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"Arquitetura da destruição": resenha crítica de História do Direito

Agenda 08/11/2024 às 12:47

Sempre foi muito comum ouvir histórias e tragédias advindas de pandemias e pestes, como é o caso da peste negra e todos os mitos e histórias que a envolvem ou até mesmo a gripe espanhola e a grande quantidade de mortos que se deu naquela época em que o mundo já se via arrasado pelo eventos da 1ª Guerra Mundial. Devido os relativos avanços tecnológicos e na área da saúde, uma nova pandemia era visto como algo muito distante e, muitas vezes, um cenário distópico de filmes ou seriados, como é o caso do livro “Ensaio Sobre a Cegueira” e tantas outras obras de entretenimento que abordam o assunto.

Entretanto, os fatos não deixam de surpreender. Dessa forma, instaurou-se um contexto caótico em todo o planeta por uma nova pandemia, uma situação que, apesar de possuir precedentes, era, ao mesmo tempo, inédita. Sua excepcionalidade não se dá somente pelo fato de haver uma doença com alto risco de contágio, mas pelas consequências dessa fácil contaminação, pois o mundo atual é extremamente globalizado e com uma forte necessidade de convivência, seja para movimentar a economia ou até mesmo para manter as relações saudáveis. Diante disso, a pandemia fez com que fosse necessário restringir um pouco dessa convivência, limitando-a a algo virtual ou, quando presencial, por meio de barreiras e distanciamentos, que trazem a ideia de uma convivência incompleta, sem poder ver sorrisos, abraçar, estar perto, dentre outros fatores que, apesar de parecerem pequenos e supérfluos, são essenciais para que haja um convívio com o qual a humanidade estava habituada.

Analisando todas essas mudanças e as fotos apresentadas pelo site national geographic brasil, pode-se perceber que a pandemia impôs limites que, de certa forma, retiraram parte da humanidade e de seu afeto característico, fazendo com que se perdesse características essenciais do ser humano, como as demonstrações de carinho ou até mesmo a espiritualidade e todo o respeito que envolve a questão da morte, que sempre foi algo muito simbólico na sociedade, mas que, devido a situação atípica, pessoas tiveram que ter seu sepultamento de forma rápida e muitas vezes sem que os familiares e conhecidos pudessem prestar a sua devida homenagem. Além desses fatores mais humanitários, a dificuldade imposta nas relações interpessoais gerou um queda no comércio e em grande parte da atividade econômica, exigindo uma adaptação ao contexto, fazendo com que seu funcionamento mudasse de forma radical, diminuindo sua eficiência.

Mesmo se tratando de situações trágicas e que, de certa forma, tiram um pouco da humanidade presente na população, foram eventos além do controle humano, ou seja, uma realidade que se impôs sobre a comunidade global, afetando a todos, mas que não tinha uma solução tão acessível. Esse fato de que o ser humano se percebe incapaz de controlar o problema em sua completude amplia o desequilíbrio presente na situação, tendo em vista que o período atual tem como uma das principais características o forte controle do homem sob todos os aspectos que o cerca - natureza, política, o convívio social.

Entretanto, apesar do fato da pandemia possuir esse potencial muito grande de revelar aspectos negativos, ela também trazia consigo uma potência muito forte na capacidade de revelar aspectos positivos da sociedade em meio às dificuldades impostas à ela. Para entender o principal ponto positivo que pode ser extraído de uma peste como essa, é necessário remontar aos séculos anteriores do Brasil. Nesse período, o Brasil era marcado por um forte e problemático federalismo, tendo em vista que, como relatado nas aulas do professor Cristiano Paixão, a independência gerou uma unidade territorial somente na teoria, ainda se tratando de populações muito distantes em cada estado. Porém, como pode ser observado com o coronavírus, uma pandemia não respeita fronteiras nem classes, então, tendo em vista uma grande emergência de doenças por todo o Brasil no período em que se deu sua formação, fez-se necessária uma centralização do poder, garantindo uma ação coordenada entre os estados, visando combater um “mal comum”. Nesse contexto, a professora Maria Pia Guerra afirma que as doenças foram um dos grandes fatores que geraram uma nacionalidade brasileira, ou seja, o povo se uniu pelo fato de compartilhar doenças. Essa ideia, apesar de remeter a um período distante, é muito útil e aproveitável no período que o Brasil vivia antes da atual pandemia, tendo eleições marcadas justamente por uma forte polarização da população brasileira, tendo uma ideia de um conflito entre dois lados, sendo necessário escolher um deles. A presença de um inimigo comum, um vírus capaz de afetar toda a população, representava um motivador perfeito para extirpar essa forte divisão e gerar novamente aquele processo de união que aconteceu nos séculos anteriores, motivados também por doenças capazes de contagiar toda a população.

