A obrigação de indenizar é tutelada pelo capítulo I, do título IX, do livro I da parte especial do Código Civil de 2002.
E, a regra geral da responsabilidade civil que consta do art. 927. daquele diploma legal é a seguinte: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186. e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.
Todavia, o art. 932 do Código Civil estabelece que são também responsáveis pela reparação civil:
I - os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia;
II - o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições;
III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;
IV - os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos;
V - os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a concorrente quantia.
Tal disposição é complementada pelo art. 933, que dispõe que as pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo 932, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos.
Pois bem, para a doutrina especializada, essa responsabilidade civil indireta prevista nos arts. 932. e 933 do Código Civil:
só comporta interpretação restritiva1;
não afasta a responsabilidade de quem praticou o ato ilícito2 e
extinguiu, por ser uma modalidade de responsabilidade objetiva, o debate sobre a existência de culpa in vigilando ou culpa in eligendo 3.
Sobre o fim da necessidade de apurar e comprovar a culpa in vigilando e da culpa in eligendo para aferir a responsabilidade indireta ou por fato de terceiro, reforcemos o que esclarece a doutrina ao comentar o art. 933. do Código Civil:
“O preceito em tela atende a um nítido processo evolutivo que já marcava a jurisprudência, de forma especial, revelando inclusive que muito das inovações do CC/2002, na matéria, absorve a tendência dos tribunais no enfrentamento dos casos de dever ressarcitório. É o que se dá com a responsabilidade indireta ou por fato de terceiro, que se pretendia, no projeto do CC/1916, fosse subjetiva, todavia com presunção de culpa, a exemplo do CC francês (art. 1.384) e afinal como se ostentou também no BGB (art. 831), mas que, na tramitação, mercê de emenda no Senado (Emenda n. 1.483), acabou vindo a lume de maneira pura, sem nenhuma presunção e consequente inversão do ônus probatório, exigindo o antigo art. 1..523 que a vítima, numa empreitada de difícil êxito, o que a legava irressarcida, no mais das vezes, demonstrasse a culpa, via de regra in vigilando ou in eligendo, de quem pudesse vir a responder por ato de terceiro. Coube à jurisprudência, justamente, ir aos poucos mitigando a norma do antigo art. 1.523, até entrever em seu texto uma presunção de culpa do responsável indireto, posto que relativa, assim de toda sorte ainda permitindo-lhe provar que agira de modo diligente, escolhendo ou vigiando o terceiro e, destarte, logrando não raro furtar-se ao pleito ressarcitório que lhe fosse dirigido, porquanto examinado, ainda, à luz da teoria da culpa. Apenas com a edição da Súmula n. 341. do STF, passou-se a compreender existente, ao menos no caso do empregador em relação ao ato do empregado, de que ela tratava, uma presunção absoluta de culpa, portanto retirando a questão do âmbito da responsabilidade subjetiva. Pois agora, com a edição do nCC, e conforme o artigo ora em comento, finalmente estabeleceu-se uma responsabilidade sem culpa por ato de terceiro, o que afasta a possibilidade de qualquer dos responsáveis, uma vez demandado, procurar se eximir de seu dever ressarcitório alegando que escolheu bem, ou que vigiou bem. Cuida-se sempre, conforme a tendência já referida no comentário ao art. 927, de a lei elencar um responsável pela reparação, no caso alguém que de alguma forma, possui autoridade ou direção sobre a conduta alheia, diretamente causadora do dano. Por isso, vislumbram alguns, no caso, verdadeiro dever de garantia afeto ao responsável por terceiro com quem mantém relação especial, muito embora prefiram outros ver na hipótese um risco pela atividade ou pela conduta de terceiro. De toda sorte, sempre uma responsabilidade independente de culpa 4.”
“Esse artigo pacifica controvérsia que grassava sob o Código anterior, na aplicação do art. 1.523. A responsabilidade desses indicados nos incisos I a V do artigo 932 deste Código é objetiva, independendo de culpa. O dispositivo anterior exigia a prova de culpa desses responsáveis, o que, na prática, reduzia sensivelmente a possibilidade de indenização. A jurisprudência encarregou-se de aplicar o citado artigo sob o prisma da culpa presumida. Com a presente redação não há que se forçar o entendimento: a responsabilidade é objetiva. Há que se examinar, porém, a responsabilidade do causador direto do dano: neste deverá haver culpa. Assim, o empregado que age com culpa faz com que o patrão indenize. Não há de indenizar se não houver culpa do empregado. Na responsabilidade pelo fato de outrem há, na realidade, exame de duas responsabilidades. A do agente direto da conduta é subjetiva, a do preposto, empregador etc., é objetiva. Quando o causador direto do dano é incapaz, analisa-se a conduta como se houvesse culpa, como se ele fosse imputável 5”.
