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Uma Administração Global para a Inteligência Artificial.

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Agenda 18/10/2024 às 17:55

1. Introdução

 A Inteligência Artificial [IA] é a nova fronteira vem sendo experimentada pela humanidade e, por isso mesmo, ainda um enigma, como que uma Esfinge pós-moderna. A Esfinge é figura mitológica da Antiguidade Clássica, possuindo diferentes significados: para os gregos, tratava-se de um monstro, qual descrita por Sófocles, em Édipo Rei, onde era a responsável por afligir a cidade grega de Tebas, eliminando aqueles que não conseguiam decifrar seus enigmas; para os egípcios, era figura protetora e, não por acaso, está grande Esfinge postada à frente das pirâmides de Gizé (Connell, 2013).

Nossa Esfinge, a IA, caminha por aí. Decifrá-la pode inaugurar um novo período de prosperidade e evolução; não o fazer pode ser tornar a causa da ruína da civilização.

A IA, conforme sua capacidade de funcionalidade pode ser classificada em três tipos (Baldissera, 2023): (i) Inteligência Artificial Limitada, em inglês Narrow Artificial Intelligence [NAI], cujos exemplos marcantes são a Deep Blue da IBM[1], e as assistentes virtuais Siri e Alexa[2], as quais executam atividades programadas, podendo se autoaprimorar mas não da forma como o cérebro humano; (ii) Inteligência Artificial Geral - Artificial General Intelligence, AGI – a qual teria habilidades cognitivas semelhantes às dos seres humanos, com raciocínio lógico, aprendizagem contínua, empatia e compreensão do contexto social, nível para o qual caminha o chatGPT, segundo Correia (2023); e (iii) a Superinteligência Artificial - Artificial Superintelligence, ASI -, ainda inexistente, conforme Barney (2023),  refere-se a um sistema que demonstra capacidades intelectuais acima das que possuem os seres humanos em quase toda área do conhecimento e campo de atuação, incluindo a ciência, a criatividade e as habilidades sociais. Este estudo se fixará na Inteligência Artificial Geral e na Superinteligência Artificial como objeto de uma regulamentação global.

A partir da revisão da literatura sobre Direito Administrativo Global e tendo por hipótese que as iniciativas legislativas locais são insuficientes para se contraporem ao desafio da IA, nas formas da Inteligência Artificial Geral e da Superinteligência Artificial, o presente artigo procura responder à seguinte questão: é necessária a organização de uma Administração Global para a Inteligência Artificial Geral e para a Superinteligência Artificial? E Qual o modelo essa nova Administração Global poderia vir a adotar?

Nesse desiderato, a par desta introdução e de breve conclusão ao final, o presente estudo se encontra estruturado em quatro tópicos: o primeiro, tem-se uma ambientação ao problema trazido pela IA; o segundo tópico se refere à impossibilidade de que a legislação local dê a resposta adequada a essa problemática; o terceiro se destina a traçar as possibilidades de solução em nível de Administração Global e o derradeiro apresenta uma proposta de roupagem para essa Administração Global.

 

2. E o homem criou a IA...

 O advento, a popularização e o constante desenvolvimento do ChatGPT[3] - parece ter despertado a humanidade para a necessidade da discussão sobre as potencialidades e os riscos da IA.

No entanto, a concepção da IA data de 1956, ano em que foi realizara uma conferência proferida no projeto de pesquisa de verão realizado no campus da Dartmouth College, em Hanover, New Hampshire, Estados Unidos, na qual Jonh Mccarthy cunhou o termo “inteligência artificial”, o qual entendia como sendo “a ciência e a engenharia de produzir máquinas inteligentes” (Prado, 2019). O objetivo daquele projeto era descobrir a maneira de fazer as máquinas usarem a linguagem, formar abstrações e conceitos, resolver problemas reservados aos humanos e melhorar a si mesmas.

