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A filosofia de Machado de Assis. Animais do mundo.

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Agenda 29/10/2024 às 14:01

                  “Não sei se já alguma vez disse ao leitor que as ideias, para mim, são como as nozes,  e que até hoje não descobri melhor processo para saber o que está dentro de umas e de outras, – senão quebrá-las.” Machado de Assis (2006, v.3, p.448).

 

 

 

Resumo:

Situar Machado de Assis na encruzilhada que é a aporia, em certa medida confronta o pensamento filosófico brasileiro. Mas, ao menos nos introduz à consciência de modernidade, movimento cuja faceta filosófica força a reflexão sobre si mesmo, e ainda a interpretação da nacionalidade. Os românticos se afinavam com o ecletismo espiritualista. Em franca oposição, ao positivismo que solicitava maior rigor científico, exaltando a materialidade e o progresso.

 

Palavras-chave: Machado de Assis. Literatura. Realismo. Filosofia. República. Liberalismo.

 

 

É verdade que a ficção de Machado de Assis apresenta nítida vocação filosófica e jurídica[1]. Mesmo as poesias da juventude de Machado de Assis apresentaram temas cristãos, cujos fundamentos teóricos que observam Santo Agostinho que congregava duas perspectivas: o ecletismo romântico e a escatologia soteriológica[2]. A primeira construída indiretamente por meio da recepção dos Pensamentos de Blaise Pascal.

Afinal, Machado pensava a poesia como estratégia metafísica de acessar à verdade.  Já a segunda, considera-se o desenvolvimento do seu pensamento ficcional no contexto da filosofia oitocentista. E, reconhece-se que a filosofia de Pascal era o eixo em torno do qual orbitavam os intelectuais pátrios que atentavam às questões políticas, religiosas, econômicas e sociais[3].

Sendo assim, o Humanitismo é a  doutrina da injustiça:  Recordemos a nossa explicação da palavra injustiça, o que  queremos dizer é que ele (o homem) não se contenta em afirmar  a vontade de viver, tal como ela se manifesta no seu corpo, mas  leva esta afirmação até negar a vontade enquanto ela aparece em  outros indivíduos; e a prova é que ele tenta sujeitar-lhes as  forças à sua própria vontade, e suprir-lhes a existência desde que  elas constituam um obstáculo às pretensões desta sua vontade (Schopenhauer: 2007).

Para muitos críticos, o Humanitismo é uma pura e simples sátira do Humanismo  ou de outras correntes filosóficas do século XIX, como o Positivismo ou o  Evolucionismo darwinista.

A obra de Machado é variada em gêneros: de ensaios filosóficos a crítica literária e de teatro, de poesia a contos e romances[4], de pensamentos avulsos a crônicas e memórias.

Já em “Memórias Póstumas de Braz Cubas”, Machado de Assis revelou a atitude essencialmente filosófica do distanciamento reflexivo[5], onde o narrador e personagem são um mesmo defunto que, por conta desta sua condição, se mostra sem comprometimento algum com críticas e juízos posteriores.

Embora demonstrando por diversos momentos certa atitude filosófica e, por vezes, a influência de filósofos como Montaigne, Pascal e Schopenhauer, Machado não se enquadra em nenhuma corrente filosófica específica, chegando mesmo a ridicularizar certos aspectos filosóficos com os quais discorda. Declara, inclusive, não fazer parte de nenhuma delas, principalmente ao ceticismo[6], ao qual ainda é frequentemente associado.

Pouco sabemos a respeito da primeira infância do escritor e de como lhe foram transmitidas as lições, e menos ainda, o seu tempo de adolescência. Detectar quais fontes ele incorporou e veio a construir sua visão conceitual de mundo, é um desafio hercúleo.

Confesso que quando li, in litteris: “Eu fui criado com sinos, com estes pobres sinos das nossas igrejas. Quando um dia li o capítulo dos sinos em Chateaubriand, tocaram-me tanto as palavras daquele grande espírito, que me senti (desculpem-me a expressão) um Chateaubriand desencarnado e reencarnado” (ASSIS, 2015, IV).