Todavia, os Tribunais de Contas, em que pese todo o exposto alhures, seguem responsabilizando, muitas vezes em caráter isolado, agentes públicos com base na a culpa in vigilando e na culpa in eligendo.
Como são diversos os entendimentos dos Tribunais de Contas sobre a teoria da culpa por má escolha (in eligendo) ou da culpa por ausência de fiscalização (in vigilando), elencamos abaixo, apenas a título exemplificativo, algumas decisões didaticamente mais representativas sobre o tema que foram proferidas pelo Tribunal de Contas da União (TCU); pelo Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE/PE) e pelo Tribunal de Contas de Minas Gerais (TCE/MG):
“A responsabilidade da autoridade delegante pelos atos delegados não é automática ou absoluta, sendo imprescindível para definir essa responsabilidade a análise das situações de fato que envolvem o caso concreto. A falta de fiscalização (culpa in vigilando), o conhecimento do ato irregular praticado ou a má escolha do agente delegado (culpa in eligendo) podem conduzir, se comprovados, à responsabilidade daquela autoridade 6”.
“A todo administrador público é imposto o poder-dever de fiscalizar e de revisar os atos de seus subordinados, respondendo, com base na culpa in eligendo e in vigilando por eventuais falhas cometidas por seus subordinados 7”.
“(...) os atos de delegação de poder não trazem para a autoridade delegante, em regra, a responsabilidade pelos atos praticados pela autoridade delegada, exceto nos casos em que for constatada a ocorrência de culpa in eligendo, culpa in vigilando ou necessidade de prévia aprovação do ato executado pela autoridade delegante 8”.
Bom, considerando que, por força do art. 70, parágrafo único, da Constituição Federal, no âmbito dos Tribunais de Contas seus jurisdicionados estão sujeitos à responsabilidade subjetiva9 10 11 12 e não objetiva, qual o problema de os Tribunais de Contas estarem responsabilizando os agentes públicos com base na culpa in vigilando e na culpa in eligendo?
Veja, como o “processo nas cortes de contas se aproxima do Direito Civil, quando se trata de reparar um prejuízo causado ao Erário. E, de outra banda, se achega a princípios do Direito Penal, nas hipóteses de aplicação de pena 13”, descabe `às Cortes de Contas empregar teorias como a da culpa in vigilando e na culpa in eligendo que não encontram mais albergue na legislação que rege a responsabilidade civil indireta por fato de terceiro, a saber os arts. 932. e 933 do Código Civil.
E como o regime de responsabilidade objetiva prescrito no art. 933. do Código Civil é incompatível com o regime de responsabilidade subjetiva desenhado pelo art. 70, parágrafo único, da Constituição Federal, chegamos à conclusão que as normas sobre responsabilidade civil indireta por fato de terceiro contidas no Código Civil são incompatíveis com o regime de responsabilização que incide sobre os jurisdicionados dos Tribunais de Contas.
E tal conclusão resta reforçada quando promovemos a leitura dos incisos do art. 932. do Código Civil, vez que a única hipótese de responsabilidade civil indireta neles prevista que seria aplicável aos agentes públicos que figuram como jurisdicionados dos Tribunais de Contas seria a que consta do inciso III e que preconiza o seguinte: “o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele”.
Considerando que a “responsabilidade civil por atos de pessoas empregadas é consectário lógico da condição de empregador 14”, resta evidente que a responsabilidade civil do empregador por ato causado por seu empregado prevista no art. 932, III do Código Civil não se presta para servir de balizador da responsabilização de agentes públicos, vez que seus eventuais subalternos não são seus empregados (nem nas empresas estatais a relação é a mesma que a referida no Código Civil).
Destarte, as balizas para os Tribunais de Contas promoverem a responsabilização dos agentes públicos devem ser extraídas (i) da ocorrência ou não do erro grosseiro nos termos da LINDB e (ii) a partir da análise da repartição de competências/segregação de funções e não com base na culpa in vigilando e na culpa in eligendo.