Passados quase 70 anos do evento em Dartmouth College, os objetivos daquele projeto se fazem presentes no cotidiano. Novas ferramentas foram incorporadas à IA permitindo-lhe “invadir” o sistema operacional da civilização humana (Harari, 2003), isto é, a capacidade de utilizar e de produzir linguagem. Nessa toada, vindo a IA a dominar a linguagem humana, ela poderá criar suas próprias e convincentes narrativas, induzindo, por exemplo, a escolha de políticos e tomada de posição em debates de interesse da sociedade.

De fato, há algum tempo a IA é usada para interpretar os interesses dos usuários, a partir de buscas na Internet. Esse mecanismo tem se mostrado suficiente para induzir pessoas a se agregar em bolhas de pensamentos, sugerindo, por exemplo, a participação em determinados grupos nas redes sociais.

Resulta disso a preocupação com as possibilidades de que uma Inteligência Artificial Geral ou de uma Superinteligência Artificial consiga ampliar seus domínios sobre a linguagem, formando abstrações, conceitos e, a partir disso, adquira a capacidade de induzir os seres humanos a adotar comportamentos, pensamentos e hábitos[4], impondo-se, como um “deus artificial”, seus “decálogos”, listando “pecados” e impondo métodos de expiação, como os chamados “cancelamentos”, situação preocupante num mundo que caminha para a adoção de moedas virtuais.

Os primeiros passos nesse caminho já foram dados. O GPT-4 é capaz de criar redações e poesias e, por intermédio da técnica chamada deepfake, a IA, com base em algoritmos que reconhecem padrões de comportamento corporal de dada pessoa, é capaz de manipular imagens, produzindo conteúdo falso com tanto realismo que são percebidas como verdadeiros (Ramalho Lima, 2020).

Por isso, em 22 de março de 2023, o Future of Life Institute divulgou sua carta aberta do defendendo a regulação da IA e a interrupção por menos seis meses, do desenvolvimento de sistemas de IA mais poderosos que o GPT-4[5], a fim de que os laboratórios de IA e os especialistas independentes pudessem, em conjunto, desenvolver e implementar protocolos de segurança para design e desenvolvimento avançados de IA, a fim de garantir que sejam seguros. Uma vez propostos esses protocolos, haveria constante auditoria e supervisão dos desenvolvedores de IA por especialistas externos independentes. A missiva propôs a imposição da moratória por entes governamentais, caso os laboratórios de IA não interrompessem seus trabalhos voluntariamente.

Esse posicionamento do Future of Life Institute traz consigo o sentimento de que a IA poderia representar para a humanidade um risco comparável ao enfrentado no início da Era Nuclear. Certo é que a IA constitui-se em fato jurídico novo, impossível de ser enfrentado ou de receber solução definitiva isolada por parte de um Estado ou de um bloco regional, como adiante se verificará.

 

3. “Um  galo sozinho não tece uma manhã...” – a ação isolada de um Estado é insuficiente no enfrentamento do enigma da IA.

Dado ao seu alcance global, a IA é um fato jurídico cujo tratamento adequado não pode ser encontrado apenas com a adoção de ações locais ou regionais. O Direito local não possui cabedal jusprincipiológico/normativo suficiente para obter a harmonização ou a pacificação social exigida pela sociedade nessas situações.

Isso porque o Direito de um Estado singular, diante de um fato jurídico, exerce seu papel de forma similar à descrita por Albert Einstein na Teoria da Relatividade. Einstein, ao conceber a Teoria da Relatividade Geral, gizou que as três dimensões do espaço - comprimento, largura e profundidade - e a dimensão do tempo estão juntas, formando como que um tecido espaço/tempo, o qual nos rodeia e é deformado pela presença de corpos celestes massivos, criando o que sentimos como sendo a força de gravidade (Toniato, 2020).

O Direito, como ciência social aplicada, é igualmente um tecido, porém, composto por princípios e normas jurídicas os quais, sob a ação de um fato juridicamente relevante, com as suas indissociáveis circunstâncias, colmatam a resposta adequada para a realização da dignidade da pessoa humana e para a consequente pacificação social.

