3 O PROJETO DE LEI Nº. 4.203/2.001
O Tribunal do Júri sofreu poucas alterações desde a entrada em vigor do Código de Processo Penal, em 01/01/1942. Por este motivo e pelos expostos na introdução deste trabalho, o Tribunal do Júri sempre sofreu críticas, entre as quais as seguintes: demora na realização dos julgamentos, excesso de formalismo, julgamentos demorados e grande número de processos anulados por questões formais. Para eliminar estes problemas, elaborou-se um anteprojeto de lei que tinha por objetivo simplificar e agilizar o Tribunal do Júri.
A Comissão de Reforma teve como base, principalmente, o Projeto nº. 4.900/1.995 (elaborado pela Comissão de Reforma do Código de Processo Penal), que teve como relator René Ariel Dotti. Ele foi relator também na nova comissão, a chamada "Comissão Pelegrini", mas posteriormente, por renunciar ao cargo, foi substituído por Rui Stoco. A versão final do anteprojeto, já incluídas as sugestões feitas após debates públicos promovidos, foi aprovada em 10 de outubro de 2000, durante a 11ª. Reunião da Comissão de Reforma do Código de Processo Penal, que ocorreu no Tribunal de Alçada de São Paulo.
Após passar pelo Ministro da Justiça e Presidência da República, o projeto foi encaminhado à Câmara dos Deputados em 08/03/2001. Em 20/12/2001, o relator da Comissão de Constituição e Justiça e de Redação, Deputado Ibrahim Abi-Ackel, apresentou parecer pela aprovação do projeto, com uma emenda ao art. 327. Em 13/03/2002, a Comissão de Constituição e Justiça e de Redação opinou unanimemente pela aprovação do projeto com a emenda, conforme o parecer do Relator.
Cinco propostas de emendas ao projeto foram apresentadas no Plenário da Câmara dos Deputados em 06/03/2007. Devido ao escopo deste trabalho, cabe destacar aqui somente uma das modificações propostas pela EMP-4/2007, a do art. 483, que passa a prever quesitos com relação a excesso culposo de legítima defesa, participação dolosamente distinta, desistência voluntária e erro de tipo ou de proibição inescusável, cuja formulação deverá ser feita oportunamente. A formulação de quesitos sobre tais assuntos era séria lacuna apontada pela doutrina.
A redação final, com a aceitação parcial das mudanças propostas nas cinco emendas, foi aprovada pela Câmara dos Deputados em 07/03/2007. Foram aceitas todas as modificações referentes aos quesitos. Remetida ao Senado para apreciação, foi aprovada em 27/12/2007, sem modificações (a única emenda proposta não foi encaminhada a votação).
Tratemos agora das mudanças propostas no projeto, especificamente, quanto à quesitação. Para maiores informações sobre as demais modificações propostas pelo projeto de lei, bem como suas alterações ocorridas durante sua tramitação, remetemos a nossa monografia [20], mais extensa e detalhada, sobre o tema, e recomendamos também a obra de Ferrari [21]. A tramitação atual do projeto de lei pode ser consultada nos sites da Câmara dos Deputados e do Senado Federal [22], em consulta simples pelo número do projeto.
3.1. O QUESTIONÁRIO NO PROJETO DE LEI Nº 4.203/2.001
De plano, o projeto de lei altera as fontes de elaboração do questionário, que passam a ser a decisão de pronúncia, o interrogatório do acusado e as alegações das partes.
Ressalvamos que, obviamente, alegações da acusação não podem aumentar a carga acusatória pendente sobre o réu, sob pena de surpreender a defesa e fugir dos termos da pronúncia. Mas nem por isso deixa de ser fonte, pois o representante do Ministério Público pode alterar o posicionamento anteriormente assumido quanto aos fatos, pedindo, por exemplo, o reconhecimento de excesso culposo ou doloso, em fato que anteriormente classificara como homicídio qualificado.