Notas
1 “A interpretação da lei na responsabilidade civil indireta é sempre restritiva, não podendo ir além dos casos expressamente previstos em lei”. (Silva, Regina Beatriz Tavares da, Código Civil comentado, 8ª. ed., São Paulo: Saraiva, 2012, pág. 1.021)
2 “É relevante mencionar que o artigo em análise estabelece que são também responsáveis as pessoas antes referidas, de modo que os agentes propriamente ditos, especialmente se tiverem patrimônio, responderão igualmente pelos danos causados por seus atos, como forma de responsabilidade solidária, nos termos do art. 942, parágrafo único, com exceção do disposto no art. 928, referente à responsabilidade dos pais, tutores e curadores pelos atos dos incapazes”. (Silva, Regina Beatriz Tavares da, Código Civil comentado, 8ª. ed., São Paulo: Saraiva, 2012, pág. 1.021)
3 “Na responsabilidade civil indireta, em razão do disposto no art. 933, foi adotada a presunção absoluta da culpa das pessoas indicadas no artigo em análise, já que sua responsabilidade existe independentemente de culpa. Portanto, não há mais a possibilidade de debater sobre a existência ou não da culpa in vigilando ou in eligendo. Por essa razão, aos responsáveis indiretamente aplica-se a responsabilidade objetiva, que independe de culpa”. (Silva, Regina Beatriz Tavares da, Código Civil comentado, 8ª. ed., São Paulo: Saraiva, 2012, pág. 1.021)
4 Godoy, Claudio Luiz Bueno de, Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência, Coordenador Cezar Peluso, 7ª. ed., rev. e atual., Barueri, SP: Manole, 2013, págs. 922/923.
5 Venosa, Sílvio de Salvo, Código Civil interpretado, coautora Cláudia Rodrigues, 4ª ed., São Paulo: Atlas, 2019, pág. 1.834.
6 Acórdão 8028/2016 - Segunda Câmara, Relatora: Ana Arraes.
7 Acórdão nº 588/2020 – Segunda Câmara, Processo TCE-PE n° 18100035-0, Relator: Conselheiro Marcos Loreto.
8 Denúncia nº 1015566 - Primeira Câmara, Rel. Cons. Durval Angelo.
9 “condena-se o gestor baseado na responsabilidade subjetiva do agente público, apurada pela verificação do nexo de causalidade entre a infração praticada ou o dano experimentado e o comportamento do agente” (TCU, Acórdão n° 7378/2019 – Primeira Câmara)
10 “a responsabilidade perante os tribunais de contas é de natureza subjetiva, se origina de conduta comissiva ou omissiva do agente, dolosa ou culposa, cujo resultado seja a violação dos deveres impostos pelo regime de direito público aplicável àqueles que administram recursos do Estado ou ainda aos que, sem deter essa condição, causarem prejuízo aos cofres públicos” (TCU, Acórdão n° 6479/2014-Segunda Câmara)
11 “A responsabilidade dos administradores de recursos públicos, com base no art. 70, parágrafo único, da Constituição Federal, é de natureza subjetiva, seguindo a regra geral da responsabilidade civil. Portanto, são exigidos, simultaneamente, três pressupostos para a responsabilização do gestor: i) ato ilícito na gestão dos recursos públicos; ii) conduta dolosa ou culposa; iii) nexo de causalidade entre o dano e o comportamento do agente. Deve ser verificada, ainda, a ocorrência de eventual excludente de culpabilidade, tal como inexigibilidade de conduta diversa ou ausência de potencial conhecimento da ilicitude” (TCE/PE, Acórdão T.C. nº 1899/2022 - Pleno, Processo Digital TCE-PE nº 1854858-1, Relator: Conselheiro Substituto Marcos Flávio Tenório de Almeida)
12 “A responsabilização do agente público deve obedecer à regra da responsabilidade subjetiva, que prescreve que a sua responsabilização somente ocorrer diante de ato ou omissão antijurídica, que se consubstancia, se materializa, quando o autor ou o infrator age com culpa ‘lato sensu’, devendo ser apurado o seu grau de envolvimento individual e o nexo causal, evitando-se a responsabilização indistintamente a todos os ordenadores de despesas, sob pena de caracterizar-se a responsabilidade objetiva do agente” (TCE/PE, Acórdão nº 2115/2023 – Segunda Câmara, Processo TCE-PE n° 22101032-4, Relator: Conselheiro Rodrigo Novaes)
13 TCU. Responsabilização de Agentes Segundo a Jurisprudência do TCU – Uma abordagem a partir de Licitações e Contratos. Aula 1 – Introdução à Responsabilidade. Instituto Serzedello Corrêa, 2013, pág. 10. apud Marcolin Júnior, Agemir, Responsabilização de agentes perante o Tribunal de Contas, Porto Alegre: Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, ESGC Publicações, 2021 pág. 19.
14 Pamplona Filho, Rodolfo e Nunes, Epifanio A., Responsabilidade Civil por dano extrapatrimonial nas relações trabalhistas: breve análise dos artigos do Título II-A da CLT, Revista Direito UNIFACS – Debate Virtual n. 286. (2024) disponível em https://revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/viewFile/8748/5092, acesso em 24/11/2024.