Esse teor consta da crônica publicada em 1862 na Gazeta de Notícias. Onde o escritor se referiu e revelou toda a sensibilidade de cristãos, quando toda a dinâmica vita era mensurada pelas badaladas de sinos da Igreja. Afinal, a defesa da tradição cristã fora apropriada por conta de ataques que os intelectuais vinham sofrendo desde antes da Revolução Francesa[7].

Essa espécie de ideologia tradicionalista veem a reduzir o debate sobre uma razão universal para o âmbito local de nacionalidades, dando primazia às instituições intermediárias que se assentam nas relações entre o Estado e a pessoa[8].

Ressalte-se que a Igreja Católica dotada de força social, política e moral deveria fixar e proteger as liberdades, disseminando a teologia do pecado original e a concessão de Deus do livre-arbítrio.

Afinal, para combater os hereges, sofistas e galhofeiros da religião, se utilizou do método de exposição de Pascal[9] que não exigia das coisas da religião a mesma ordem de provas demonstrativas que a ciência exige da razão.

Machado ao escrever na virada do século, fazendo alusão laica à cristandade juvenil é apenas um dos diversos sentidos que deu à religiosidade. Machado adere à tese de Chateaubriand, segundo a qual “se os sinos estivessem adjuntos a quaisquer monumentos que não fossem igrejas, teriam perdido a simpatia moral de nossos corações.

Machado foi católico assim como seus pais, o menino tivesse exercido a função de coroinha na igreja de Nossa Senhora da Lampadosa. Certo é que conviveu e recebeu ensinamentos na sacristia, familiarizando-se com as escrituras.

Os seus primeiros poemas apresentam um conjunto de escrúpulos cristãos, como a criação de um ambiente de agonia, a crença na existência da alma e do paraíso, o recurso à escatologia e à soteriologia, o elogio à cultura cristã, o pessimismo diante da fraqueza humana numa sociedade devassada moralmente e a constante ideia da redenção no salvador.

Machado sofreu com as mortes da irmã, do pai e, particularmente, da mãe que convulsionaram a sua visão do mundo dando um caráter byroniano. Em 1849, quando ainda tinha somente nove anos, sua mãe, Maria Leopoldina da Câmara Machado, faleceu devido ao sarampo.

O pesquisador independente Felipe Rissato descobriu, em 2016, um texto anônimo chamado 'Lembranças de Minha Mãe', publicado na segunda edição da Revista Luso-Brasileira.

Só posteriormente que viria o fato mais interessante: aquele. escreve Machado bem nas primeiras linhas da crônica. "Oh! Eu sou infeliz, muito infeliz... Aos nove anos perdi minha mãe, fiquei só no mundo; só como a rola sem ninho! Entrei no mundo das desilusões e dos enganos [...].".A mãe de Machado de Assis morre aos 36 (trinta e seis) anos. Mesmo com pouco tempo de convívio, causa marcas profundas no filho que ao longo de sua obra acaba prestando-lhe diversas homenagens, por meio de poemas e contos.

Em seus primeiros experimentos poéticos em verso, recordam a ausência da figura materna e, a vontade de se junta à mãe lá no paraíso   celestial. São exemplos as poesias “O meu viver”, “Saudades”, “Lágrimas”, “Um anjo” e “Minha mãe”, todas composições de 1856.

In litteris:

      “as poesias de Crisálidas guardam a antropologia cristã e o dualismo que culpa os prazeres do corpo pelos desvios da alma: Pouco antes, a candura, / Co’as brancas asas abertas, / Em um berço de ventura / A criança acalentava / Na santa paz do Senhor; / Para acordá-la era cedo, / E a pobre ainda dormia / Naquele mudo segredo / Que só abre o seio um dia / Para dar entrada a amor. [...] Criança, verás o engano / E o erro dos sonhos teus; / E dirás, –  então já tarde, – / Que por tais gozos não vale / Deixar os braços de Deus” (ASSIS, 2015, III).

