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Urnas Eletrônicas no Brasil: Uma Polêmica Desnecessária

Agenda 31/10/2024 às 09:10

Avanços Tecnológicos e Velocidade

As urnas eletrônicas trouxeram avanços tecnológicos para o processo de votação. A apuração dos votos tornou-se mais célere, unindo os mais de 5.600 municípios brasileiros em um movimento de divulgação de resultados que leva apenas algumas horas.


A Questão da Segurança

Por que os sistemas de DRE (Direct Recording Electronic) não são usados nos principais países do mundo? Apesar da maior velocidade, o sistema brasileiro e análogos foram estruturados seguindo a lógica de "segurança por obscuridade", modelo no qual a segurança se dá pela ausência de informações específicas de funcionamento, no intuito de dificultar o trabalho de eventuais invasores. A segurança por obscuridade é comum em empreendimentos militares, mas muitos países entendem que isso não deveria ser aplicado a um sistema baseado em princípios de transparência, como auditorias e contagem pública.


O Caso Alemão: Transparência e Auditoria

As urnas eletrônicas foram empregadas pela primeira vez na Alemanha em Colônia, no ano de 1998, sendo posteriormente utilizadas em todo o território nacional. Em 2005, após as eleições gerais, dois cidadãos comuns apresentaram queixas ao Comitê de Análise Eleitoral, que inicialmente rejeitou a apelação. No entanto, ao chegar ao Tribunal Constitucional Alemão, oito juízes consideraram por unanimidade que o sistema NEDAP (que, em 2005, atendeu a 2,5 milhões de participantes) não poderia ser utilizado sem mecanismos que garantissem que o cidadão comum pudesse compreender o processo de auditoria sem que fossem exigidos conhecimentos específicos de tecnologia da informação ou de engenharia eletrônica. Segundo o julgamento proferido pelo corte, as eleições são:

“Uma questão que diz respeito a todo o povo e é uma preocupação comum de todos os cidadãos. Assim, o monitoramento dos procedimentos eleitorais também é uma preocupação e um dever dos cidadãos.” O princípio do Estado de Direito, por sua vez, exige “a transparência e a verificabilidade do exercício do poder estatal.”


Desafios na Auditabilidade das Urnas Brasileiras

A auditabilidade das urnas brasileiras é um problema que preocupa não apenas cidadãos comuns, mas também técnicos e especialistas, que frequentemente se veem incapazes de auditar o sistema com a eficiência necessária. Em 2012, o professor Diego Aranha, junto com sua equipe de cientistas da UNB, foi ao TSE realizar testes nas urnas eletrônicas então utilizadas. Um dos pontos que mais chamou a atenção da equipe foi a ligação entre o sistema de liberação da votação, realizada pelos mesários, e a votação em si. Duas listas de votos ficam disponíveis nas salas de votação: uma lista física pelos mesários e uma cópia eletrônica vinculada à mesa por um cabo de 5 metros aproximadamente. Quando o título do eleitor é digitado pelos mesários, a urna é liberada. Esse vínculo entre sistemas pode gerar dois problemas: dois keyloggers (agentes maliciosos que armazenam o que é digitado em um teclado) poderiam ser instalados, um no teclado de registro e outro na máquina de votação, possibilitando o cruzamento dos dados e a descoberta de "quem votou em quem."

Outra vulnerabilidade foi levantada por Jeroen Van de Graaf, professor de ciência da computação da UFMG que, em 2002, produziu um relatório sobre as urnas a pedido do TSE.

“Aqui, a principal preocupação é a fraude eleitoral cometida ou facilitada pelos mesários. Por exemplo, imagine uma seção eleitoral pequena no meio do sertão, onde a maioria dos eleitores já votou pela manhã. Durante 30 minutos na parte da tarde, não há nenhum eleitor aparecendo na seção eleitoral. Mesários criativos poderiam aproveitar esse período da seguinte maneira: eles apostam que o vovô, de 77 anos, não vai comparecer para votar, já que o voto para quem tem mais de 65 anos não é obrigatório. Então, eles vão liberar uma urna e votar em seu nome, usando uma identidade dele. E assim por diante, votando em nomes de candidatos na lista que ainda não votaram e provavelmente não aparecerão. E se, porventura, o vovô aparecer, os mesários usam a identidade de outro eleitor que ainda não votou para liberar a urna.”


