RESUMO: Este artigo analisa a liberdade de expressão no humor, destacando seu papel essencial nas sociedades democráticas e sua evolução ao longo do tempo. Embora o humor seja uma forma importante de expressão crítica e cultural, ele enfrenta limites impostos pela proteção de direitos como a dignidade, honra e imagem das pessoas, especialmente de grupos marginalizados. Utilizando pesquisa bibliográfica e analisando casos judiciais, o artigo examina como o sistema jurídico brasileiro lida com o equilíbrio entre a liberdade de criação humorística e a preservação dos direitos da personalidade.
Palavras-chave: Liberdade de Expressão; Humor; Responsabilidade Civil; Dignidade da pessoa humana.
SUMÁRIO. Introdução. 1. O Riso como Forma de Liberdade de Expressão. 2. Fronteiras da Liberdade de Expressão e a Dignidade da Pessoa Humana. 3. Judicialização do Humor. 4. O Abuso de Direito e suas Consequências. 5. O Papel da Responsabilidade Civil no Contexto Humorístico. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
A liberdade de expressão é um dos pilares fundamentais das sociedades democráticas, permitindo que indivíduos se manifestem e compartilhem suas ideias, opiniões e criações artísticas sem medo de censura. Dentro desse contexto, o humor emerge como uma forma singular de expressão, capaz de provocar reflexões profundas sobre questões sociais, políticas e culturais, ao mesmo tempo em que oferece alívio e entretenimento. Desde suas raízes no teatro grego até as manifestações contemporâneas em plataformas digitais, o humor tem sido um reflexo das tensões e dinâmicas sociais.
Entretanto, a liberdade de expressão no humor não é um conceito absoluto. A coexistência de direitos, como a dignidade da pessoa humana e a proteção à honra e à imagem, levanta questões complexas sobre os limites que devem ser impostos à criatividade humorística. O desafio reside em encontrar um equilíbrio entre a proteção da liberdade de expressão e a preservação dos direitos fundamentais de indivíduos e grupos, especialmente aqueles historicamente marginalizados.
O artigo adota uma abordagem indutiva e qualitativa, utilizando a técnica de pesquisa bibliográfica. Nele, exploraremos a evolução do humor como forma de liberdade de expressão, analisando os limites e as responsabilidades que acompanham essa prática. Através da análise de casos judiciais e da doutrina, buscaremos entender como o sistema jurídico brasileiro lida com a interseção entre humor, liberdade de expressão e os direitos da personalidade, destacando a importância de um debate contínuo sobre esses temas em uma sociedade pluralista e democrática.
1. O RISO COMO FORMA DE LIBERDADE DE EXPRESSÃO
O humor é uma característica intrínseca à natureza humana, atuando como uma poderosa ferramenta de crítica social e política, com impacto em diversas esferas da sociedade, proporcionando alívio para tensões cotidianas ou puro entretenimento; ele acompanha a história da humanidade desde seus primórdios, refletindo e influenciando contextos culturais ao longo do tempo.
Inicialmente, no teatro grego, o humor era considerado uma arte de menor relevância, retratando o homem em situações cômicas e degradantes, em interação com figuras vistas como inferiores, como tolos ou escravos. Ao longo dos séculos, o humor evoluiu; na Idade Média, a Igreja Católica incorporou o riso em suas missas, estabelecendo a distinção entre o riso benevolente, voltado ao entretenimento construtivo, e o riso malevolente, associado à zombaria e à degradação. Atualmente, o humor se manifesta de inúmeras formas, como paródias, charges, livros, filmes, anedotas e shows de stand-up, além de expressões mais recentes trazidas pela era digital, como memes, podcasts, live streams e vídeos, amplamente disseminados pelas redes sociais.1
Em decorrência da relevante carga social que o humor adquiriu ao longo dos anos, diversas teorias foram desenvolvidas para explicar os mecanismos que geram o riso e o humor, suas funções sociais, psicológicas e filosóficas, além de seu impacto nas interações humanas, sendo as principais delas: a teoria da superioridade, que estabelece que rimos ao nos sentirmos superiores a alguém ou a uma situação, sendo o riso uma expressão de triunfo sobre a fraqueza ou defeito alheio; a teoria da incongruência, que, assim como a anterior, tem suas raízes nos estudos da antiguidade greco-romana e sugere que o humor surge da surpresa e da quebra de expectativas, violando padrões de pensamento ou comportamento; e, por fim, a teoria do alívio, que propõe que o riso atua como uma válvula de escape, permitindo a liberação de tensões e emoções reprimidas, servindo para suavizar as restrições impostas tanto por fatores externos, como a cultura e seus tabus, quanto por limitações internas, como os limites da capacidade de compreensão do indivíduo.2
Logo, em decorrência relevante ferramenta de comunicação, crítica e entretenimento, independentemente das formas pelas quais o humor se manifesta, é certo que ele está protegido pelo princípio da liberdade de expressão, um direito fundamental consagrado no art. 5º, incisos IV e IX, da Constituição Federal. No entanto, essa mesma liberdade, frequentemente motivo de polêmica e divergências, encontra limites em outros direitos igualmente garantidos, como a intimidade, a vida privada, a honra, a imagem das pessoas e a dignidade da pessoa humana, gerando a necessidade de refletir sobre os limites dessa expressão e se eles realmente existem.
