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Da possibilidade de alteração do nome civil da mulher vítima de violência doméstica

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Agenda 31/10/2024 às 09:06

A legislação atual protege adequadamente as mulheres vítimas de violência doméstica? Apesar da Lei Maria da Penha, ainda há falhas na proteção, sugerindo a necessidade de permitir a mudança de nome civil.

Resumo: O artigo reflete sobre a necessidade de atualização do sistema jurídico brasileiro para permitir a alteração do nome civil de mulheres vítimas de violência doméstica. Apesar da existência da Lei Maria da Penha e da recente Lei nº 14.857/2024, persistem dificuldades na proteção eficaz às vítimas, resultantes tanto de limitações legislativas quanto da omissão estatal. Essas leis já deram origem a outras normas, mas não têm conseguido impedir o aumento expressivo do número de feminicídios, que apenas no primeiro trimestre de 2024 alcançou 994 casos consumados e tentados. Destaca-se que essa violência decorre de pensamentos ultrapassados e misóginos, frequentemente reforçados por realidades regionais. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil por negligência no emblemático caso de Maria da Penha Maia Fernandes, evidenciando falhas na proteção e punição dos agressores. Por fim, sugere-se a alteração excepcional do nome civil das vítimas e de seus filhos, como medida adicional para ampliar sua segurança.

Palavras-chave: Violência Doméstica. Direitos Humanos. Lei Maria da Penha. Programa de Assistência a Vítimas. Alteração de nome civil.


1. INTRODUÇÃO

No Livro VI da Odisseia [considerada, juntamente com Ilíada, um dos dois principais poemas épicos da Grécia Antiga (séc. XIV a IX a.C.) atribuídos a Homero], encontra-se Nausicaä junto às suas servas quando surge Odisseu, completamente nu, implorando por ajuda. Nausicaä, filha do rei Alcínoo, após fornecer roupas para Odisseu orienta-o a ir diretamente para a casa de Alcínoo e apresentar o seu caso, primeiramente, à mãe, Arete, conhecida como mais sábia do que Alcínoo. Odisseu, seguindo a orientação de Nausicaä, aborda Arete abraçando-lhe os joelhos e ganhando sua aprovação e, após, é recebido como convidado por Alcínoo. Após contar-lhe suas aventuras, este fornece a Odisseu os navios com os quais retorna para Ítaca.

Já nos idos da Grécia Antiga (período compreendido entre os anos 508 a.C. e 322 a.C.), foi encenada em 458 a.C. a peça Oréstia, de Ésquilo, que nos revela a questão da justiça entre o direito materno e o direito paterno. Ao saber que sua filha com Agamenon, Ifigênia, foi sacrificada por este, Clitemnestra, juntamente com o seu amante, trama a morte do marido.

“Levada por sua paixão por Egisto, seu amante, Clitemnestra mata seu marido Agamenon, quando este regressava da guerra de Tróia; mas Orestes, filho dela e de Agamenon, vinga o pai, matando a mãe. Isso faz com que ele se veja perseguido pelas Erínias, seres demoníacos que protegem o direito materno, de acordo com o qual o matricídio é o mais grave e imperdoável de todos os crimes. Apolo, no entanto, que, por intermédio de seu oráculo, havia incitado Orestes a matar a sua mãe, e Palas Atena, que intervém como juiz (ambas as divindades representam aqui o novo direito paterno), protegem Orestes. Atena ouve ambas as partes. Todo o litígio está resumido na discussão entre Orestes com as Erínias. Orestes diz que Clitemnestra cometeu um duplo crime ao matar quem era o seu marido e pai de seu filho. Por que as Erínias o perseguiam, por que o visavam, em especial, se ela, a morta, tinha sido muito mais culpada? A resposta é surpreendente: ‘Ela não estava unida por vínculos de sangue ao homem que assassinou’.” (ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 9ª ed., trad. Leandro Konder. Ed. Civilização Brasileira S.A., Rio de Janeiro-RJ, 1984, pp. 8)