Resposta do TSE

O TSE respondeu a essas críticas, como as levantadas por especialistas como o professor Van de Graaf, implementando o uso de biometria para garantir que o próprio eleitor libere a urna com o reconhecimento da digital. Contudo, essa solução falha em cerca de 2% das vezes, permitindo que presidentes de mesa desabilitem a necessidade de biometria. Ainda assim, o registro no log do sistema ajudaria a rastrear fraudes sistemáticas, deixando claras possíveis atividades suspeitas; a biometria é, portanto, uma solução aparentemente adequada nessa questão específica, mas boas soluções não são praxe no modelo brasileiro.

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Fragilidades dos Sistemas

A aleatoriedade das chaves de segurança das urnas Smartmatic usadas no Brasil é crítica. Embora antecipada por uma geração massiva de bits criptografados, a vinculação a process IDs limita a geração numérica, expondo o sistema a riscos semelhantes ao clássico caso de segurança da Netscape. Muitos países identificaram problemas semelhantes e, por isso, evitaram o sistema de votação semelhante ao brasileiro. Para além disso, a ausência de registro físico do voto torna o sistema pouco transparente; pode-se alegar que o registro digital do voto possui essa função, mas caso os RDVs sejam influenciados por potenciais agentes maliciosos, o registro ficará comprometido. Quando Diego Aranha e Jeroen Van de Graaf apontaram essas falhas, foram tratados como personas non gratas pelos órgãos jurídicos competentes. Esse tipo de resistência dificulta uma discussão saudável e transparente.


Experiências na Holanda e Estados Unidos

As eleições holandesas também testaram máquinas DRE, tanto as NEDAP usadas na Alemanha quanto as SDU, outra opção disponível no país. O relatório final do ODIHR (Escritório para Instituições Democráticas e Direitos Humanos) sobre as eleições parlamentares de 2006 destacou que:

“As questões de transparência e observabilidade permaneceram uma prioridade. As máquinas Nedap e SDU são baseadas em firmware proprietário, impossibilitando que deputados, oficiais de eleição e observadores examinem seu funcionamento. Não há possibilidade de uma recontagem significativa.”

Nos EUA, Debra Bowen, secretária de Estado que defendia fortemente os modelos DRE, passou a criticá-los após receber um relatório de aproximadamente 700 páginas da Universidade da Califórnia que listava os riscos do modelo. Bowen, a partir de 2007, estabeleceu regras extremamente rígidas para a utilização de sistemas DRE na Califórnia, causando a fúria de empresas e condados que já possuíam contratos milionários assinados.


O Debate Político: Transparência e Voto Impresso

Em 2015, o Congresso aprovou o projeto de voto impresso por ampla margem, mas a então presidente Dilma Rousseff vetou, e o Congresso derrubou o veto. Críticas ao modelo brasileiro são frequentemente vistas como atentados à democracia. Questionamentos são considerados uma luta contra o país. Esse comportamento das autoridades alimenta dúvidas em uma parte da população. Gilmar Mendes afirmou que o projeto custaria 2 bilhões aos cofres públicos em 10 anos, e o modelo proposto pelo então deputado Bolsonaro também não é o ideal. O recomendado por especialistas é construir um novo modelo, baseando-se em sistemas de sucesso, como o Star Vote, ou em outros cases de sucesso que passam pelo crivo de grandes democracias mundo afora (ver a sugestão do professor Van de Graaf no capítulo 7 de seu O Mito da Urna). Mas fica a pergunta: quanto custa a auditabilidade e a transparência do voto? Por que o tamanho desespero que levou autoridades como Luís Roberto Barroso a interferirem na votação da matéria em sua tramitação na última legislatura? Quem não tem nada a esconder não precisa “colocar as mãos atrás das costas e fazer cara de preocupado.” Por que insistir tanto para barrar algo já aprovado em congresso e que possui base na experiência eleitoral de outros países?