2. FRONTEIRAS DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
O lema da Revolução Francesa, "liberdade, igualdade e fraternidade", foi um marco na evolução jurídica, contribuindo para a classificação dos direitos fundamentais em diferentes dimensões. A liberdade, em especial, integra a primeira dimensão dos direitos, fruto das revoluções liberais do século XVIII, como a Revolução Francesa e a Americana, que buscavam garantir a proteção do indivíduo contra a intervenção estatal, assegurando sua autonomia e resistência ao poder do Estado.3
No Brasil, a liberdade de expressão percorreu um longo caminho até sua plena consagração. No período colonial, o país estava sob severas restrições impostas por Portugal à difusão de ideias, cenário que se agravou durante o regime militar, quando a censura foi intensificada por dispositivos legais. Nessa fase, a liberdade de expressão foi limitada por motivos políticos e morais, mas, com o avanço da abertura política, culminando na redemocratização e na Constituição de 1988, as restrições foram gradualmente aliviadas.4
Em resposta às opressões históricas, a nossa Lei Maior elevou a liberdade de expressão ao status de Direito Fundamental, expresso no artigo 5º, incisos IV e IX, além do artigo 220. Tais dispositivos asseguram a livre manifestação de ideias em diversas formas e conteúdos, sejam intelectuais, artísticos, religiosos, científicos ou de comunicação, pois como destaca Paulo Gonet, "a liberdade de expressão é um dos mais relevantes e preciosos direitos fundamentais, correspondendo a uma das mais antigas reivindicações da humanidade ao longo da história."5
À vista de todo o exposto, podemos observar que parte da doutrina e da jurisprudência, sustentam que a liberdade de expressão merece proteção preferencial quando em conflito com outros direitos fundamentais, em razão de sua estreita ligação com o princípio democrático, especialmente considerando os resquícios do passado autoritário brasileiro, sendo que nos ensinamentos do Ministro Luís Roberto Barroso:
Tanto em sua dimensão individual como, especialmente, na coletiva, entende-se que as liberdades de informação e de expressão servem de fundamento para o exercício de outras liberdades. o que justifica sua posição de preferência em tese (embora não de superioridade) em relação aos direitos individualmente considerados.6
E complementa:
Na colisão entre a liberdade de informação e de expressão, de um lado, e os direitos da personalidade, de outro, destacam-se como elementos de ponderação: a veracidade do fato, a licitude do meio empregado na obtenção da informação, a personalidade pública ou estritamente privada da pessoa objeto da notícia, o local do fato, a natureza do fato, a existência de interesse público na divulgação, especialmente quando o fato decorra da atuação de órgãos ou entidades públicas e a preferência por medidas que não envolvam a proibição prévia da divulgação. Tais parâmetros servem de guia para o intérprete no exame das circunstâncias do caso concreto e permitem certa objetividade às suas escolhas.7
Por outro lado, uma corrente doutrinária no Direito Civil, representada por autores como Anderson Schreiber e consolidada no Enunciado 613 da V Jornada de Direito Civil, defende que "a liberdade de expressão não ocupa posição preferencial em relação aos direitos da personalidade no ordenamento jurídico brasileiro"8. Segundo essa visão, não há prevalência abstrata de qualquer direito; é necessário analisar as peculiaridades de cada caso concreto.