Essa ideia de saber remodelar a sociedade e tirar pontos positivos em meio ao caos remete à ideia do ato poético, exposto por Pinheiro em seu texto, sendo uma forma efetiva de se obter bons frutos nesse contexto de tantas tragédias.

é nesse momento que o ato poético manifesta sua potência caósmica, ou seja, sua capacidade de remodelar o ritmo social, criando uma outra inscrição dos sujeitos por meio de processos inesperados de singularização. O ato poético é um dispositivo de respiração: ou na poesia ou no cinema, a tentativa de intervir no processo respiratório do ouvinte/espectador é um modo de fazê-lo permanecer numa temporalidade contraintuitiva que lhe permita abrir-se a possibilidades de sentido – o que Chkolovski (1973) chamaria de estranhamento. O ato poético é, pois, uma inspiração, um modo de descobrir uma nova sintonia com o caos, de partir da linguagem disponível para dar conta de sentidos possíveis, mas, até então, inacessíveis, criando, assim, formas de transformação da ordem e concatenação do caos. O ato poético não é um respiro alienante, uma fuga da realidade assustadora; como lembra Hölderlin, o morar poético é terreno, material e concreto – é um ethos próprio. Obviamente ele não se impõe magicamente contra a vontade humana. A sensibilidade do poder político-jurídico à sua inspiração é que pode ser determinante na resposta adequada à crise. (PINHEIRO, 2020, p. 8).

Percebe-se, então, que, apesar de uma situação que se impõe sobre a realidade, impedindo certas atividade humanas, é possível de se contornar esse contexto e obter bons resultados nele, por meio da política. Essa ideia do ato poético mostra, então, que ainda há uma parcela da situação que pode ser controlável e bem utilizada. Nesse contexto, é importante que os atos políticos sejam feitos de forma semelhante a essa ideia de um ato poético, em que se busque abarcar o diferente - de forma abrangente não assimiladora -, sempre baseado na realidade, isto é, naquilo que é possível.

Essa ideia do ato poético, juntamente com o histórico da sociedade brasileira em meio às doenças, traz uma perspectiva muito otimista em relação a como se atuar em meio à uma pandemia. Porém, a realidade, bem como os atos políticos em outros períodos de crise, revelam algo distinto a essa ideia anterior. Percebe-se um forte oportunismo por parte do Governo brasileiro diante da situação atípica em que se vive, usando dessa singularidade para garantir o poder ou obtê-lo em abundância, priorizando-o em relação à saúde e o bem da população, pontos esses que deveriam ser centrais.

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Esse oportunismo do governo atual não é algo único na história, sendo citado pela professora Maria Pia Guerra no vídeo e pelo professor Cristiano Paixão ao longo de suas aulas. Era comum que os presidentes usassem do Estado de Sítio e desse período de exceção para manter seus poderes, como é o caso de atos realizados pelo Marechal Deodoro e Artur Bernardes, por exemplo, que tiveram como característica a utilização do Estado de Exceção. Isso fez com esse recurso que tinha como objetivo a utilização em meio à singularidade tornar-se uma regra, impedindo a participação política da sociedade na época, fator motivador de uma série de rebeliões e conflitos no começo da república.