O fato jurídico, acontecimento que repercute no Direito, é que amolda a atuação do Direito, fazendo reagir o tecido jusprincipiológico/normativo para harmonizar a relação social, segundo os valores de dada sociedade, em dado tempo. Essa harmonização decorre da interpretação do Direito, isto é, da escolha de quais princípios e normas, como substância do tecido jusprincipiológico/normativo, são adequados a dar a resposta do tecido à pressão nele exercida pelo fato, equilibrando o sistema, resgatando a paz social e realizando a dignidade da pessoa humana.

A resposta do tecido jusprincipiológico/normativo depende das seguintes variáveis: (i) a ocorrência de um fato que tenha repercussão no Direito, com todas as circunstâncias que o envolvem; (ii) os princípios jurídicos e as normas jurídicas vigentes; (iii) os valores da sociedade na qual o fato se deu (espaço); e (iv) o momento histórico de sua ocorrência (tempo).

Para melhor compreensão desta visão do Direito, mobiliza-se a hipótese do adultério. A resposta que o tecido jurídico fornece para esse fato é variável no espaço e no tempo, segundo os valores de dada sociedade, em dada época: a Lei de Moisés indicava a lapidação; as Ordenações Filipinas, vigentes no período colonial brasileiro, prescreviam a pena de morte para a(o) adúltera(o) e para o(a) amante; o Código Penal Brasileiro, até 2005, previa pena para o adultério, entre quinze dias e seis meses de detenção – dando margem à aplicação de medidas alternativas, o que corresponde ao fato de que os valores da sociedade já não admitiam a restrição da liberdade como resposta adequada. Por fim, a Lei nº 11.106/2005, revogou o artigo do Código Penal que considerava o adultério fato típico, passando as suas consequências desse ato ao campo do Direito Civil (ICIZUKA et al., 2007).

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Portanto, pode-se afirmar que o Direito é relativo quanto ao espaço e quanto ao tempo em que atua, estando em constante reconstrução, do mesmo modo que o Universo se encontra em constante expansão. Por isso, Coelho (2009) ensina que “o Direito é um vir a ser, um dever ser, um vir a ser, um devir, na forma em que efetivamente ele venha a ser. [...] um ser devindo”.

Há, todavia, fatos jurídicos que, devido ao seu caráter universal, devem ser respondidos também de forma universal. Valendo-se dos ensinamentos da Física moderna, pode-se afirmar que há fatos que se constituem em singularidades no campo Direito. São questões de tal complexidade e de tal ordem que a resposta satisfatória não pode ser encontrada apenas no Direito de dada sociedade em dado espaço geográfico ou tempo.

Na Física as singularidades afastam as aplicações das leis conhecidas, ou seja, as leis físicas formuladas são insuficientes para compreender e solucionar o fenômeno vislumbrado (Ribeiro, 2022). Transplantando esse conceito para o Direito, é possível ver que nessa Ciência Social há questões que constituem singularidade, como aquecimento global, a energia nuclear e, objeto de nosso estudo, a IA nas formas Inteligência Artificial Geral e da Superinteligência Artificial[6].

As normas nacionais são incapazes de trazer, por si, solução para singularidades, como a IA, nas modalidades da Inteligência Artificial Geral e da Superinteligência Artificial, como as leis da Física não respondem à singularidade de um buraco negro. Mas, no Direito, as singularidades podem ser respondidas por uma Administração Global.

 

4. A necessidade de “outros galos” para que a manhã “se vá tecendo entre todos”.

 Quando dado fato jurídico representa uma singularidade, a resposta deve ter um caráter universal, maior, acordado, aceito e aplicado no âmbito das nações, como são exemplos o terrorismo e o aquecimento global, cujas soluções não podem ser alcançadas pela ação de um único Estado, afinal, problemas globais exigem soluções globais (Cassese, 2007).

Contudo, soluções globais exigem um espaço global para a sua discussão. Esse espaço passou a ser consolidado, notadamente, a partir da década de 1990, com o fim da União Soviética. Não obstante, já vinha sendo gestado desde o final da Segunda Guerra Mundial, com a criação de instituições que criam regimes de regulação internacional, como Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, o Conselho de Segurança das Nações Unidas, a Agência Internacional de Energia Atômica, entre outros. Nesse espaço o Direito Administrativo Global (DAG), conforme Kingsbury et al. (2016).