Os direitos da personalidade, caracterizados pela intransmissibilidade, irrenunciabilidade e pela impossibilidade de serem voluntariamente limitados, exceto em situações específicas e temporárias, abrangem aspectos como a vida, a honra, a imagem e o corpo, entre outros. E, justamente por isso, frequentemente colidem com a liberdade de expressão. Esses direitos possuem um peso significativo devido à sua conexão direta com a dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da República, conforme disposto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal. A Constituição, além de assegurar a reparação dos danos, também promove sua prevenção. Para essa corrente doutrinária, é essencial a adoção de mecanismos de proteção eficazes, como a remoção de fotos ou vídeos humorísticos que constranjam indivíduos nas redes sociais, ou até a proibição de publicações que possam ofender tais direitos.9
Portanto, a Constituição não se limita a assegurar a reparação de danos, mas busca evitar sua ocorrência. Dessa forma, a utilização de medidas preventivas, como a remoção de conteúdos que violem direitos da personalidade ou a proibição de publicações ofensivas, é essencial para a proteção eficaz desses direitos.Parte inferior do formulário
3. JUDICIALIZAÇÃO DO HUMOR
Neste capítulo, serão examinados julgados sobre os limites do humor, sarcasmo e paródia, especialmente quando em confronto com a dignidade humana e outros direitos da personalidade. A análise dessas decisões judiciais revela o constante esforço dos tribunais em equilibrar os valores constitucionais envolvidos, como a liberdade de criação artística e a proteção à honra, imagem e privacidade.
I) Leo Lins e a Proibição Genérica de Conteúdo: No julgamento da Reclamação 60.382/SP, o ministro André Mendonça, em decisão monocrática, deu provimento ao pedido para cassar a liminar proferida pela juíza da Vara de Violência Contra Infantes, Idosos, Pessoas com Deficiência e Vítimas de Tráfico Interno de Pessoas da Comarca de São Paulo. A liminar determinava: a) Proibição de compartilhar, divulgar ou baixar arquivos com conteúdo depreciativo ou humilhante que discrimine por raça, cor, etnia, religião, orientação sexual, condição de pessoa com deficiência, idosos, crianças, mulheres ou qualquer grupo vulnerável; b) Proibição de fazer comentários ou divulgar arquivos em apresentações públicas com teor discriminatório contra grupos minoritários ou vulneráveis; c) Obrigação de remover conteúdos depreciativos em plataformas digitais, redes sociais ou sites que desrespeitem os direitos desses grupos, com comprovação nos autos.
Segundo o Ministro, a decisão ultrapassou a simples exclusão de falas ou vídeos específicos, emitindo comandos genéricos e amplos, o que contraria precedentes da Corte e viola os princípios da proporcionalidade e razoabilidade. O relator também observou que as falas supostamente ilícitas foram proferidas em um show de stand-up comedy, ambiente reconhecido pelo uso de exagero, crítica ácida e polêmica, no qual o público espera, muitas vezes, comentários ofensivos como parte da experiência de entretenimento.10
II) Sátira nas Eleições: Um dos precedentes recentes mais notórios sobre o tema foi debatido nos autos da ADI 4.451, proposta pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, tendo por objeto os incisos II e III do art. 45 da Lei 9.504/1997, que impediam a veiculação, por emissoras de rádio e televisão, de programas humorísticos envolvendo candidatos, partidos e coligações no período de três meses anteriores ao pleito. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao examinar a ação, deferiu o pedido para declarar a inconstitucionalidade dos referidos incisos, entendendo tratar-se de censura prévia, destacando que: “o direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias.”11
III) Especial de Natal do Porta dos Fundos: O caso teve início quando a Netflix incluiu em seu catálogo o "Especial de Natal Porta dos Fundos: A Primeira Tentação de Cristo", uma sátira ao cristianismo que ganhou grande repercussão nacional. Como resultado, o pedido de retirada da obra foi deferido pela 2ª Instância do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, fundamentando-se na premissa de que a liberdade de expressão, de imprensa e artística não é absoluta. Essa decisão resultou na Reclamação 38.782/RJ, ajuizada perante a Corte Constitucional. A 2ª Turma, por unanimidade, concluiu que a obra em questão não incitava violência contra grupos religiosos, mas constituía, na verdade, uma crítica expressa por meio de sátira a elementos fundamentais do cristianismo. A decisão ressaltou que, embora a qualidade da produção artística possa ser discutida, a proibição de sua divulgação deve ser restrita a casos excepcionalíssimos, como a prática de atos ilícitos, incitação à violência, discriminação e propagação de discurso de ódio. Assim, o mero desagrado de parte da população, ainda que majoritária, não justifica a remoção da obra em uma sociedade democrática e pluralista como a brasileira.12
IV) Revista Bundas: O Recurso Especial nº 736.015/RJ foi interposto pelas descendentes do Barão Smith de Vasconcellos, com o intuito de obter indenização por danos morais após a publicação de uma reportagem na quarta edição da revista humorística "Bundas". A matéria utilizou uma narrativa de domínio público para associar ironicamente a memória do antepassado das recorrentes ao epíteto "Barão da Merda", vinculando sua imagem e a do Castelo Itaipava, que pertence a uma delas, ao nome "Castelo de Bundas", tendo em vista que construção, erguida na década de 1940 pelo Barão, foi financiada pela fortuna oriunda de uma fábrica de papel higiênico.