É prevista a existência de três quesitos básicos, sendo o primeiro, sobre a materialidade do fato, o segundo, sobre a autoria ou participação, e, por fim, se as respostas a estes dois quesitos forem afirmativas, um terceiro, que representa a maior inovação no projeto concernente ao questionário: o quesito "Deve o acusado ser absolvido ou condenado?". Ou seja, além das cédulas com as respostas "sim" e "não", os jurados integrantes do Conselho de Sentença recebem também cédulas com as palavras "absolvo" e "condeno". Se a votação for negativa em um dos dois primeiros quesitos, a votação estará encerrada e o réu, absolvido.
Com a existência deste terceiro quesito, torna-se desnecessário questionar os jurados sobre causas de exclusão de ilicitude ou culpabilidade pois, se os jurados entenderem estar presentes quaisquer causas que tenham este efeito sobre o réu (ainda que sequer presentes em lei), basta que votem pela absolvição do réu no terceiro quesito.
Se o posicionamento dos jurados for pela condenação, serão formulados mais dois quesitos, relativos à existência de causa de diminuição de pena alegada pela defesa e à existência de qualificadora ou causa de aumento de pena.
Se for sustentada a desclassificação, de acordo com o art. 483, §6º., deve ser formulado quesito a ser respondido em seguida à afirmação da autoria ou participação.
De acordo com o projeto, não serão mais questionados os jurados sobre a existência de circunstâncias agravantes ou atenuantes, passando a decisão sobre tais causas para a competência do Juiz Presidente, ao prolatar a Sentença.
Por fim, o projeto propõe a exigência da redação dos quesitos em proposições afirmativas (artigo 482).
Citaremos a seguir os problemas apontados por Ferrari na nova sistemática proposta no texto original do projeto. [23]
A primeira questão problemática vista pelo autor ocorreria no caso de a defesa alegar, como tese principal, a ocorrência de uma excludente de ilicitude e, como tese secundária, o excesso culposo, enquanto a acusação sustenta, por exemplo, a condenação por homicídio doloso. Neste caso, se os jurados desejarem adotar a tese principal da defesa, responderão, no terceiro quesito, "absolvo". Mas se responderem "condeno", como saber se estarão adotando a tese secundária da defesa, ou acolhendo a tese da acusação? Para o autor, a solução seria prever a possibilidade de formulação de um quesito específico para os casos de desclassificação imprópria, após a votação do terceiro quesito, se a resposta for "condeno" [24]. Relembramos que, no projeto de lei original, somente estava previsto o quesito sobre a desclassificação própria, conforme o artigo 483, §6º., que deveria ser respondido em seguida à afirmação de autoria ou participação.
Ousamos pontuar que o problema ocorreria mesmo em hipótese mais simples. Senão, vejamos. Para o autor, se a defesa adota como tese a ocorrência de excludente de ilicitude e a acusação muda a tese, admitindo a excludente mas alegando que houve excesso doloso ou culposo, e os jurados respondem "condeno" ao terceiro quesito, estariam "automaticamente" acolhendo a tese do excesso sustentada pela acusação. Para nós, não é realista esta aceitação automática. Não estando os jurados "presos" ao entendimento Promotor de Justiça, poderiam, por exemplo, desejar condenar o réu por homicídio doloso, quem sabe até qualificado, se assim for possível, de acordo com a pronúncia. Interromper a votação após a resposta "condeno" não nos parece razoável, por impedir a manifestação plena do Conselho de Sentença.
Outro problema apontado por Ferrari ocorreria no caso em que a Defesa, apresentando duas teses, alegasse primeiramente a ocorrência de uma excludente de ilicitude, por exemplo a legítima defesa, e subsidiariamente, a inimputabilidade. Para adotar quaisquer das teses, bastaria a resposta "absolvo" para o terceiro quesito. Mas novamente surge o problema: como saber qual foi a tese adotada pelos jurados? Se a primeira, tratar-se-á de absolvição plena; se a segunda, de absolvição imprópria, com a imposição de medida de segurança.
De igual forma, a resposta "condeno" não poderia ensejar a adoção da tese subsidiária, pela natureza de sentença condenatória, pois poderia haver conflito com a tese sustentada pela acusação. O autor propõe a previsão de um quesito específico sobre a inimputabilidade, no caso do art. 26, caput, que deveria ser votado após a afirmação da absolvição, se a tese for sustentada por qualquer das partes.