Todavia, a ideia de uma administração internacional e a construção de um espaço global possuem raízes mais antigas. Na segunda metade do Século XIX muitas iniciativas foram adotadas, valendo mencionar a Convenção de Paris de 1883, sobre a propriedade industrial, e a Convenção da União de Berna, de 1886, relativa à propriedade intelectual.

O espaço global ainda é um espaço em construção, que Locke (1994) definiria como “Estado de Natureza” [7], porque inexiste um poder ou ente maior capaz de regular a sociedade das nações. Assim, esse espaço pode se desvirtuar para o que Locke (1994) denominava “Estado de Guerra”, quando entes – Estados – procuram se impor uns sobre os outros.

É certo que, ainda hoje, inexiste um governo mundial ou uma Constituição global, tampouco um órgão executivo ou judiciário que se imponha a toda a comunidade de Estados (Cassese, 2002). Não há um “Governo Civil Global” persistindo o “Estado de Natureza” nas relações internacionais, o que não constitui impedimento para a existência de um espaço global organizado, por meio de negociação ou de convenções.

 Esse espaço global tem sido construído consensualmente entre os Estados e ocupado por Organizações Internacionais, as quais estipulam regras válidas e obrigatórias, como as convenções da Organização Internacional do Trabalho; órgãos aptos a dirimir conflitos e impor decisões, como tribunais arbitrais e o órgãos de solução de controvérsias da Organização Mundial do Comércio, a Corte Internacional de Justiça e os tribunais de Direitos Humanos das organizações regionais; e órgãos executivos, como o Conselho de Segurança das Nações Unidas, capaz de fazer impor a paz no território de determinado Estado.

Nesse quadro, Cassese (2019) giza que o espaço global (i) não possui um governo, mas uma governança; (ii) é administrado não por um acordo de vontade, mas de interesses; (iii) as decisões globais não são gerais, mas restritas, limitadas a cada um dos múltiplos setores que a compõe. Essa multiplicidade de setores da Administração Global foi catalogada em cinco diferentes formas de regulamentação pelo Global Administrative Law Project (GAL Project) da Escola de Direito da Universidade de Nova Iorque (Kingsbury et al, 2016).

A primeira forma de regulamentação vislumbrada pelo GAL Project é a administração por organizações internacionais formais, estabelecidas pela forma comum do Direito Internacional, mediante tratados ou acordo executivo, possuindo estruturas bem estabelecidas e um órgão central para a tomada de decisões.  Muitas estão constituídas sob o Sistema das Nações Unidas, como o Conselho de Segurança, a Organização Mundial da Saúde, a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados.

A segunda forma de regulamentação seria a administração baseada na ação coletiva de redes transnacionais de arranjos cooperativos entre autoridades reguladoras nacionais. As redes transnacionais de acordos de cooperação não possuem um órgão para tomada de decisões e é marcada pela cooperação informal dos reguladores dos Estados.

Verdier (2009), ao estudar as redes transnacionais, afirma que se constituem um fenômeno contemporâneo, derivado da desagregação do Estado na condução das relações internacionais. São fóruns multilaterais descentralizados, os quais têm por membros agências reguladoras nacionais, com autonomia limitada em seus Estados de origem, no entanto, facilitam a cooperação multilateral em questões que são de interesse mútuo.

As vantagens das redes transnacionais seriam a velocidade, a flexibilidade, a abrangência e a capacidade de foco em problemas regulatórios complexos. Como exemplos dessa modalidade de governança, são citados o Comitê de Supervisão Bancária da Basiléia, a Organização Internacional das Comissões de Valores Mobiliários (IOSCO) e a Rede Internacional de Concorrência (ICN).

