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A compatibilidade entre o pluralismo jurídico e a etnocentria

Agenda 21/11/2024 às 17:09

Quando se inicia o debate sobre a submissão das sociedades originárias ao pluralismo jurídico, observa-se que tal correlação deve ser interpretada atemporalmente, de modo a evitar anacronismos. Ou seja, mesmo as organizações mais primitivas, utilizavam-se de algum tipo de sistema de controle normativo, que poderia ser comparado a uma norma positivada na contemporaneidade. Nessa linha de discussão, adentra- se na origem da normatividade, com o intuito de rever a concepção unitarista de criação. Explicando melhor, existe a visão jurídica, pautada no viés civil e penal, que declara a estatalidade imperativa, na formação de leis de determinado ente político. Todavia, sabe-se que a concepção relativista antropológica do Direito nos permite ampliar o horizonte criativo, aceitando múltiplas origens e formas, acobertados pelos costumes inerentes a um grupo de pessoas.

Destarte, para melhor compreensão da interrelação do Direito criado pelo Estado e o Direito antropológico informal, faz- se necessário adentrar na questão do colonialismo e a manifestação normativa dos povos originários. Nesse contexto, infere-se que o colonizador e colonizado sofreram transformações, no tocante à supressão e à hibridização de sistemas de normas. Entretanto, é cediço que a imposição pelo Direito europeu nas colônias foi um traço marcante de interiorização dos costumes dos povos originários. Segundo o professor Thiago Oliveira,” A história da humanidade é compreendida quando nos abstemos do etnocentrismo e do maldito anacronismo. Amanhã, o nosso hoje, será subjugado pelos mesmos preconceitos do mundo contemporâneo."

 Conquanto, a atual doutrina e jurisprudência vem descortinando a concepção normativa ampliada, mais aproximada das ciências sociais, adequando-se à realidade da diversidade cultural, geográfica e antropológica entre os povos. Nessa linha, descreve-se que a descolonização teve papel fundamental nessa mudança de teleológica normativa, uma vez que o etnocentrismo imperava na primeira metade do século XX. Outrossim, é importante trazer à tona a questão sobre a legalidade monista do Estado, que abrangia o poder de coerção, a centralização da competência, com finalidade de regular a sociedade.

 Nesse diapasão, a dicotomia entre as origens permite transcender as barreiras etnográficas, uma vez que os povos originários não deveriam permitir a supressão de seus costumes e leis internos. Nessa toada, na época do colonialismo, havia um sistema duplo, no qual os colonos usufruíam da normativa europeia e os originários, do modelo customary (primitivo). Para exemplificar, vale citar bibliografias africanistas de Gluckman e Bohannan, cuja finalidade intrínseca coadunava com a exposição racional jurídica da complexidade, para manter a paz destas comunidades.

Ademais, formou-se uma certa unanimidade entre os doutrinadores antroplógicos, no sentido de aceitar a interrelação normativa, evitando-se a  etnocentria. Porém, a desigualdade hierárquica e o excesso de poder contrariaram as expectativas, impondo a transformação da cultura jurídica, ao deturpar a cultura nativa. Para demonstrar a tratativa de interiorização dos povos ordinários, foram descritas as Customary Laws, de responsabilidade dos administradores internos, que intercambiavam discussões interpartes.

Por conseguinte, os costumes orais foram transmudados para os escritos, reduzindo notoriamente a autonomia dos primitivos. Nessa linha, percebe-se que a interlegalidade poderia ser considerada uma utopia, uma vez que entrava em choque com interesses canônicos, oligárquicos, comerciais e costumeiros. Não obstante, a antropologia trouxe auxílio na equalização normativa, arrefecendo os preconceitos e enfatizando a importância da multiculturalidade e do propósito comum. Nessa perspectiva, apesar de todos os entraves supracitados, deve-se exprimir que o pluralismo jurídico permitiu o cruzamento entre sistemas, protagonizando hibridizações benéficas e reelaborações constantes.

Na atualidade, o jurista Boaventura de Souza, cita, em sua obra Laws and Society, a interlegalidade de um bairro do Rio de Janeiro (Jacarezinho) e o sistema legal oficial do Estado do RJ. Isto é, as associações internas deste bairro pautavam no Direito de convivência e prevenção de conflitos, tendo como pilar o administrador central. Consequentemente, eram permitidos procedimentos na comunidade como acordos notariais, audiências e acareações, permitindo que a proximidade subjetiva trouxesse algum benefício. Entretanto, o controle estatal arrefeceu os comandos inerentes a casos de propriedade e criminais, demonstrando a ocorrência de arbitrariedades de poder interno.

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Para finalizar, segundo Malinowski, “O Direito pode ser comparado a uma teia de obrigações, com reciprocidade de vínculos sociais, oferecendo procedimentos padronizados para o tratamento de disputas”. Nesse ângulo, para alguns doutrinadores, deve-se dirimir a atual dicotomia do formal e informal na equalização normativa, pois o popular e o consuetudinário podem originar diálogos entre partes para constituir uma normativa de complexidade própria. Assim, na maioria dos casos supracitados, percebe-se que ocorrem choques entre a legalidade informal interna e a formal estatal, com predominância do controle da legalidade específica que se sobrepõe aos costumes. Diante do exposto, conclui-se que o Direito é vivo e deve emergir do coletivo, governando a vida social, podendo ser próxima ou distante da lei formal codificada.


Bibliografia:

Bohhannan, Paul. “Ethnography and comparison in Legal Antropology”, en L. Nader (ed.) Law in Culture and Society (1969), Chicago: Aldine, pp. 401-418.

Gluckman, Max. “Concepts in the Comparative Study os Tribal Law”, en L. Nader (ed.) Law in Culture and society (1969), Chicago: Aldine, pp. 349-373.

Malinowski, Bronislaw. Crimes y costumes en la sociedade salvaje, Barcelona: Ariel (1982)

Sousa santos, Boaventura de. “The Law of the Oppressed: the construction and reprodution of legality in Pasargada”, law and society Review (1977): pp. 5-126. 

Sobre a autora
Joseane de Menezes Condé

Mestranda em Direito pela Fundação Universitária Ibero-americana (FUNIBER).Pós-graduanda em Direito Tributário (Faculdade Anhanguera, Piracicaba-SP); Colação de Grau no Curso de Direito pela Faculdade Anhanguera, Piracicaba-SP; Pós graduação em Direito Constitucional e Direito Processual Civil pela Damásio- Ibmec. Médica Veterinária formada pela UFMG, desde 2000. Escreve artigos para o Migalhas e gazeta Piracicaba. Estagiária do TRT 15, Piraciacaba. Coautora do Livro Direito do Trabalho - impactos da pandemia 2021.

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