Quase 2.900 anos após os poemas homéricos e a peça Oréstia, de Ésquilo, no ano de 1861, o jurista, antropólogo e professor de direito romano na Universidade de Basileia (1841 a 1844), Johann Jakob Bachofen (1815-1887) lança sua obra Das Mutterrecht: eine Untersuchung über die Gynaikokratie der alten Welt nach ihrer religiösen und rechtlichen (em tradução livre: O direito da mãe: uma investigação sobre a ginecocracia do velho mundo segundo sua natureza religiosa e jurídica) cujos estudos abordam uma forma de sociedade primitiva onde o Matriarcado precedeu o Patriarcado na evolução das instituições humanas, questionando, deste modo, as teses tradicionais que colocavam a família patriarcal na base da sociedade compreendida entre 28.000 e 25.000 a.C. na qual o papel de liderança e poder é exercido e disseminado pela mulher (ginecocracia) e especialmente pelas mães de uma comunidade (o parentesco era matrilinear, não importando quem era o pai biológico), posto que são igualitárias no que se refere ao gênero, ao contrário das sociedades patriarcais que invertem o gênero dominante. Para além da sociedade matriarcal primitiva, Bachofen também nos revela outra ótica: o sexismo que culminou na opressão e na consequente destituição do lugar da mulher. Na leitura de Fernanda Siqueira Miguens, Doutora em Filosofia pela UFRJ, in O campo-santo de J.J. Bachofen e alguns rastros de um matriarcado primitivo,

“A crítica de Bachofen também é a uma certa concepção linear de tempo, pois, a partir do momento em que concebe que a cultura predetermina a maneira como existimos e nos sentimos diante do mundo, o autor aponta para o fato de que uma mudança nos papéis de gênero não acompanha exatamente uma ideia de desenvolvimento humano. Pois, ao que parece, a sua antropologia remete a um tempo em que as mulheres nasciam, eram jovens, amadureciam e morriam sem estarem atreladas a um cenário de opressão inerte.” (MIGUENS, Ensaios Filosóficos, Volume XVII – Julho/2018, pp. 9) (grifou-se)

Dando um salto na linha do tempo, e ainda nos atrelando ao fato de que uma mudança nos papéis de gênero não acompanha exatamente uma ideia de desenvolvimento humano,

“Nos séculos XIX e XX, as fábricas têxteis eram os principais motores do desenvolvimento industrial. Nesse contexto, as mulheres eram frequentemente recrutadas como mão-de-obra barata, desempenhando tarefas árduas em condições muitas vezes desumanas. Apesar das adversidades, essas mulheres desempenharam um papel crucial na produção em larga escala que impulsionou a economia industrial.

(...)

No entanto, as disparidades de gênero persistiram, com mulheres enfrentando obstáculos para avançar em suas carreiras e alcançar posições de liderança. Apesar desses desafios, muitas mulheres perseveraram e se destacaram em seus campos, tornando-se modelos a serem seguidos e inspirando gerações futuras de mulheres no setor industrial.” (Fonte: crtrj.gov.br <consultado em 28/10/2024>)

Em 25 de março de 1911, às 16h 45min, um incêndio nas dependências da “Triangle Shirtwaist Company” (companhia têxtil situada em Nova York/EUA, que empregava cerca de 600 trabalhadores, sendo a maioria formada por jovens mulheres imigrantes que laboravam 14 horas por dia em semanas de trabalho que compreendia 60 a 72 horas), ocasionado por falha nas instalações elétricas e associado à grande quantidade de têxteis inflamáveis armazenado em repartições da fábrica, onde a iluminação era a gás e não existiam extintores de incêndio, “vitimou, em 18 minutos, 129 mulheres e 17 homens2 que eram mantidos trancados durante o expediente com o objetivo de conter furtos de utensílios, tesouras, agulhas, fios ou pedaços do precioso algodão”.

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Como resta claro, uma mudança nos papéis de gênero não acompanha exatamente uma ideia de desenvolvimento humano.