Além desse governo baseado na exceção, o Governo Federal toma uma iniciativa de medidas repressivas e não preventivas, uma escolha muito tendenciosa, tendo em vista que gera um aumento do arbítrio e do controle do Estado, sem haver a mesma eficácia em relação aos países que adotaram as medidas preventivas. Dessa forma, pode-se perceber que as medidas não tem como objetivo acabar com a pandemia ou buscar controlá-la ao máximo, elas buscam algo muito mais político: o poder e o controle por parte do Estado.

O Governo revela nesta pandemia uma série de tendências já presentes em seus mandatos mas que se agravaram dado o período incomum - “A quarentena é somente uma radicalização da vida compartimentada que a modernidade já havia implementado”(PINHEIRO, 2020, p. 21) - e, se relacionadas, pode-se perceber uma série de medidas similares às de regimes autoritários e ideais de pensadores que fundamentaram esses regimes, como é o caso de Carl Schmitt e o regime Nazista, exemplo que será aprofundado a seguir.

O jurista alemão que fundamentou o Nazismo tem como principal foco o conceito do que é política, que, para ele, é “o conflito entre nós e eles”, ou seja, Schmitt reduz a política a algo dual - amigo/inimigo -, sem possibilidade de meio-termo, fazendo com que o poder permaneça nas mãos de poucos, aumentando cada vez mais a sua concentração. A concretização dessa teoria é nítida tanto no nazismo quanto nos dias de hoje, com a similaridade de uma nação enfraquecida e a presença de um líder carismático - Fuhrer - que apontam um inimigo em comum o qual deve ser combatido e, dessa forma, eles adquirem um poder cada vez maior, afirmando sempre ser em prol do bem comum. Essas características não são típicas do período da pandemia, se fazendo presentes anteriormente, porém, tal qual Hitler com a 2ª Guerra Mundial, o Governo Federal se utilizou desse fator externo que se impõe por si só para que a atenção seja voltada a esse problema “externo”, não para as problemáticas internas. Além disso, o Estado se utilizou de um artifício típico de regimes autoritários: a conspiração, buscando um culpado para problemas os quais não foram apresentadas soluções efetivas pelo governo, tentando, assim, tirar parte de sua culpa e unir a população contra um inimigo maior, mantendo aquela ideia dual do “nós contra eles”.

elaboração de uma explicação total que vincule todos os acontecimentos a um plano tramado às escondidas por um inimigo casuisticamente escolhido. Em relação à COVID-19, por evidente, a versão conspiratória de que o Partido Comunista Chinês teria ou produzido o vírus como uma arma biológica ou falsificado dados sobre sua letalidade a fim de gerar pânico global e, consequentemente, obter vantagens competitivas econômicas por supostamente manter seu parque industrial em plena atividade enquanto os demais países paralisavam suas atividades, ganhou certo espaço nos círculos apoiadores do Presidente Jair Bolsonaro (ORTELLADO, 2020).

Essa polarização tem o poder de criar um fanatismo tão grande acerca das ideias defendida pelo detentor do poder, que, mesmo com essas tais conspirações sendo comprovadas falsas ou sem relação com o caso, sua revolta continua, pois, não se trata somente de uma busca pela verdade efetiva dos fatos, mas justamente desse conflito entre os que estão alinhados a ele e os que não estão. Dessa forma, aqueles que acreditam acabam se tornando uma mera massa de manobra do governo para manter o poder, processo que é evidente hoje em dia, com uma série de pessoas que apoiam cegamente partidos e políticos de ambos os lados, sem buscar de forma alguma um meio-termo ou uma justa medida.

Muitas vezes, a tese conspiratória é desmentida, dentre outras, pela ciência e pela mídia investigativa. Porém, mesmo cientes de sua refutação, certos grupos permanecem disseminando-a. Para além de tal prática indicar a razão cínica de uma falsa consciência esclarecida que, embora cônscia da falsidade da hipótese ainda assim a sustenta (SLOTERDIJK, 2001), ela acaba servindo a fins políticos de vários modos: (i) como fabulação, interpondo-se entre a verdade dos fatos e sua representação ao esmaecer o real, deturpar dados da observação experimental e contradizer as regras do raciocínio lógico; (ii) como cognição, ao disponibilizar uma explicação total para eventos desconcertantes, imprevistos e excluídos da narrativa oficial ordenadora; e (iii) como mobilização, ao fazer com que a energia dispersa da indignação ou da emancipação convirja para uma ruptura comum pretendida (GIRARDET, 1987: 13).(PINHEIRO, 2020, p. 11).