Apesar de influenciado por Blaise Pascal e Arthur Schopenhauer, Machado de Assis tem uma estreita comunhão com Montaigne, e com a obra Ensaios, pois nessa aprendera (...) a não esquecer que o homem  é um animal, sujeito à natureza e a seus caprichos e, não a um soberano invulnerável da criação, arrogantemente senhor de seu destino.

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Constata-se Montaigne tanto no plano filosófico como também no formal. Lembremos que a obra "Os Ensaios" é uma espécie de autorretrato similar ao que ocorreu com a obra Memórias de Brás Cubas. Há outra característica em comum, como a análise de instituições, opiniões, caracteres e costumes. Cada qual em sua época, questionando o pragmatismo dogmático e investigando a complexidade humana. Outra união é o fato de não se vincularem a qualquer corrente, sendo céticos ou humanistas.

Blaise Pascal também exerce expressiva influência pois Machado  de Assis refutou tudo aquilo que considerou desnecessário. Como Montaigne, Pascal pensa o homem como um ser doente  e incurável, contudo vislumbra no cristianismo uma possível saída para seus problemas.  Machado não partilha dessa cogitação.

Para o escritor dos Pensamentos, “a miséria e a  dubiedade inerentes à natureza humana tinham um remédio transcendente. Machado  corrigiu esse aspecto da filosofia de Pascal com a influência do naturalismo e do  ceticismo de Montaigne”.

Segundo Pascal, o cristianismo[10] é a única religião contrária à natureza contrária ao senso comum e aos nossos prazeres. É a única que nos ensina que há no homem um grande princípio de grandeza e grande princípio de miséria.

O que fez por merecer os veementes protestos de Voltaire. Como iluminista que era Pascal, escrevia contra a natureza humana e, ainda, contrário aos ensinamentos do cristianismo, quais sejam, a simplicidade, a humanidade e a caridade.

Mas, para Machado de Assis a expressão de religiosidade culminara no desejo de morte, não em morte heroica e digna, mas apenas morte cristã e  libertadora. A apologia feita a Chateaubriand[11] é nitidamente agostiniana, por exemplo, nos debates a respeito da presença de Deus na exuberância da natureza e a superioridade da moral cristão.

Afinal, para o filósofo, os benefícios das ciências empíricas e a investigação sobre a natureza humana deveriam se associar a uma finalidade metafísica[12], que alcançasse deus por meio de poética específica, quase numa teologia de poeta. Só se pode galgar a epifania e transmitir em versos, a sua experiência sobrenatural[13].

Enfim, os partidários do bem que possuem o coração eivado de fé e repleto de virtudes cristãs[14], vige a moralidade regida por dogmas que seria superior ao relativismo pagão, muito interesseiro e cheio de opiniões. O último esforço da razão é reconhecer que existe uma infinidade de coisas que a ultrapassam.

No mundo religioso, apenas existe um ponto fixo, em torno do qual volvem todas as ideias, com a mais simples linguagem, isso mesmo será eloquente.

Há uma medicina moralista que disseca o ser humano e encontrar um órgão movediço, que não é anjo nem besta, mas repleto de paradoxos, desde que quem quer se mostrar como anjo ou se mostre como besta. Nunca se ama alguém mas somente as qualidades(B. Pascal).

O movimento de um barco à deriva só pode ser notado por quem está imóvel em terra. Do mesmo modo, existe uma perspectiva correta, nem longe nem perto demais, “um ponto indivisível que é o verdadeiro lugar” (PASCAL[15], 2005) para julgar uma pintura.

No âmbito moral, quem indica o ponto fixo é Jesus Cristo, imagem da condição humana, captada por apologistas como o próprio Pascal, Bossuet, Chateaubriand e Monte Alverne.

A liberdade resta circunscrita ao dogma do pecado original, mas cujo remédio depende da graça. A religiosidade não se divorciava do labor artístico. Existe a imagem poética que era considerada a expressão que persuadia o coração. E, nessa combinação, o poeta em Machado de Assis talvez galgasse de modo sublime a angústia e as outras emoções juvenis, como a saudade e tristeza.

Pela aparente proximidade conceitual dos termos religião, religiosidade e  espiritualidade, faz-se necessária uma delimitação do significado empregado a tais  palavras, uma vez que possuem sentidos distintos e assumem funções diferentes nas  vivências dos sujeitos[16].