Sigilo do Voto: É importante destacar que quaisquer das alternativas citadas até aqui, tanto a reforma do sistema brasileiro quanto aquelas apontadas nos casos da Alemanha, Holanda e EUA, não permitem que o eleitor leve o registro físico do voto para casa. Caso esse registro contivesse caracteres alfanuméricos correspondentes aos candidatos selecionados, a prática violaria o sigilo do voto. A intenção do registro físico é garantir o princípio da independência de software, que se refere à capacidade de verificar o funcionamento do software por meio de mecanismos que vão além do próprio software, trazendo assim maior segurança ao processo.


Resumo das críticas aos aos modelos DRE

Recapitulando as críticas feitas até aqui pelos professores Diego Aranha e Jeroen Van de Graaf:
• A) Privacidade do voto: O projeto da urna não elimina a possibilidade de que o voto do eleitor seja vinculado à sua identidade.
• B) Comprovação Física do Voto: A urna, sem voto impresso, não produz uma comprovação física, algo criticado internacionalmente e proibido na Holanda, EUA e Alemanha.
• C) Pesquisas Científicas: O argumento de que a impressão do voto seria um retrocesso não se sustenta em pesquisas científicas; a comunidade científica defende que uma comprovação física do voto é necessária para a auditabilidade.
• D) Contramão Internacional: A ideia de que a urna brasileira é um orgulho nacional e exemplo a ser seguido é um mito; o Brasil está contramão internacional em tecnologia eleitoral.
• E) Impressora na Urna: Não faz sentido apenas exigir uma impressora à urna atual; seria necessário um projeto totalmente novo.
• F) Transição Gradual: Não há motivo para abandonar a urna atual enquanto um novo projeto é modificado, processo que leva vários anos.
• G) Relatório da SBC: Todas essas conclusões já foram levantadas no relatório da SBC em 2002.
• H) Tabu das Críticas: O TSE se tornou vítima do mito que criou; criticar a urna brasileira se tornou uma heresia, tornando impossível uma discussão racional.

O texto não visa invalidar a eventual utilização de urnas eletrônicas; o início do artigo aponta uma vantagem crucial do sistema: as eleições de 2020 nos EUA demoraram 4 dias para ter seu resultado declarado, enquanto no Brasil a apuração leva cerca de 2 horas. No entanto, o processo não pode ser permeado pelo obscurantismo atual, que ataca críticos dos sistemas DRE como se fossem "terraplanistas da contemporaneidade" e ignora argumentos sólidos a favor de uma auditoria mais transparente. O argumento alemão é interessante ao destacar a necessidade de que pessoas sem formação específica possam entender como o sistema funciona. Bloquear o debate é elitismo perverso por parte das autoridades brasileiras. Afinal, "não basta a mulher de César ser honesta; é preciso parecer honesta." É preciso que as autoridades brasileiras respeitem a inteligência dos cidadãos e parem de conduzi-los aos pensamentos “certos” através de meias verdades e intuitos paternalistas.


Referências

Bowen, Debra. "Why California Secretary of State Debra Bowen Changed Her Mind on DRE Voting Machines." GovTech, 2010. Disponível em: GovTech.

Liebert, Mary Ann. Election Law Journal, Volume 9, Number 4, 2010. DOI: 10.1089/elj.2010.9411.
Taylor, Greg. "Constitutional Restrictions on Touch-Screen Voting Computers in Germany."

Van de Graaf, Jeroen. O Mito da Urna. UFMG, 2002. Disponível em: Inscrypt.

Sobre o autor
Lucas Dias Diegues

Graduando em ciência política pela pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e estudante assíduo das relações entre direito e política

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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