De nossa parte, pensamos que, com as alterações ao projeto trazidas pela aprovação da EMP-2/2007 pela Câmara dos Deputados, que modificou o parágrafo único do art. 415, dando ao juiz a possibilidade de conceder ao réu a absolvição imprópria, aplicando medida de segurança, se houver prova cabal da inimputabilidade, a não ser que exista tese defensiva subsidiária cuja aceitação pode levar à absolvição plena, a situação mudou. Deixarão de ir à júri os casos em que exista prova cabal da inimputabilidade, por trata-se de prova estritamente técnica, em nossa opinião (prova que só poderia ter questionada sua validade e a forma de sua obtenção, mas nesse caso, através das devidas impugnações, e não por votação em plenário! E processo com este tipo de pendência não poderia ir a julgamento).
Destarte, se os jurados responderem "absolvo" ao terceiro quesito, significa que aceitaram a tese que levou à absolvição plena, se responderem condeno, significará que aceitaram a tese da acusação – neste momento, o Juiz Presidente decidiria sobre aplicação de medida de segurança, se existir prova cabal da inimputabilidade. Preferimos acreditar, aliás, que a própria acusação a pedirá, em caso de existência de prova... Se não houver tal prova, a condenação seria a prevista para o crime, nos limites fixados em lei, ou seja, seria tomado o procedimento normal para aplicação da pena. Mesmo antes da EMP 2/2007, já acreditávamos que a decisão de julgar o réu inimputável ficaria a cargo do Juiz Presidente, e não dos jurados.
Continuando, Ferrari vê como problemática também a ausência de previsão, no referido projeto de lei, de quesito específico sobre a "participação em crime menos grave" – novamente, seria impossível conhecer a real vontade dos jurados com a resposta "condeno". Em seu entender, a questão poderia ser solucionada pela inclusão de quesito sobre a participação em crime menos grave, ou também pela formulação de quesito para a desclassificação imprópria após a resposta do terceiro quesito, se entender-se que há desclassificação imprópria em caso de participação de crime menos grave. Entendemos que a primeira solução seria mais acertada e exata. E o projeto, com as últimas alterações, passou a prever quesito sobre participação dolosamente distinta.
Por fim, o autor também indica a necessidade de formulação de quesito sobre a desclassificação imprópria, em caso de possibilidade de ocorrência de erro de tipo vencível e erro de proibição vencível. Tais quesitos passaram, efetivamente, a poder constar do questionário após as alterações no projeto anteriormente citadas.
4 CONCLUSÃO
Certa feita, foi a julgamento em Cariacica um jovem rapaz que desferira disparos de arma de fogo, anos antes, em seu padrasto, que felizmente não faleceu. O rapaz era réu solto, e em seu interrogatório foi de extrema sinceridade: sim, atirou com o intuito de matar. Não, não desistiu porque quis: desistiu pela possibilidade de machucar outras pessoas que chegaram ao local após ter iniciado os disparos. Reperguntado, não hesitava em afirmar que desejava matar a vítima no momento em que disparou contra a mesma. O motivo? Desde a infância, via o padrasto espancar sua mãe e os irmãos, e não conseguiu convencer a mãe a deixá-lo. Saiu de casa e anos depois, crescido, resolveu ajudar a mãe a sua maneira. Disse que se arrependia sim, e que hoje faria diferente, mas que estava pronto a assumir as conseqüências de seus atos.
A tese defensiva era a do homicídio privilegiado tentado.
Os jurados votaram o quesito sobre autoria e materialidade unanimemente, afinal, não havia como negar os atos praticados e confessados pelo réu. Mas a surpresa veio na votação do quesito referente a tentativa, em que os jurados votaram entendendo que o réu, agindo daquela forma, não havia iniciado a execução de crime de homicídio que somente não se consumara por circunstâncias alheias à sua vontade! Claramente os jurados, comovidos, tentaram ajudar o réu, entendendo estar beneficiando-o de algum modo desclassificando o crime. Tal entendimento não foi censurado pelo Juiz, pelo Promotor ou pela Defesa. Não houve recurso.