A terceira tipologia de regulamentação recairia sob a administração distribuída por reguladores nacionais, sob tratado, rede ou outros regimes de cooperação. Diferentemente das redes transnacionais, há uma formalização da atuação regulamentadora. Nessa sede de regulamentação, alguma agência reguladora nacional, amparada em tratado ou regime de cooperação, adota decisão sobre questões que afetam o interesse de outro Estado ou de vários outros Estados, no exercício da jurisdição regulamentar extraterritorial.

Os integrantes do GAL Project manobram, como exemplo dessa regulamentação, a decisão dos Estados Unidos de proibir a importação de certas espécies de camarão e de produtos de camarão, cuja pesca era feita por arrasto e matava tartarugas ameaçadas de extinção. A Índia, a Malásia, o Paquistão e a Tailândia levaram o caso ao Painel da Organização Mundial do Comércio. O Painel condenou os Estados Unidos, considerando que a proibição imposta era inconsistente com o Artigo XI do GATT, o qual limita o uso de proibições ou restrições de importação, e não encontrava justificativa no Artigo XX do GATT, o qual giza as exceções gerais às regras, inclusive por razões ambientais[8].

O quarto tipo de regulamento é nominado de administração por arranjos híbridos intergovernamentais e privados. Nesse modelo, há a intersecção de atores privados e governamentais. Exemplo proeminente é a Internet Corporation for Assigned Names and Numbers – ICANN, entidade internacional sem fins lucrativos responsável pela alocação do espaço de endereços de Protocolos da Internet; pela atribuição de identificadores de protocolo; pela administração de nomes de domínio de primeiro nível genérico [gTLD] e com códigos de países [ccTLDs], assim como as funções de gerenciamento do sistema de servidores raiz.

Esses serviços eram prestados mediante contrato havido com o governo dos Estados Unidos com a autoridade para atribuição de números na internet [ANA - Internet Assigned Numbers Authority]. Hoje, é uma parceria público-privada, cujas decisões se dçao por concenso dedicada a preservar a estabilidade operacional da Internet, promover a concorrência e conseguir a ampla representação das comunidades globais da Internet [9].

 Por derradeiro, temos a administração por instituições privadas com funções de regulação. No mundo globalizado, há organismos privados que realizam funções reguladoras, exercendo papel não assumido por instituições públicas internacionais e, nesse contexto, adquirindo relevância porque essas atribuições reguladoras assumidas pelo ente privado tornaram-se transnacionais e, consequentemente, as suas decisões atingem nível global.

Como exemplo, tem-se a Organização Internacional para Padronização [International Organization for Standardization – ISO, que não é o acrônimo da entidade, mas palavra de origem grega, que significa igualdade], entidade que congrega os órgãos de padronização/normalização de cento e sessenta e dois países, aprovando normas para produtos e regras direcionados a todo o mundo, em diversas áreas de interesse econômico e técnico[10].

Portanto, há diversas modalidades para a criação de uma entidade global para administrar a IA. Desde modelo menos robusto das redes transnacionais, até as tradicionais organizações internacionais formais, passando pela regulamentação distribuída, por uma forma de regulamentação híbrida ou mediante regulamentação privada.

 

5. Um modelo para a administração global da IA

Problemas globais exigem soluções globais. Mais do que um problema global, a IA é uma singularidade do Direito, que se encontra ao nível do uso pacífico da energia nuclear e da não proliferação de armas nucleares; do combate ao terrorismo e das ameaças climáticas.

A necessidade uma autoridade reguladora foi recentemente aborda em duas cartas abertas de grande importância para a temática da IA. A primeira, já mencionada, de autoria da Future of Life Institute[11], e a segunda proveniente da OpenAI[12], a desenvolvedora do ChatGPT. Ambas convergem para a necessidade de regulamentação da IA, no alerta para os riscos profundos para a humanidade trazidos pela IA e na possibilidade de grande mudança e de ganhos. As Cartas nos trazem indícios de como deveria ser o funcionamento dessa agência regulamentadora.