Além dessa forte polarização, os detentores do poder no Brasil vem se utilizando de uma estratégia e de políticas que, segundo um outro pensador alemão, Karl Loewenstein, é o que caracteriza um regime como totalitário: a política abrangendo toda a sociedade. Sendo esse conceito a ideia que fundamenta a crítica do mesmo ao pensamento de Schmitt, que são, segundo ele, totalitárias - justamente por ter uma pretensão de abarcar todos os âmbitos da vida humana. Da mesma forma como Hitler ou Mussolini fizeram isso, o governo brasileiro, tendo como seu principal representante o presidente Jair Bolsonaro, busca atribuir um sentido político a cada objeto ou situação, seja uma política sanitária, um remédio, uma cor, modo de falar, arte, entre outros. Essa característica é preocupante, pois revela uma semelhança muito grande com os regimes autoritários, que se basearam nesses pequenos aspectos da sociedade para perseguir seus inimigos e eliminar seus vestígios presentes na cultura e no imaginário da sociedade civil, consolidando e realizando aquela ideia do conflito com o inimigo, mantendo essa polarização e uma busca por extinguir os seus opositores.

Mesmo parecendo muito distantes e já fortemente combatidas, as características similares aos estados autoritários continuam, dessa vez, na forma em que se deu o seu declínio. Um dos grandes fatores para a queda do Hitler foi sua obsessão por poder e um forte preconceito de sua parte, a primeira se manifestou pelo ataque precoce à União Soviética, que gerou uma guerra em dois front para a Alemanha e a preconceito é manifestado nos extermínios em massa nos campos de concentração, mesmo em períodos os quais a Alemanha estava perdendo a guerra, Hitler, totalmente dominado pelo anti-semitismo, concentrou esforços e recursos para esse massacre. O presidente e seu governo, por sua vez, têm tomado atitudes que revelam sua incompetência e ineficiência baseado nessa ambição e nesse preconceito, fechando-se a alguns ideais e não abrindo mão deles. A sede por poder vem sendo apresentada ao longo de toda essa resenha, tomando atitudes anti-democráticas e criminosas para garantir esses sistema político dual, além dos diversos privilégios que vem sendo garantidos ao presidente e a sua família, cujo o processo de obtenção se deu em meio à pandemia de forma duvidosa. Já o aspecto de preconceito se dá de forma muito mais clara e comprovada, em que pode-se perceber um fechamento às ideias que diferem daquelas pré concebidas pelo governante, fazendo com que, dessa forma, ele não busque um combate efetivo da situação, mas sim aquele que ele acredita ser o melhor, tendo como embasamento as conspirações citadas anteriormente. O Governo Federal percebeu, portanto, o seu enfraquecimento e, tendo isso em vista, decidiu, tal qual a ideia da Terra Arrasada de Hitler, se apegar naquilo que acredita, independente da efetividade, sem buscar o que pode, de fato, trazer uma solução para a situação. Essa ação política mantém a bipolaridade no sistema, fazendo com que aqueles que estão alinhados ao governo o acompanhem até o fim, deixando de lado as milhares de mortes e se fechando em ideologias e mantendo aquele caráter dual, típico de um autoritarismo.

A posição do Presidente da República, Jair Bolsonaro, que chegou a negar a existência do vírus, sempre foi contrária às medidas rígidas de isolamento horizontal. Ora reduzindo a severidade dos efeitos da doença, ao chamá-la de “gripezinha”, ora abrandando sua letalidade, ao acusar a imprensa de fomentar uma certa “histeria”, ora restringindo seu risco a pessoas com comorbidades e sem preparo físico, estratégias retóricas sem respaldo científico que o colocaram em rota de colisão até mesmo com seu ex-Ministro da Saúde, o médico Luiz Henrique Mandetta, o presidente acabou defendendo uma estratégia de enfrentamento da doença que não impedisse o livre curso das atividades econômicas(PINHEIRO, 2020, p. 13. e 14)