Neste dia, começamos a pensar em como era insuficiente a lei, por nem sempre permitir que fosse refletido o real pensamento dos jurados - este, por vezes, não pode ser "enquadrado" no texto da lei, mas nem por isso deixa de ser justo, nem por isso é censurável.
Em outra ocasião, em conversa com uma jurada antiga, esta mencionou o fato de lamentar sua votação em um julgamento em que integrara o Conselho de Sentença. Explicou que a tese da defesa era a da inexibilidade de conduta diversa. Ela entendia que a ré podia ter agido de outra forma, sim – chamando a polícia, tomando outras providências - e por isso optou por negar a tese. Mas, em seu íntimo, apesar de entender que a ré poderia ter agido de outra forma, ela achava que a forma escolhida pela ré era válida, e que ela deveria ter sido absolvida.
Também já tivemos a oportunidade de vivenciar diversos julgamentos onde a presença de qualificadoras foi aceita pelos jurados, apesar do entendimento contrário do Promotor de Justiça (que assim posicionou-se ante a inexistência de provas ou inadequação das mesmas constatadas no decorrer da instrução e do próprio julgamento), aparentemente, demonstrando vontade dos jurados de prejudicar o réu. A situação inversa também ocorre, com o não reconhecimento de qualificadoras indubitavelmente presentes, com o possível objetivo de beneficiar o réu.
Estes casos nos levaram a pensar sobre os motivos da existência do julgamento pelo Tribunal do Júri. Ora, se o legislador desejasse julgamentos feitos com apuro técnico, teria deixado os crimes dolosos contra a vida como de competência do Juiz Singular. E seriam, sem dúvida, julgamentos adequados e corretos, ao menos é o que se pode esperar. Não haveria que se falar em prejuízo para o réu, pois hoje, felizmente, em nosso ordenamento jurídico, não se pode falar em juízes comprometidos com o poder dominante, como na época do surgimento da instituição do júri.
Ao optar, ainda hoje, pela manutenção do Júri, imaginamos que se deseja saber qual o sentimento da sociedade com relação aos fatos em julgamento. E nem sempre este sentimento estará exatamente de acordo com a lei, afinal, a sociedade não é estanque, e muda em velocidade bem maior do que é possível modificar o ordenamento.
Nesse sentido, pensamos ser altamente benéfica a existência do quesito sobre o réu dever ser condenado ou absolvido, por permitir ao jurado demonstrar sua íntima convicção, independente dos comandos legais. E sem ter de votar complicadas teses defensivas, com desdobramentos de quesitos, ante a necessidade de compreender conceitos jurídicos complexos...
Salutar é, também, o fato de que não haverá mais votação sobre circunstâncias atenuantes ou agravantes. Não há motivo razoável para questionar se o Conselho de Sentença entende se houve ou não confissão, ou se o acusado era ou não menor de 21 anos ao tempo do crime, por exemplo. Tais circunstâncias devem ser alegadas pelas partes e, caso se verifique sua efetiva existência, devem ser consideradas pelo Juiz.
O Projeto de Lei nº. 4.203/2.001, inicialmente, deixava lacunas quanto a situações mencionadas no capítulo anterior, em que a nova forma de redação dos quesitos não permitia a exata compreensão do pensamento dos jurados. Acreditávamos que, mesmo sem previsão, seriam formulados e apresentados aos jurados os quesitos faltantes no projeto. Porém, com as alterações aprovadas pela Câmara dos Deputados, acreditamos que não haverá problemas com a quesitação. Resta verificar a aplicação efetiva, após a aprovação.
Entendemos que o projeto é, em linhas gerais, benéfico ao desenvolvimento do Tribunal do Júri, em especial no que tange à redação dos quesitos. Novas pesquisas teóricas a respeito, novas discussões e estudos sobre a efetiva repercussão das mudanças são bem-vindas e por nós aguardadas. Esperamos ter contribuído de alguma forma para o desenvolvimento do Tribunal do Júri.