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O Estado-membro como ente federativo em decadência

Agenda 08/11/2024 às 07:34

Resumo: a presente reflexão tem por finalidade analisar a situação dos Estados-membros dentro da Federação brasileira, cujo campo de atuação é bastante reduzido, com competências hoje ditas residuais, correndo o risco de diminuí-las ainda mais com a centralização de tarefas na União e nos municípios, configurando um ente federativo faz de conta ou café com leite.


Palavras-chave: Direito Constitucional. Federação. Estados-membros. Competências. Decadência.


Conforme enunciado o artigo 25 da Constituição Federal de 1988, os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios constitucionais.


Prosseguindo, seu § 1º dita que são reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas pela Constituição da República.


Os §§ 3º e 4º aduzem caber aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado e instituírem regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum.


Dessa forma, a Constituição Federal esgota as competências expressas dos Estados-membros, entes relevantes nos países que acolhem a forma federativa de Estado, como os Estados Unidos da América.


Dessa forma sintetiza Eduardo dos Santos (pág. 1.014), para quem,


Entretanto, há algumas (poucas) competências expressas dos Estados na Constituição, tanto materiais exclusivas (por exemplo, o art. 25, §2º, da CF/88, segundo o qual cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a edição de medida provisória para a sua regulamentação), quanto legislativas privativas (por exemplo, o art. 18, §4º, da CF/88, que dispõe sobre a formação de novos municípios, e o art. 25, §3º, da CF/88, segundo o qual os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum). (g. n.)


Outrossim, tal superficialidade decorre da forma de formação da Federação tupiniquim, cujo movimento foi do centro para a periferia. Segundo o professor Pedro Lenza (pág. 805),


Nessa outra concepção (que não busca analisar o movimento de formação da Federação, mas, acima de tudo, a amplitude da concentração de atribuições, a caracterizar o “tipo” de organização federal), quando se observar uma maior concentração de competências no ente central, estaremos diante do modelo centrípeto (ou centralizador); por outro lado, quando se observar uma maior distribuição de atribuições para os Estados-Membros, teremos um modelo centrífugo (ou descentralizador) … Por sua vez, no federalismo por desagregação (segregação), a Federação surge a partir de determinado Estado unitário que resolve descentralizar-se, “em obediência a imperativos políticos (salvaguarda das liberdades) e de eficiência”. O Brasil é exemplo de federalismo por desagregação, que surgiu a partir da proclamação da República, materializando-se, o novo modelo, na Constituição de 1891. (g. n.)


Portanto, por concentrar inúmeras competências na União, o Estado brasileiro se caracteriza como centrípeto e desagregador, já que partiu de um Estado Unitário (Brasil Império). Como se nas bastasse, ainda temos os municípios igualmente com competências expressas na Lei Maior.


Nessa senda, segundo o professor Flávio Martins (pág. 1.872),


Com o advento da Constituição de 1988, houve substancial alteração do Federalismo brasileiro. Primeiramente, considerou a Federação cláusula pétrea (art. 60, § 4º, I, CF), bem como implantou novamente um Federalismo cooperativo, ampliando-se consideravelmente o rol das competências comuns e concorrentes aos entes federativos, para que pudessem atuar de conjunta, e não mais isolada. Outrossim, implantou um Federalismo trinário ou de segundo grau, na medida em que foram considerados entes federativos a União, os Estados (e o Distrito Federal) e também os Municípios. Todavia, embora considerado ente federativo sob o aspecto formal, o Município não participa diretamente do Congresso Nacional, motivo pelo qual alguns negam seu caráter de ente federativo sob o aspecto material. Aos Estados, a competência continuou sendo residual (o que não é da competência dos Estados e dos Municípios). (g. n.)


Ademais, para Alexandre de Morais (pág. 590), na Federação a Carta Magna deve assegurar alguns princípios, quais sejam:

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Das lições do ilustre magistrado, já podemos destacar um grande problema da nossa Federação: quem julga as causas oriundas da Lei Fundamental é o Supremo Tribunal Federal, órgão cujos membros são escolhidos exclusivamente pelo Presidente da República, nos termos de seu artigo 101, parágrafo único.