A Future of Life Institute defende que as políticas de governança devem contemplar a criação de autoridades novas e capazes dedicadas à IA; a supervisão e o rastreamento de sistemas de IA altamente capazes e grandes pools de capacidade computacional; a criação de sistemas de proveniência e de marca de água para ajudar a distinguir os reais dos sintéticos e para rastrear fugas de modelos; a criação de um ecossistema robusto de auditoria e certificação; a responsabilidade por danos causados pela IA; o financiamento público robusto para a investigação técnica em matéria de segurança da IA; e a criação de instituições com bons recursos para lidar com as dramáticas perturbações econômicas e políticas que a IA pode vir a causar.

A OpenAI, por sua vez, parte do pressuposto de que os governos ao redor do mundo poderiam estabelecer um projeto englobando os muitos dos esforços já existentes; limitando a taxa de crescimento da capacidade de IA; e fiscalizando as empresas individuais de IA – essa proposta se parece com o modelo de redes transnacionais. Em outra vertente, propõe a criação de uma agência nos moldes da AIEA, no entanto, voltada somente para a Superinteliência Artificial.

A OpenIA admite, todavia, que, ultrapassado determinado limite de capacidade da IA ou de recurso computacional, seria necessária uma autoridade internacional apta a inspecionar sistemas, exigir auditorias, testar a conformidade com os padrões de segurança, impor restrições aos graus de implantação e níveis de segurança.

Diante da complexidade e da demora para a criação dessa agência, a carta propõe que desde já as empresas acordem voluntariamente em começar a implementar elementos que poderiam ser estabelecidos pela futura agência, não descartando a possibilidade de que, singularmente, Estados poderiam adotar essa medida. Por fim, propõe uma forma de autorregulação, a partir capacidade das empresas de tornara Superinteligência Artificial segura.

A OpenAI propõe o uso simultâneo de vários dos tipos de regulamentação entabulados pelo GAL Project e também defende a desnecessidade de aplicação dessas formas de regulamentação ou mecanismos de licenças e auditorias para projetos abertos abaixo de um determinado nível de IA.

Vistos esses posicionamentos, cabe retomar os nichos de regulamentação estabelecidos pelo GAL Project, a fim de encontrar aquele que melhor se amolda ao enfrentamento da questão da IA.

É perceptível que nem todos os problemas globais ali catalogados pelo GAL Project representam uma singularidade para o Direito.

Talvez o mundo fosse um pouco mais caótico ou menos avançado sem uma administração por arranjos híbridos como o trazido pela ICANN; ou talvez fosse um pouco mais caótico pela ausência de padrões internacionais, como a ISO.  De igual modo, a ausência de associações regulatórias informais ou de redes regulatórias transnacionais poderia tornar o combate a certas condutas indesejáveis mais difícil.

Contudo, a falta dessas instituições e de seu nicho regulatório não indica em ameaça à organização social a nível internacional e, menos ainda, local. A humanidade estaria alguns passos atrás, mas não estaria exatamente ameaçada. Logo esses nichos não são instrumentos adequados para o enfrentamento de uma singularidade do Direito.

Essas modalidades de regulamentação funcionam e ocupam nicho próprio no espaço globalizado e não se descura que estas formas de regulamentação possam ser empregadas em algum espaço específico da própria IA, notadamente no que diz respeito à Inteligência Artificial Limitada e em complementação à regulamentação a ser conferida por um ente global mais robusto destinado a regular a Inteligência Artificial Geral e a Superinteligência Artificial.

Este ente global mais robusto deve derivar da administração por organizações internacionais formais. O modelo adequado talvez seja o atualmente utilizado pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA, em português – em inglês o acrônimo é IAEA, International Atomic Energy Agency), uma agência dentro da família das Nações Unidas, possuidora de estrutura legal e órgãos de governança, como uma Conferência Geral, composta por representantes de Estados Membros e um Conselho de Governança para a formulação das políticas da agência.

Nessa senda, conveniente destacar que a edição do Diário de Notícias de 13 de junho de 2023[13] reportou a declaração dada à imprensa mundial pelo secretário-geral das Nações Unidas (ONU), Antônio Guterres em favor da agência internacional, com funções regulatórias, para supervisionar o desenvolvimento da IA nos moldes da AIEA. Para além, adiantou que está sendo preparada uma conferência da ONU sobre o tema, ainda este ano, a ser realizada no Reino Unido, bem como a criação de um órgão consultivo para IA.