Ao analisar o caso, a Relatora Nancy Andrighi concluiu que a revista "Bundas" se caracteriza como uma publicação explicitamente satírica, cuja proposta é criticar excessos sociais por meio do humor. A relatora enfatizou que a matéria não tinha a intenção de ofender pessoalmente o Barão ou o Castelo de Itaipava, mas sim de criticar costumes contemporâneos relacionados a outra publicação que promove a vida íntima de celebridades, bem como advertiu que não cabe ao judiciário dizer se o humor é 'inteligente' ou 'popular', já que segundo a Relatora: “tal classificação é, de per si, odiosa, porquanto discrimina a atividade humorística não com base nela mesma, mas em função do público que a consome, levando a crer que todos os produtos culturais destinados à parcela menos culta da população são, necessariamente, pejorativos, vulgares, abjetos, se analisados por pessoas de formação intelectual superior.” 13
V) Rafinha Bastos e Wanessa Camargo: Outro caso analisado pela Corte Cidadã envolveu Rafinha Bastos, enquanto apresentador do programa CQC, da Band. Durante uma transmissão, ao ouvir o nome de Wanessa Camargo, que estava grávida na época, Bastos fez o comentário: "comeria ela e o bebê". Diante da gravidade da fala, foi solicitada uma retratação pública por parte do comediante, que, no entanto, não ocorreu, sendo um dos fatores que motivou o ajuizamento da ação indenizatória proposta pela cantora, seu marido e seu filho, ainda não nascido. A ação buscava a reparação por danos morais e a obtenção de um pedido formal de desculpas do humorista, o que foi reconhecido tanto em primeira quanto em segunda instância. O tribunal entendeu que houve exercício abusivo e irregular da liberdade de expressão, resultando em violação à honra da família e causando-lhes transtornos e constrangimentos, ensejando, assim, a responsabilização do comediante.14
VI) Danilo Gentili e a Doadora de Leite:A Quarta Turma do STJ manteve a decisão do TJPE que fixou em R$ 80 mil a indenização por danos morais a uma doadora de leite, técnica de enfermagem, que foi ridicularizada no programa "Agora é Tarde", apresentado por Danilo Gentili. A mulher alegou que as piadas afetaram sua vida pessoal e profissional, além de prejudicar a produção de leite, essencial para crianças que dela dependiam. Em primeira instância, a indenização foi fixada em R$ 200 mil, mas o TJPE reduziu o valor, reconhecendo o abuso da liberdade de expressão, mas considerando o montante excessivo. O STJ rejeitou o recurso dos réus, que defendiam o humor como exercício de liberdade de expressão e pediam redução da indenização, afirmando que o valor não era exorbitante e não cabia revisão em casos com peculiaridades específicas.15
VII) Doutora Lorca: O Conselho Regional de Nutricionistas da 4ª Região moveu uma ação contra a Globo para interromper a exibição do quadro humorístico "Dra. Lorca", do programa "Zorra Total", alegando que ridicularizava a profissão de nutricionista e disseminava informações errôneas sobre alimentação. O pedido foi rejeitado em primeira instância com base na liberdade de expressão, e o Tribunal Regional Federal da 2ª Região confirmou a decisão, destacando que o quadro humorístico fazia parte de um programa repleto de personagens exagerados e absurdos, incapazes de confundir o público sobre a seriedade da mensagem. O tribunal também ressaltou que não foi demonstrada a intenção de deturpar a imagem dos nutricionistas, mas sim de satirizar uma má profissional em situações absurdas. Assim, considerou que esses elementos não justificavam a censura do programa, sob pena de violar a liberdade de expressão garantida pela Constituição, alinhando-se ao precedente do STF na ADI 4451-DF.16