Ora, como bem sabemos, o Presidente da República é o chefe do Poder Executivo Federal, conforme o artigo 76 da Lei Suprema.


Por esse motivo, a escolha dos juízes que comporão a Suprema Corte reside naqueles que, precipuamente, garantirão a proeminência da União no cenário jurídico nacional, o que politicamente é bastante razoável, mas doutrinariamente questionável.


Nesse ponto, invocamos a excelente obra elaborada pelos professores Vera Karam de Chueiri, Egon Bockmann Moreira, Heloísa Fernandes Câmara e Miguel Gualano de Godoy (pág. 432), que ao escreverem sobre as experiências federalistas, concluíram que,


Ora, o federalismo estabelecido na Constituição brasileira tem marca descentralizadora, reconhecendo o Município como ente federado, o qual tem diversas atribuições e competências relevantes. Apesar do texto constitucional, a jurisprudência do STF tradicionalmente tinha caráter notoriamente centralizador, privilegiando as atribuições da União em casos de conflitos federativos. O panorama alterou-se em virtude da judicialização provocada pela pandemia (…) De qualquer forma, a questão que permanece é se as decisões do STF sobre federalismo sinalizam uma nova direção, ou foram apenas contingenciais e futuramente retornarão à sua tendência centralizadora na União. (g. n.)


Além de tudo, como entes federativos autônomos, aos Estados foi assegurada a sua organização por meio de constituição própria, cuja tutela ficou a cargo dos respectivos Tribunais de Justiça, nos termos do artigo 125, § 2º, da Lei Magna.


No entanto, até nesse ponto os entes regionais ficaram em desvantagem pela já comentada concentração de poderes da União reforçada pela Suprema Corte.


Novamente, conforme comentam Chueri at al (pág. 440),


No Brasil, o papel do STF como tribunal da federação, por competência constitucional, nos termos do art. 102, I, f, da Constituição Federal, é central e centralizador. É central porque nele se revolvem as disputas e conflitos federativos. E centralizador porque suas decisões podem tender a ser favoráveis à União, com limitação do federalismo cooperativo e das iniciativas experimentais e inovadoras que poderiam fazer os Estados e Municípios. Com esse protagonismo do STF, o papel dos Tribunais de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais acaba sendo menor na conformação do federalismo brasileiro, contrariando a proposta de que diferentes instâncias em grau e especialidade, respeitando o âmbito das suas competências, colaborem para um arranjo federativo mais eficiente e democrático. (g. n.)


E concluem os mestres, obtemperando que (pág. 458),


Com efeito, se, por um lado, a Constituição estabeleceu um federalismo cooperativo (arts. 1º, 23 e 24, da Constituição federal), por outro, a sua repartição de competências tem sido mitigada em favor da centralização na União – que atua editando normas gerais as quais, muitas vezes, engessam iniciativas legislativas distintas pelos Estados. Há, no entanto, divergência acerca do papel do STF com guardião dos interesses da União. (g. n.)


Piora essa conclusão o fato de que, nas ações diretas de inconstitucionalidade em se impugnam normas municipais ou estaduais em face de dispositivo da Constituição Estadual que seja de reprodução obrigatória, a Corte Constitucional admite a interposição de recurso extraordinário. Eis o entendimento já antigo, verbis:


Reclamação com fundamento na preservação da competência do Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade proposta perante Tribunal de Justiça na qual se impugna Lei municipal sob a alegação de ofensa a dispositivos constitucionais estaduais que reproduzem dispositivos constitucionais federais de observância obrigatória pelos Estados. Eficacia jurídica desses dispositivos constitucionais estaduais. Jurisdição constitucional dos Estados-membros . - Admissão da propositura da ação direta de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça local, com possibilidade de recurso extraordinário se a interpretação da norma constitucional estadual, que reproduz a norma constitucional federal de observância obrigatória pelos Estados, contrariar o sentido e o alcance desta. Reclamação conhecida, mas julgada improcedente. (STF - Rcl: 383 SP, Relator: MOREIRA ALVES, Data de Julgamento: 11/06/1992, TRIBUNAL PLENO, Data de Publicação: DJ 21-05-1993 PP-09765 EMENT VOL-01704-01 PP-00001 RTJ VOL-00147-02 PP-00404)