De todo modo, é fato que inexiste essa agência internacional. Logo, é salutar que iniciativas locais e regionais têm sido adotadas para regulamentar a IA. Nesse contexto, vale citar que o Conselho da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico [OCDE], apresentou, por proposta da UE, “Recomendações sobre a Inteligência Artificial”, adotadas por seus membros[14] e as iniciativas da União Europeia [UE], tanto pela edição, em 19 de fevereiro de 2020, do Livro Branco sobre IA[15], quanto pela proposta, em fase final de tramitação, de um Regulamento para a IA[16], em 21 de abril de 2021, bem como pela edição de Resolução sobre IA[17], de 3 de maio de 2022.

Essas iniciativas regulatórias regionais possuem aplicabilidade maior quanto à Inteligência Artificial Limitada, tangenciando, a Inteligência Artificial Geral e a Superinteligência Artificial.  De qualquer modo, a existência de normatizações em âmbito local, blocos regionais ou no seio de organizações internacionais não contrariam a ideia da necessidade de criação de uma regulamentação global sobre o tema por parte de organização internacional formal específica para tratar de IA. Pelo contrário. Essas iniciativas pavimentam a construção da futura regulamentação global do tema e os eventuais insucessos das normas locais em impor conduta aos grandes desenvolvedores de IA reforçarão a busca pela integração a um esforço coletivo para a solução do enigma dessa Esfinge pós-moderna.

6. Conclusão

   A IA desafia a sociedade humana do século XXI e seu futuro. Conquanto pareça longíquo um eventual domínio das máquinas, os efeitos maléficos da IA já são tão notáveis quanto seus benefícios, especialmente no que tange à afrontas a direitos humanos e fundamentais, alguns deles os mencionados no Blueprint for na AI Bill of Rights[18], lançado pelo Governo dos Estados Unidos, como a algoritmos impedindo acesso de pessoas mais velhas a benefícios de saúde e pessoas negras sendo impedidas de fazer transplante de rim porque um sistema de IA presumiu que corriam menos risco de doença renal.

A IA, inevitavelmente, caminhará com a humanidade, de forma cada vez mais próxima. Constitui-se em fato jurídico que afeta a vida no planeta bem como a forma como se dá a convivência e a cultura entre os povos.

Há um espaço global e o desejo de que uma Administração Global transparente, nos moldes da Agência Internacional de Energia Atômica, surja e ordene o caminhar deste admirável mundo, atribuindo responsabilidades, salvaguardas, direitos, deveres, sistemas de fiscalização e de verificação de um regulamento global para a Inteligência Artificial Geral e para a Superinteligência Artificial. Nessa senda, é importante o envolvimento dos diversos governos e a participação mesmo de desenvolvedores para que a construção se faça da maneira mais adequada e segura. Afinal, como ensina o poeta, “um galo sozinho não tece a manhã: ele precisará sempre de outros galos” [19].

 Referências:

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_________________ - Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho estabelecendo regras harmonizadas sobre inteligência artificial (Lei de Inteligência Artificial) e alterando certos legislativos da União. Disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX:52021PC0206. Acesso em 25 abr. 2023.

ESTADOS UNIDOS – The White House. Blueprint for an AI Bill of Rights: A Vision for Protecting Our Civil Rights in the Algorithmic Age. Disponível em https://www.whitehouse.gov/ostp/news-updates/2022/10/04/blueprint-for-an-ai-bill-of-rightsa-vision-for-protecting-our-civil-rights-in-the-algorithmic-age/ Acesso em 20 jun. 2023.

VERDIER, Pierre-Hugues. Transnational regulatory networks and their limits, The Yale Journal of International Law, v. 34, nº 1, 2009, pp. 113-172.

 


Sobre o autor
Claudio Alves

Oficial da Área de Direito do Quadro Complementar de Oficiais do Exército Brasileiro.

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