Recentemente o STF começou a julgar três casos importantes. Qualquer que seja a decisão ela criará um novo paradigma para o relacionamento entre usuários e plataformas digitais, entre plataformas e o Estado e entre o Judiciário e a democracia. Após as sustentações orais e o voto do relator o julgamento foi suspenso, ele será retomado na semana que vem.
Não há dúvida de que as plataformas digitais precisam ser reguladas. Mas é preciso dizer que a regulação já existe porque o ciberespaço não é terra de ninguém e as normas de direito público e privado se aplicam aos fatos juridicamente relevantes que lá ocorrem. Todavia, no caso específico de redes sociais existe um problema adicional: a proliferação de Fake News, campanhas de ódio, propaganda de golpe de Estado etc… que são impulsionadas por algoritmos concebidos para extrair maior valor de ads associados a conteúdos que geram grande engajamento emocional e uma maior quantidade de cliques.
O Estado não pode impor limites éticos para os parâmetros algorítmicos criados por empresas privadas, porque o lucro delas não é ilícito. Todavia, quando o modelo de negócio que elas exploram começa a facilitar a criação de bolhas de ódio que explodem nas ruas como ocorreu em Brasília, nos EUA, na Alemanha, França, Índia, etc… algo precisa ser feito. Os interesses de longo prazo de comunidades politicamente organizadas e aquilo que elas construíram de mais valioso (a paz civil, os prédios e monumentos públicos, por exemplo) não podem ser impunemente destruídos. Uma linha vermelha precisa ser traçada: plataformas de internet podem obter lucro, mas a sociedade não deve se tornar prisioneira da ganância privada de curtíssimo prazo porque as Big Techs se tornaram capazes de extrair lucro inclusive do compartilhamento de fotos, comentários e notícias sobre atentados terroristas que elas mesmo fomentaram e impulsionaram lucrativamente.
A censura prévia é proibida pela constituição. Mas esse instituto foi criado para proteger a democracia num mundo analógico. Agora que o mundo digital é uma realidade capaz de influenciar de maneira extremamente negativa as relações entre as pessoas, entre grupos de pessoas e entre estes e o Estado, a proibição da censura prévia se tornou inútil e até perigosa. Se o TSE e o STF não abortassem diversas campanhas de ódio bolsonaristas o sistema constitucional brasileiro provavelmente já teria sido destruído.
No contexto em que nós vivemos até mesmo a reprovação judicial após o fato ter ocorrido é um problema. A tempo do Judiciário é qualitativamente diferente e mais lento do que o tempo necessário para bolhas de ódio serem criadas, impulsionadas até explodirem nas ruas. A quantidade de informações compartilhada freneticamente na internet não respeita o horário comercial, não depende exclusivamente de seres humanos. Pior, a realidade online, seja ela produzida por seres humanos ou por máquinas e impulsionadas por seres humanos ou automaticamente, não é limitada geograficamente. Na internet não existem nem fronteiras nem barreiras de idioma (conteúdos podem ser traduzidos automaticamente e campanhas de ódio podem ser concebidas maliciosamente num país para desestabilizar as instituições políticas e judiciárias de outro).
Tudo o que foi dito até aqui é banal. Os Ministros do STF estão mais do que cientes do problema e até já começaram a criar jurisprudência para lidar com isso. A firme posição que eles adotaram para conter o ímpeto golpista technofeudal de Elon Musk foi exemplar. Sem poder funcionar e contabilizando prejuízos, o Twitter teve que se ajustar à legislação brasileira. Isso para não mencionar o crescimento vertiginoso no mesmo período do Bluesky, microblogue que respeita a legislação brasileira, que é muito menos tóxico e não tolera o golpismo, o racismo e o nazifascismo.
A mão pesada do STF no caso do Twitter produziu uma modificação importante e virtuosa no mercado. Isso não teria sido necessário se as próprias empresas privadas estivessem dispostas a cumprir a legislação brasileira, a respeitar nossas instituições e, principalmente, a não obter lucro fácil desestabilizando politicamente o país por razões obscuras que podem ou não estar ligadas ao desejo imperial de uma potência estrangeira.
Assim como não é um quintal dos EUA, o Brasil não pode ser o chiqueiro de donos de Big Techs. Empresários ambiciosos como Elon Musk e Zuckerberg parecem acreditar que tem o privilégio de usar seu poder tecnológico algorítmico para impor uma agenda privada que contraria os interesses de longo prazo do nosso país. Definir regras para lidar com as tragédias que eles podem desencadear é essencial.
Mas isso não significará o fim da criação e do compartilhamento de verdades alternativas. Desde tempos imemoriais os homens fazem isso e dificilmente eles deixara de fazer isso no futuro.