Portanto, temos que da forma como foi escrita, a Constituição de Outubro acaba tornando possível e até provável a concentração de poderes na União, em prejuízo dos Estados-membros, que não possuem nenhum mecanismo de defesa em face dessas intromissões, senão contar com a parcimônia de um Tribunal Federal.


Como se não bastasse, os Estados ainda tem de lidar com as competências municipais, que também contam com esse movimento expansionista.

Um dos campos que temos observado essa tentativa de ampliação municipal é no da segurança pública.


Conforme o artigo 144, § 8º, da Constituição Cidadã, os municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações.


No entanto, inúmeras atividades ilegais vem sendo desempenhadas por esses servidores municipais, a ponto das decisões do Superior Tribunal de Justiça as rechaçando não saírem das manchetes jurídicas (REsp nº 1977119-SP e HC nº 771.705-SP).


Destarte, temos que as Guardas Metropolitanas tem diuturnamente invadido as atribuições da Policiais Militares, e eventualmente até das Polícias Civis, quando realizam atividades de investigação relacionadas muitas vezes com tráfico de drogas e acompanhamento de mulheres vítimas de violência doméstica, em projetos de duvidosa constitucionalidade1.


Sem ingressar profundamente nessa discussão, temos para nós que a equiparação das pessoas com “bens, serviços e instalações municipais” implica coisificar o ser humano e torná-lo bem municipal, propriedade do Estado, quase um discurso fascista.


Outra questão que recentemente foi decidida pelo Tribunal Constitucional assentou a competência dos municípios para a organização e prestação dos serviços de saneamento básico, mediante diretrizes federais. Eis como foi ementado o julgamento, verbis:


EMENTA: AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE 6.492, 6.536, 6.583 E 6.882. DIREITO CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E REGULATÓRIO. LEI 14.026/2020. ATUALIZAÇÃO DO MARCO LEGAL DO SANEAMENTO BÁSICO. RENOVAÇÃO EM QUATRO LEIS FEDERAIS – NA LEI 9.984/2000, QUE INSTITUIU A AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS (ANA); NA LEI 10.768/2003, QUE DISPÕE SOBRE O QUADRO FUNCIONAL DA ANA; NA LEI 11.107/2005, A LEI DOS CONSÓRCIOS PÚBLICOS; E, PRINCIPALMENTE, NA LEI 11.445/2007, QUE ESTABELECE AS DIRETRIZES NACIONAIS PARA O SANEAMENTO BÁSICO. JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE POSITIVO. MÉRITO. QUATRO PREMISSAS TEÓRICAS. (A) DISCIPLINA CONSTITUCIONAL DOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE SANEAMENTO. (B) FUNCIONALIDADE E ATRIBUTOS ECONÔMICOS DO SANEAMENTO. (C) REALIDADE BRASILEIRA À LUZ DA REDAÇÃO ORIGINAL DA LEI 11.445/2007. DESATENDIMENTO ÀS ESSENCIALIDADES SANITÁRIAS. (D) OBJETIVOS SETORIAIS DA LEI 14.026/2020. TEMÁTICAS APRECIADAS. PRIMEIRO PILAR DA LEI 14.026/2020. (1) OS INSTRUMENTOS DE PRESTAÇÃO REGIONALIZADA VERSUS A AUTONOMIA POLÍTICA E FINANCEIRA DOS MUNICÍPIOS. CONSTITUCIONALIDADE DOS INSTITUTOS LEGAIS DE COOPERAÇÃO. SEGUNDO PILAR DA LEI 14.026/2020. (2) A MODELAGEM CONTRATUAL QUE DETERMINOU A CONCESSÃO OBRIGATÓRIA E, AO MESMO TEMPO, A VEDAÇÃO AO CONTRATO DE PROGRAMA. CONTRAPONTOS: “ESVAZIAMENTO” DA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA DOS MUNICÍPIOS E DESRESPEITO A ATOS JURÍDICOS PERFEITOS. IMPROCEDÊNCIA. DEFASAGEM E ACOMODAÇÃO GERADAS PELO CONTRATO DE PROGRAMA. TERCEIRO PILAR DA LEI 14.026/2020. (3) O ROBUSTECIMENTO DA INSTÂNCIA FEDERAL PARA A COORDENAÇÃO DO SISTEMA DE SANEAMENTO. ALEGAÇÕES: VÍCIO FORMAL ORIGINÁRIO NA ATRIBUIÇÃO DAS COMPETÊNCIAS FISCALIZATÓRIAS E SANCIONADORAS À AGÊNCIA; E ABUSO DE PODER NO PROCEDIMENTO CONDICIONANTE À ELEGIBILIDADE PARA AS TRANSFERÊNCIAS VOLUNTÁRIAS. IMPROCEDÊNCIA. CONSIDERAÇÕES SOBRE A TUTELA DA SEGURANÇA JURÍDICA, EM FACE DOS ARTS. 13 E 14 DA LEI 14.026/2020. AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE CONHECIDAS E, NO MÉRITO, JULGADAS IMPROCEDENTES.