A religiosidade se caracteriza a  partir de um vínculo estabelecido com uma organização religiosa, o que, como será  dissertado adiante, sugere uma diferença crucial perante a definição de espiritualidade.  A religiosidade pode ser definida como crença, prática e devoção à uma religião.

Compreende-se, portanto, que a espiritualidade se caracteriza como uma  dimensão que antecede a religião, podendo ou não incluir uma crença em algum  deus e/ou envolvimento com práticas religiosas.

Sua definição é advinda do conceito  de espírito, o qual diz de uma parte imaterial do homem, a espiritualidade pode ser  conceituada como uma necessidade interna, uma busca por um entendimento sobre  a vida e seus significados, sobre a relação de si com o mundo e com o transcendente,  justificando, a partir de experiências espirituais, toda uma existência.

O interesse dos biógrafos na poesia religiosa era um transcender as disputas humanas e comungar a verdade dada pela fé. É o caso do poema “Consummatum est!”[17] publicado em 1856 que se refere a uma exortação a Crista como forma de redenção humana.

De fato, Pascal apregoou que: "a fé cristã não visa, principalmente, senão a estabelecer estas duas coisas: a corrupção da natureza e a redenção de Jesus Cristo.

No cioso jogo de paradoxos e simetrias o mesmo tema veio a ser explorado em poesias como “O Profeta”, “Deus em ti”, “A um poeta”, e no longo poema “A redenção” e, nos versos de Fascinação e Ícaro.

No fundo, Ícaro[18] retrata o  homem de Pascal e de Santo Agostinho[19], as asas o diferencia dos demais animais terrestres, porém, não são suficientes para equipará-lo aos deus. E, de tão deslumbrado com a imagem do sol, o homem alado esquece que a sua natureza apenas lhe permite apenas um voo médio, equidistante das bestas e do firmemente.

Foi sua desmedida ambição, o vasto querer e a aspiração para o infinito componentes da antropologia negativa de Pascal, o amor-próprio e a suposição de grandeza devem ser reconhecidos e destruídos em favor da autonomia do sujeito[20].

Ao reconhecer a verdade do cristianismo conseguimos obter uma imagem mais concreta do ser humana. E, o reflexo da miséria humana, da qual Jesus Cristo redime, é a disposição contrária, a grandeza, que permite ultrapassar-se infinitamente.

Eis o reflexo humano de luz e positividade tão ignorado por Voltaire e, reconquistado por Machado de Assis em meio ao jogo de ilusões, de quem se liberta das mundanidades, conhece e até perdoa a miséria humana. Interessante é a frase: "Três coisas me entediam, no sentido físico e no sentido moral, na linguagem própria e na linguagem figurada: o rumor, o vento e a fumaça. " Chamfort[21].

Pascal viveu a escalada do absolutismo, do qual parecia emanar toda arbitrariedade da lei e da força. “A opinião é a rainha do mundo”, diz ele, desde que o seu reinado se sustente pela força (PASCAL, 2005).

A força é indisputável e amplamente reconhecida. Mas, sozinha, a força é tirânica. A justiça varia conforme o capricho das leis e do costume. E, ainda segue a moda da jurisprudência. Sozinha ou isolada, ela é impotente. O melhor dos mundos reuniria força e justiça. A justiça sem a força é impotente, a força sem justiça é tirana.

Na vã pedagogia de tentativas e erros que tentou explicar o humor bipolar de Machado de Assis, muito variável conforme suas referências intelectuais, de um lado o forte tradicionalismo cristão e, de outro, a máquina divina do progresso, bem abençoada pelo nascente liberalismo republicano.

Atualmente, denominaríamos de ingênuo o excessivo entusiasmo dado aos valores daquele nascente momento e sistema econômico.

Em terras brasilis tivemos um liberalismo teórico que esbarrava nas determinações em prol da clientela.  O ensaio, a tentativa e o erro providenciaram algum senso crítico e a precaução de não se concluir verdades enquanto as premissas forem falsas. Por sorte ou por virtude, esse entusiasmo excessivo pelo capital não durou mais do que um ano.