Por volta do ano 450 a.C. os cidadãos de Téos (Jônia, Ásia Menor) aprovaram uma série de Medidas contra os inimigos públicos. Destas merece destaque o seguinte fragmento:
“Não vou conspirar ou revoltar-me ou instigar a dissensão e a divisão. Não vou perseguir ninguém ou confiscar o bem ou prender ou matar, a menos que a pessoa seja condenada por pelo menos duzentos cidadãos de Téos, de acordo com as leis…” (Leis da Grécia Antiga, Ilias Arnaoutoglou, Odysseus, São Paulo, 2003, p. 98)
Por volta do ano 40 a.C. Júlio César escreveu seu famoso relato sobre a Guerra Civil. Dele podemos destacar um fragmento bastante significativo que se encontra no Livro Segundo:
“Nonnulla etiam ab iis qui diligentiores uideri uolebant fingebantur.”
“Algumas notícias eram fruto da imaginação mesmo daqueles que queriam passar por mais bem informados.” (Bellum Civile, Caio Júlio Cesar, tradução de Antonio da Silveira Mendonça, Estação Liberdade, São Paulo, 1999 p. 170 e 171)
A produção e circulação de boatos, portanto, existe desde que o mundo é mundo. A preocupação com a veracidade da informação não é nova. Os boatos podem afetar de maneira negativa os interesses daqueles que desejam estabilizar ou controlar politicamente uma sociedade (Lei de Téos) ou vencer uma guerra civil (Júlio César).
A solução encontrada pelos antigos e desejada por alguns na atualidade (repressão política cruel e censura pessoal paranoica) não é compatível com o regime democrático. A liberdade de consciência e de expressão permite inclusive a divulgação das chamadas verdades alternativas ou Fake News. Além disso, a própria imprensa tradicional, que agora diz pretender combater o fenômeno, também está fadada a produzir e colocar em circulação informações inverídicas (caso da Escola Base), distorcidas (edição maliciosa do debate Lula x Collor para prejudicar o petista; a Ficha Falsa de Dilma Rousseff divulgada pela Folha de São Paulo, etc…) ou inventadas (o Triplex atribuído a Lula é propriedade da construtora e foi dado por ela em garantia a CEF).
Mentir é algo repreensível. O autor de uma mentira que cause prejuízo material ou moral a alguém pode e deve ser responsabilizado na forma da legislação em vigor. Impedir alguém de mentir, porém, é algo que não pode ocorrer. A responsabilidade do mentiroso nasce com o prejuízo e não com o próprio ato de mentir. Além disso, se a imprensa puder produzir Fake News (e nós já vimos que os jornais, revistas e telejornais fazem isso involuntária e/ou deliberadamente) e os cidadãos forem impedidos de mentir para desafiar o consenso publicado o resultado não será menos segurança democrática e sim mais despotismo.
O consenso fabricado pela imprensa e o impulsionado por redes sociais não estabiliza a sociedade. O que ele faz é congelar as estruturas de poder de maneira a manter intacta uma estrutura social baseada na divisão clara entre aqueles que tem poder (dinheiro, influência política e capacidade de produzir, divulgar e impulsionar Fake News) e aqueles que são impotentes (para se defender da agenda da classe dominante, do Estado e das mentiras divulgadas pela imprensa e impulsionadas com lucro por plataformas de internet).
Num Estado laico, democrático e plural, o direito de colocar informações em circulação não pode pertencer exclusivamente ao Estado (como no nazifascismo), a uma religião (estados teocráticos como Israel e Irã) ou a empresas de comunicação e redes sociais (caso do neoliberalismo). Ninguém pode presumir que os cidadãos serão incapazes de escolher o que devem ou não devem pensar sobre este ou aquele assunto. A volonté générale não deve ser identificada com a vontade de um grupo de pessoas de capturar e comandar o mercado de opiniões para impor sua agenda particular como se ela fosse a única agenda pública passível de ser debatida e atendida pelo Estado.
A democracia é um regime político estável justamente porque admite a existência de tensões políticas e sociais que devem ser objeto de negociações permanentes. Ela retira sua força da instabilidade e pressupõe a livre circulação de notícias, opiniões e, inclusive, de Fake News. Tentar silenciar os adversários políticos não é uma forma de assegurar o regime democrático e sim de destruí-lo suprimindo aquilo ele tem de mais característico: o direito de instigar a dissensão e da divisão para manter viva a sociedade e a economia mediante a repactuação constante das relações entre as classes sociais e os partidos políticos que as representam.
Um limite bem claro, porém deve ser traçado. Nenhuma plataforma de internet deve ficar impune se obtiver lucro proporcionando a um grupo de pessoas (ou para um grupo de robôs criados por pessoas) condições para espalhar de maneira viral campanhas de ódio para fomentar violência política, racial, religiosa, sexual, regional ou cultural com o intuito de provocar uma guerra civil, de causar uma ruptura da legalidade, de mudar o regime político, impor uma ditadura ou convencer os tolos a assassinar autoridades públicas como ocorreu no caso do golpe bolsonarista.
O caso do Twitter demonstrou que nesses casos o melhor remédio é fazer o empresário sofrer prejuízos dando aos concorrentes dele oportunidade para ocupar o espaço virtual que ele foi obrigado a parar de explorar.