Inconformado com a conspiratio dos governadores, o respirar compartilhado das políticas administrativas de distanciamento social ampliado indicadas pelos Estados da Federação, o presidente Jair Bolsonaro passou a adotar medidas suicidárias. Os serviços públicos e atividades essenciais, cujo exercício e funcionamento devem ser resguardados ante as medidas extraordinárias adotadas para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional causada pelo SARS-CoV-2, devem ser elencados pelo Presidente da República mediante decreto, segundo a Lei n. 13.979. de 6 de fevereiro de 2020. Ocorre, porém, que na queda de braço travada com os governadores, respaldados pelo entendimento do Supremo Tribunal Federal quanto à competência administrativa comum e legislativa concorrente de Estados Federados em matéria de saúde pública, Jair Bolsonaro tem cada vez mais ampliado o rol de tais serviços, incluindo alguns que não parecem apresentar qualquer essencialidade.(PINHEIRO, 2020, p.17).

Além do fato dessas idéias duais alimentarem o autoritarismo com o qual Bolsonaro flerta há muito tempo, elas também impedem uma ação coordenada da população, impedindo uma atividade conjunta em busca da melhoria da situação que é ruim para todos. Dessa forma, aquele ato poético que poderia ter sido extraído dessa situação única: uma união da nação, vem ruindo com um governo que visa o poder, somente, impedindo qualquer tipo de ação coordenada, por meio de conflitos internos e interestaduais. Percebendo-se, assim, uma continuidade em relação ao período inicial da república, quando a grande dificuldade em meio as doenças que assolavam o país era a ideia de estabelecer políticas interestaduais, ou seja, uma ação capaz de gerar uma atuação harmônica de vários estados. Remontando novamente ao surgimento do Brasil como nação unificada, marcado por uma série de estados, sem haver esse sentimento nacionalista verdadeiro.

Mediante o que foi exposto, é natural um certo horror e até um choque por perceber as semelhanças do período atual com barbáries do século passado, mostrando que a luta pela sobrevivência da democracia é algo cotidiano. O professor Cristiano Paixão questiona em sua aula 14 no dia 6 de Abril se a democracia está morrendo e, ao analisar essa situação, pode-se perceber que uma passividade por parte da comunidade civil pode gerar essa morte.

Percebe-se uma análise muito pessimista do Brasil e de todo o mundo, muito influenciada pelo avanço desses ideais que pareciam ter se extinguido ou ao menos deteriorado ao longo do tempo. Entretanto, a possibilidade de um ato poético ainda é real, ou seja, mesmo em meio a um grande caos e uma situação de verdadeira calamidade, dada tanto por fatores externos quanto internos, a sociedade ainda possui o poder de se remodelar, se reconstruir. Essa possibilidade, por sua vez, só pode ser concretizada com uma ação conjunta, algo de uma verdadeira nação, atividade que, como já visto, a pandemia tem o potencial de proporcionar. Para um maior entendimento de como deve prosseguir esse processo de remodelar a sociedade, é necessário voltar para o fim do último regime autoritário vivido no Brasil: a Ditadura Militar, e a forma como a nação foi reconstruída a partir de todas as atrocidades cometidas nesse período.

Com uma luta do regime para se manter, há o surgimento de novos atores: grevistas, sindicalistas, que trazem parte das vontades populares para o cenário político. Nesse contexto de embate, é convocada a Assembleia Constituinte. Apesar de haver uma predominância do PMDB, ela se deu de forma muito plural, ocorrendo “debaixo para cima”, havendo várias subcomissões que passariam seus projetos para oito comissões temáticas, que, por sua vez, passariam ao Plenário. O medo do regime anterior fez com que a assembleia, por mais que fosse conservadora em sua maioria, aprovasse ideias muito à frente do tempo e com forte participação popular, contando com manifestações indígenas e seus anseios por autonomia e das domésticas e sua busca por maior direitos, por exemplo, além do fato do povo poder mandar cartas ao governo com ideias e terem uma certa influência nas comissões temáticas. As imagens abaixo retratam a participação popular e como ela se deu de forma emblemática, especialmente no aspecto do povo escalando o congresso, como se a política voltasse a pertencer a eles.