O bíblico progresso avançou no curto período republicano na vida de Machado de Assis. A tentativa de solucionar os problemas políticos e estéticos adquiriu maior vulto através do ecletismo espiritualista.

Se a práxis poética fora estabelecida por meio do contato com o poeta Francisco Gonçalves Braga[22], a quem o Machado dedica e imita nas primeiras poesias, comparando-o a Bocage e Virgílio, é através das indicações de Sarmento, de acordo com Massa (1971), que a sua visão poética adquire robustez teórica.

Entre o discípulo e o mestre, encontra-se a filosofia espiritualista[23] do frei Monte Alverne: mais os seus sermões, é verdade, do que as suas anotações sobre os problemas de metafísica. Machado dedica ao padre uma poesia escrita por ocasião da morte de Alverne, em 1858.

O sério debate sobre o liberalismo brasileiro surgiu do legado das reformas pombalinas no Império português e do conhecimento das experiências revolucionárias de França, Inglaterra e Estados Unidos. O Correio Brasiliense, fundado por Hipólito da Costa[24], contribuiu significativamente para familiarizar a elite com o ideário desse novo regime.

Esse jornal assumiu um caráter doutrinário, por meio do comentário de obras e fatos históricos e da apresentação de um programa liberal, que incluía a criação de universidades, liberdade de imprensa, independência do sistema judiciário e eleitoral, abolição da escravatura, investimento tecnológico, avanço científico etc.

Além disso, surgiram, na segunda metade da década de trinta, condições materiais para a efetivação do debate filosófico, como a edição da revista Niterói, a estruturação do Colégio Pedro II e a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

A figura de Pascal era hasteada para representar a conciliação entre os movimentos do progresso e do cristianismo. A invenção da primeira máquina aritmética, a Pascaline[25], revolucionou o modo como pensamos a interface entre homem e máquina, uma vez que a feitura de cálculos, o raciocínio e a inferência pareciam ser exclusividades da mente humana.

Foi nesse contexto das discussões filosóficas modernas que se disseminou a tese de que o corpo humano se assemelha a uma máquina[26], pois ambos funcionam segundo regras mecânicas.

Os dualistas, discípulos de Descartes, pensavam que o homem era composto de matéria e espírito. Isso significa dizer que somos uma espécie de máquina pensante.

Para Descartes, o ser humano é mais do que uma justaposição destas duas substâncias; ele é uma unidade, na qual corpo e alma agem um sobre o outro. O homem cartesiano não é apenas um composto de espírito e matéria, mas uma união substancial.

No conto “Ideias de canário”, de 1863, o escritor  narrou a história de um ornitólogo que compra, numa loja de objetos usados, uma gaiola velha com um canário dentro. Intrigado com o fato de a ave trilar como se falasse e emitisse pensamentos próprios sobre o mundo, o cientista resolve estudar a língua do pássaro, suas relações com a música e o seu pensamento “animal” sobre a vida.

Porém, depois de várias tentativas, o ornitólogo se viu confuso e perplexo diante das ideias incomuns do canário, visto que este se revela bem mais sábio e esperto que o homem.

Com sua sabedoria singular e seu “raciocínio” incapturável, a ave coloca em questão não apenas a competência do ornitólogo, como também o olhar humano sobre a natureza, evidenciando, assim, os limites da razão, compreendida como atributo exclusivo e diferencial da espécie humana em relação às demais espécies.

Pode-se afirmar que, nesse conto, Machado de Assis exercitou uma visão irônica sobre as filosofias humanistas[27] amparadas na noção de racionalidade. Ao atribuir ao pássaro o que Heidegger[28] apud Maciel chamou, na esteira de Rilke[29], de a experiência do “Aberto”, o escritor brasileiro contraria a assertiva de que o animal é, à diferença dos humanos, “pobre de mundo”.

Realiza, portanto, uma crítica à chamada “máquina antropológica do humanismo” que, sobretudo após Descartes, instituiu a cisão radical entre homem e animal, humanidade e animalidade no mundo ocidental.

