprio para tanto. (g. n.)
A grande verdade é que o sistema acusatório só restará fortalecido se a atividade da polícia judiciária for direcionada a subsidiar a opinio delicti do órgão acusatório, sob pena de termos consagrado um “sistema defensório”.
Observação que faz sentido proferida por Marcondes (p. 320) é a de que, em face da imparcialidade da autoridade policial, o artigo 107 do CPP não passa por uma filtragem constitucional. Ora, os artigos 18 à 21 da Lei Federal n. 9.784/99 são perfeitamente aplicáveis ao caso. Se até mesmo no processo administrativo disciplinar o agente público tem o dever de imparcialidade, quiçá nas investigações criminais.
Concluindo, não vemos motivo para todas essas investidas em face das funções institucionais do órgão ministerial e tentativa de enfraquecimento do sistema acusatório constitucional, consagradores do garantismo hiperbólico monocular, como se a Carta Magna só se preocupasse com criminosos.
Além de tudo, temos que para as polícias é muito mais fácil a aprovação de medidas legislativas de interesse, já que temos no Congresso Nacional a “bancada da bala”, e não temos uma “bancada ministerial”. Por isso o açodamento político em regulamentar as competências ministeriais, nada obstante as decisões do Tribunal Constitucional.
Referências
BADARÓ, Gustavo Henrique Rigui Ivahy. Processo Penal. 8ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.
FISCHER, Douglas. Garantismo penal integral (e não o garantismo hiperbólico monocular) e o princípio da proporcionalidade: breves anotações de compreensão e aproximação dos seus ideais. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 28, mar. 2009. Disponível em:
http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao028/douglas_fischer.html
MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. Inquérito Policial Constitucional e Devida Investigação Criminal. São Paulo: Editora Juspodivm, 2025.
NICOLITT, André. Manual de processo penal. 2 ed., atual. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
TORMENA, Celso Bruno Abdalla. A polícia judiciária não é função essencial à Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6893, 16 mai. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97787.