Assim como foi constatada uma continuidade em relação aos governos autoritários no entreguerras, faz-se necessária também uma continuidade no Brasil em relação ao processo de redemocratização. Um processo que mostrou uma pluralidade, marcado pela participação popular e bom uso do ordenamento jurídico, não tendo a necessidade de nenhum golpe ou conflito armado. Houve um intenso debate em como abordar o regime anterior, questionando se seria necessário uma ruptura ou não, aspecto que foi resolvido com a vitória de Mário Covas como presidente da constituinte, afastando-se da ideia de uma conciliação.

Na Assembleia Constituinte de 1987/88 houve “politicagem”, debates, concessões e negociações, alguns partidos “ganharam” em alguns aspectos, porém “perderam” em outros, houve uma pluralidade de ideias e uma ruptura que, por mais que sutil, era necessária. Da mesma forma deve acontecer na luta contra o autoritarismo, uma “politicagem”, no sentido de negociar e buscar abranger todas as diferenças e seus aspectos; além disso, é necessária uma ruptura, porém, ela deve, assim como no processo descrito anteriormente, ocorrer em conformidade com o ordenamento jurídico e de forma lenta e gradual, visando evitar também um extremismo de oposição, tendo em vista que aquele caráter dual ainda se faz extremamente presente.

A ideia do ato poético descrito no texto de Pinheiro pode parecer algo muito distante da realidade, porém, suas concretizações podem ser percebidas em combates a diversas situações caóticas ao longo da história, sempre buscando uma solução palpável para a realidade.

Como foi dito no início do texto, esses problemas presentes na realidade do Brasil não surgiram junto com a pandemia, ele só foi potencializado, agravando aquilo que já existia e emergindo outros que estavam atenuados. Do mesmo modo, a solução já se encontra, de certo modo, na história, por meio de princípios e um debate, uma politicagem diferente daquela que teoriza Schmitt, que é pautada no conflito e na dualidade, mas uma com base na pluralidade e nas diferenças. O grande problema da constituição de 1988 é que, tal qual uma constituição nominal de Loewenstein, tem suas ideias inovadores reinterpretada com um viés autoritário, ou seja, ela determina os direito que devem ser garantidos, cabe ao Estado em comunhão com a comunidade civil, buscar um esforço para trazer efetividade a essa politicagem, a esse debate e à constituição.

“Temos ódio e nojo da ditadura” foi uma das frases afirmadas no tempo em que a constituição foi promulgada. Esse sentimento de repúdio ao vírus e a tudo que ele trouxe, tanto na questão sanitária quanto política, já é presente na população, o que falta é usar desse fator comum para buscar uma sociedade justa e igualitária, tal qual afirmada na Constituição de 1988.


Referências

AGER, Susan; Fotos trágicas podem mudar o curso da história — mas nem sempre; nationalgeographicbrasil.com; Disponível em: https://www.nationalgeographicbrasil.com/fotografia/2020/07/covid-19-vitima-pandemia-indonesia-hospital-fotos-tragicas-mudar-historia .

Documentário ARQUITETURA DA DESTRUIÇÃO (Architektur des Untergangs; Ano, 1992; Direção: Peter Cohen; Gênero: Documentário; Narração: Bruno Granz; Duração: 121 minutos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IBqGThx2Mas

LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de La Constitucion. Barcelona, Editoral Ariel, S.A. 1986. p. 205-231.

Percursos UnB. Pandemia: Normalidade e Exceção. Youtube, 25 de Junho de 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2ZIniEuGfVE

PINHEIRO, Douglas Antônio Rocha. A respiração como alegoria política: A pandemia da COVID-19 em tempos de expiração democrática. Revista Direito e Práxis, Ahead of print, Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/51054 .

SCHMITT, Carl. Teologia Política: quatro capítulos sobre a doutrina da soberania.

SCHMITT, Carl. Teoria de la Constitucion. Madrid, Alianza Editorial. 1996. p. 29-62 (Parte 1).

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