Machado tratou das relações controversas entre homens[30] e animais num mundo dominado pela ciência e pelo triunfo do racionalismo moderno. Ao fazer um elogio ao vegetarianismo, numa crônica sobre a greve de açougueiros acontecida no Rio de Janeiro em 1893, além de ter se manifestado ser contra as touradas e abordado criticamente a crueldade das práticas de vivissecção, comuns nos laboratórios científicos do tempo.

Ao questionar a prepotência da espécie humana em relação às demais espécies e atribuir aos viventes não humanos o exercício da subjetividade, Machado de Assis traz à baila suas inegáveis afinidades com os princípios que Michel Montaigne defendeu e desenvolveu no ensaio “Apologia de Raymond Sebond”[31] (segundo volume dos Ensaios, de 1580), no qual o filósofo francês empreende, com o propósito de desqualificar o dogma da razão humana, um longo e detalhado elogio aos animais (Montaigne 2006).

A grande contribuição de Montaigne para o debate moderno e contemporâneo em torno dos animais foi, sem dúvida, preparar o terreno para a construção futura de um novo olhar sobre o animal e o humano, não mais assentado nos atributos “próprios do homem”, mas na ideia de vida.

Por um lado, Montaigne refutou a crença em um logos único e suficiente, capaz de explicar todas as coisas, inclusive Deus, ele não descartou, por outro, a possibilidade de a razão poder ser exercida de outras maneiras e por outras criaturas não humanas.

Para o Machado de Assis, é muita presunção do homem pensar que pode assegurar a sua própria supremacia em relação aos outros animais ao distribuir as faculdades físicas, emocionais e intelectuais que bem entende a estes.

Ao conferir aos viventes não humanos o papel de agentes, de seres dotados de inteligência, sensibilidade e saberes sobre o mundo, sem reuni-los propriamente no singular genérico “animal”, ele não deixou de reivindicar até mesmo que por vias oblíquas a nossa responsabilidade moral.

Em vários outros textos, entre crônicas e contos, Machado trata das relações controversas entre homens e animais num mundo dominado pela ciência e pelo triunfo do racionalismo moderno.

Há uma crônica datada de 15 de março de 1877. Vide um fragmento: “E querem saber por que detesto as touradas? Pensam que é por causa do homem?  É por causa do boi, unicamente do boi. Eu sou sócio (sentimentalmente falando) de todas as sociedades protetoras dos animais. O primeiro homem que se lembrou de criar uma sociedade protetora dos animais lavrou um grande tento em favor da humanidade”.

Aliás, que essa associação entre a violência contra os animais e a violência contra as pessoas foi também abordada por Machado de Assis no terrível “Conto alexandrino”, de 1884[32].

Escrito no apogeu do cientificismo do século XIX, o conto parece prefigurar os horrores cometidos pelos médicos nazistas nos campos de concentração, ao mostrar como as práticas de vivissecção de animais (no caso do conto, ratos) realizadas em nome do progresso da ciência moderna podem culminar também na dissecação e amputação de seres humanos tidos, pela lógica hierárquica das instâncias de poder, como inferiores, anômalos, insanos, incapazes e supostamente nocivos à sociedade.

Machado apresentou  uma teoria da alma em que a relação eu-mundo ganha um destaque fundamental  e que pode demonstrar uma crítica  machadiana à probabilidade de um  conhecimento efetivamente metafísico,  mas, por outro lado, poderíamos pensar  que, no campo do humano, a despeito  da pretensão moderna, apenas um  conhecimento relacional e irônico[33] seria  possível. Com isso, Machado nos  apresenta uma possibilidade de  compreender a “verdade” da alma  através de uma metafísica irônica[34].

A refinada jocosidade das caracterizações feitas por Machado de Assis nos revela a sinceridade cruel com o gênero humano que por vezes é identificado com um pessimismo exacerbado, talvez herança de Schopenhauer, um ser em que a sua história consiste num conjunto de misérias cujo fim está na própria destruição desse humano, ao fim e ao cabo, nada mais que  reles farrapo.

 

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Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

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