2. LIDERANÇA FEMININA

Ultrapassado o viés histórico e adotando um corte epistemológico e um recorte temporal, pretende-se aqui abordar a figura da mulher isenta do temor e da miséria, sob condições que lhe permitam usufruir plenamente de seus direitos econômicos, sociais e culturais, bem como de seus direitos civis e políticos, e não a figura da mulher coisificada e objetificada.

“Diga-me, quem te deu o direito soberano de oprimir o meu sexo? [...] Ele quer comandar como déspota sobre um sexo que recebeu todas as faculdades intelectuais. [...] Esta Revolução só se realizará quando todas as mulheres tiverem consciência do seu destino deplorável e dos direitos que elas perderam na sociedade”. (ALVES, & PITANGUY, 1985, p. 33-34)

Essas mulheres, entre muitas outras, contribuíram e continuam contribuindo em diversas áreas, enfrentando machismo, sexismo, misoginia, discriminação, preconceito, racismo e xenofobia que permeiam a sociedade brasileira, independentemente do gênero:


3. DA LIBERDADE PESSOAL E DA JUSTIÇA SOCIAL

O Brasil é signatário do Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos, adotada em 22 de novembro de 1969, no âmbito da Organização dos Estados Americanos) e da Convenção de Belém do Pará (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, adotada em 9 de junho de 1994).

Ambos os acordos garantem às mulheres vítimas de violência doméstica amplo direito de defesa. Em relação aos acusados de cometer o delito, estes devem ser alvo de investigação policial rigorosa e, quando comprovada a culpa, precisam ser punidos.

Apesar disso, os esforços para coibir tais violências parecem não surtir efeito permanente diante do crescente número de vítimas.

Referência em pesquisas sobre gênero no Brasil, a professora Lourdes Maria Bandeira (1949-2021), do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), nos deixou um importante legado[4]: passou três anos estudando 1,7 mil casos de mortes de mulheres no Brasil para sua tese de pós-doutorado sobre feminicídio. A pesquisa revelou três principais motivações para a violência:

Os dados que compõem o relatório "O Poder Judiciário na Aplicação da Lei Maria da Penha: ano 2022"[5] apontam que, naquele período, o Poder Judiciário contabilizou 640.867 processos de violência doméstica, familiar e/ou feminicídio, sendo 399.228 sentenças proferidas, com ou sem resolução de mérito. No período compreendido entre 2015 e 2022, foram computados 9.150 feminicídios e 33.898 homicídios dolosos.

No ano de 2024, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública[6], os registros de violência contra a mulher apresentam os seguintes números:

Os registros relacionados à violência sexual estão distribuídos da seguinte forma:

Em relação aos casos de estupro, ocorre 1 estupro a cada 6 minutos.s, sendo 83.988 vítimas de estupro e estupro de vulnerável (taxa de 41,4 por 100 mil).

Segundo levantamento realizado pelo Monitor de Feminicídios no Brasil, até 31/08/2024, foram registrados 2.638 casos de feminicídios consumados e tentados. Apenas no primeiro trimestre de 2024 (janeiro a março), foram 994 feminicídios, sendo 449 casos consumados e 545 tentativas.

Dos dados escrutinados acima, indubitável que os crimes cometidos fazem o Brasil figurar no quinto lugar do ranking mundial7 da violência contra a mulher. Além disso, a nossa cultura/sociedade ainda se conforma com a discriminação da mulher por meio do pensamento machista, sexista, misógino, bem como de discriminação, preconceito, racismo, xenofobia, levando, por vezes, à coisificação e objetificação da mulher, o que justifica a aplicação da Lei nº 11.340/2006 (a Lei Maria da Penha é reconhecida pela ONU como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência de gênero8) e da Lei nº 14.857/2024 [que assegura o sigilo do nome das vítimas em processos judiciais relacionados a crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher], bem como constitui fundamento para a criação de novas leis e mecanismos visando ampliar a proteção à vida das mulheres vítimas de violência [vide Lei nº 12.737/2012 (Lei Carolina Dieckmann), Lei nº 12.845/2013 (Lei do Minuto Seguinte), Lei nº 12.650/2015 (Lei Joana Maranhão) e Lei nº 13.104/2015 (Lei do Feminicídio)].