De outro vértice, o governo federal, através do Ministro da Justiça Ricardo Lewandowski, visa reformular o sistema de segurança pública, atribuindo maiores poderes à União.2


De seu turno, Governadores como Ronaldo Caiado de Goiás entendem que essa proposta visa tirar poderes dos Estados, ameaçando a sua autonomia ao centralizar decisões sobre a segurança pública.3


Os principais pontos da reforma são4:


Colocar na Constituição o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), instituído pela Lei 13.675, de 11 de junho de 2018;
Atualizar as competências da Polícia Federal (PF) e da Polícia Rodoviária Federal (PRF), criando uma polícia ostensiva federal, o que pode colidir com as competências da Polícia Civil e da Polícia Militar respectivamente;

Constitucionalizar o Fundo Nacional de Segurança Pública e Política Penitenciária.


Portanto, temos que existem várias iniciativas não só legislativas, como também jurisdicionais, que afrontam a autonomia dos Estados-membros.


Destarte, caso não haja uma reação dessas unidades federadas através de suas autoridades, a tendência é que suas competências sejam continuamente esvaziadas tanto para a União quanto para os municípios, e num futuro talvez próximo possamos discutir a abolição desses entes federativos com a distribuição dos respectivos recursos aos entes locais, por terem se tornado obsoletos.


Referências bibliográficas


CHUERI, Vera Karam de e outros. Fundamentos de Direito Constitucional: novos horizontes brasileiros. 3. ed. – São Paulo: Editora JusPodivm, 2025.


LENZA, Pedro. Direito Constitucional. 26. ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2022.

(Coleção Esquematizado)


MARTINS, Flávio. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. - São Paulo: SaraivaJur, 2022.


MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 36. ed. – São Paulo: Atlas, 2020.


SANTOS, Eduardo dos. Direito constitucional sistematizado. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2021.




1 Disponível em: https://www.valinhos.sp.gov.br/portal/secretarias-paginas/215/guardia-maria-da-penha/

2 Fonte: https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/10/31/pf-mais-empoderada-e-criacao-de-pm-da-uniao-veja-principais-pontos-da-pec-da-seguranca-publica.ghtml

3 Fonte: https://reporterceara.com.br/2024/11/07/caiado-acusa-governo-lula-de-tirar-poderes-dos-estados-com-pec-da-seguranca-publica/

4 Fonte: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202410/conheca-a-pec-da-seguranca-publica-preparada-pelo-ministerio-da-justica

Sobre o autor
Celso Bruno Abdalla Tormena

Criminólogo e Mestrando em Direito. Procurador Municipal.

Informações sobre o texto

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