Como preceitua o art. 226. da CF/88, a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado que assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Todavia, diante das graves violações aos direitos da mulher - principalmente violência contra a mulher (seja patrimonial, sexual, física, moral e psicológica) -, tornou-se necessário tipificar a morte de mulheres (feminicídio) no rol de crimes hediondos. No que tange a violência doméstica, as agressões que permeiam tais lares constituem em humilhação, xingamento, diminuição da autoestima, retirar/impedir a liberdade de crença/credo, gaslighting (forma de abuso mental que consiste em distorcer os fatos e omitir situações para deixar a vítima em dúvida sobre a sua memória e sanidade), controle e opressão (caracterizados pelo comportamento obsessivo do homem sobre a mulher, com o intuito de controlar o que ela faz, não deixá-la sair, isolar sua família e amigos ou procurar mensagens no celular ou e-mail), veicular ou fazer veicular fotos íntimas nas redes sociais como forma de vingança, forçar atos sexuais, impedir a mulher de prevenir a gravidez ou obriga-lá a abortar, guardar ou retirar dinheiro/valores contra a vontade da mulher, quebrar objetos ou arremessar objetos contra a mulher.

Infelizmente, escapa aos olhos a aplicação, de forma efetiva e profícua, tanto da CF/88 quanto das novas leis e mecanismos, a proteção à vida das mulheres vítimas de violência tais como negligência, discriminação, exploração, crueldade e opressão.

No que tange às medidas protetivas de urgência (que poderão ser concedidas pelo Juízo, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida, e que vigorarão enquanto persistir risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes), mesmo aplicadas em conjunto ou separadamente, vêm se mostrando ineficazes diante do medo das vítimas e da falta de cumprimento das legislações específicas; equivale dizer que, infelizmente, as mulheres não encontram segurança nem em seus lares nem fora deles9.

“A habitualidade destes crimes remete, dentre as principais causas, aos crimes de poder: a natureza das relações interpessoais entre as partes; a banalização e a incorporação do uso sistemático da violência para a resolução de conflitos cotidianos, as diversas situações de hierarquias que permeiam as relações de afetividade.” (BANDEIRA, 2009)

Do todo exposto até aqui, resta hialino que a violência contra a mulher apresenta-se de forma linear e cíclica. Seja Nausicaä, Areté, Penélope, Clitmnestra, Ifigênia... pode-se aferir que filhos(as) que vivem em lares expostos à violência tendem a se acostumar com o que veem e, por vezes (quiçá, inúmeras vezes), nutrem uma falsa ideia de “poder do homem” (genitor, companheiro ou ex-companheiro) sobre a mulher; em alguns casos, tal comportamento pode induzir a prole a entronizar princípios e ideias equivocados acerca do LAR10 (Lugar de Afeto e Respeito) e da família. De acordo com o DIEESE, a maioria dos domicílios no Brasil é chefiada por mulheres11: dos 75 milhões de lares, 50,8% tinham liderança feminina, o correspondente a 38,1 milhões de famílias. 34,2% eram de arranjos familiares com filhos, 29,0% de famílias monoparentais com filhos, 14,6% de casais sem filhos e 14,6% de famílias unipessoais, no 3º trimestre de 2022. Indo além, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no ano de 2021, revelaram que 12 milhões de mães criam seus filhos sozinhas (família monoparental), sendo mais de 64% as que vivem abaixo da linha da pobreza.

Sobre o autor
Carlyle Leite Moreira

Graduado em História (Universidade Federal do Espírito Santo - UFES), Especialista em História Política e Social (UFES) e em Gestão Empresarial (Faculdade Machado Sobrinho/Juiz de Fora - MG); graduado em Direito pela Universidade Salgado de Oliveira (campus Juiz de Fora – MG).︎

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