3 Fórmulas para o tratamento das omissões legislativas inconstitucionais à luz dos recentes posicionamentos da doutrina nacional
No Brasil, a inconstitucionalidade por omissão só veio a ser reconhecida expressamente na Constituição de 1988, por influência da Constituição portuguesa. Como anteriormente explanado, a Carta Magna trouxe duas ações constitucionais especiais para o controle da omissão inconstitucional: o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão. O comportamento omissivo inconstitucional pode estar ligado a atos de natureza normativa ou executiva.
A inconstitucionalidade por omissão suscita o problema da efetivação e da forma do controle judicial da omissão inconstitucional, pois há os que defendem uma atuação provisória do Judiciário como legislador positivo, suprindo a omissão inconstitucional dos órgãos de direção política do Legislativo e do Executivo, e aqueles que consideram que o juiz pode somente obrigar os órgãos omissos a se pronunciar, sem integrar o comando constitucional por conta própria. Tal polêmica inexiste na inconstitucionalidade por ação, haja vista que a solução para o controle de constitucionalidade das leis e demais atos comissivos do Poder Público envolve tão-somente o exercício de uma competência de cassação pelos Tribunais, que exercem uma atividade legislativa negativa ao invalidar uma lei em decorrência de sua declaração de inconstitucionalidade.
A maior parte da doutrina é partidária da tese que entende possível uma participação mais ativa do Judiciário na integração das normas constitucionais de eficácia limitada, de modo a garantir a fruição do direito pelo cidadão e fazer valer o princípio da supremacia da Constituição.
Dirley da Cunha Júnior assevera:
Defendemos a tese, teórica e cientificamente sustentável, de que o Poder Judiciário não só pode como deve, no exercício da jurisdição constitucional, integrar a ordem jurídica e suprir a omissão – asseveramos, inconstitucional – dos órgãos de direção política, à guisa de um efetivo controle dessa omissão. Não estão em jogo, aqui, as oscilações político-partidárias, mas sim a imperatividade da Constituição e o respeito pela vontade popular, fonte do maior de todos os Poderes: o Poder Constituinte! Ao contrário do que muitos comodamente advogam, os ideais de um Estado Constitucional Democrático de Direito estão a exigir essa firme postura do Judiciário, e não a repeli-la! (CUNHA JÚNIOR, 2004, p. 133).
Para ele, de nada resolve afirmar que a Constituição deve ser respeitada, que ela vincula os poderes constituídos e que deve ser concebida como uma Constituição normativa plena se não se aceitar que o Judiciário, no exercício da jurisdição constitucional, possa suprir ativamente as omissões do Poder Público, ainda que provisoriamente.
A Constituição, enquanto Lei Maior de um Estado, deve ser integralmente aplicada para sedimentar os preceitos básicos regentes de todo o ordenamento jurídico. Se ela confere poderes ao Judiciário para garantir sua aplicação, criando, para esse fim, duas ações constitucionais específicas, atribui-lhe, do mesmo modo, a competência para suprir todas as indesejadas omissões do Poder Público, preenchendo a lacuna normativa.
Pode-se ter em conta que a Constituição Federal deu um grande passo no constitucionalismo contemporâneo ao criar meios de combate contra a inércia indigna dos Poderes constituídos, servindo-se, para esse fim, de um aparato fiscalizatório e de um sistema institucionalizado forte e legitimado.
A natureza jurídica das imposições constitucionais, a vinculação dos Poderes constituídos e a caracterização do comportamento omissivo dos órgãos do Poder como inconstitucional, com a fixação dos meios jurídicos de seu controle, permitem concluir que no Estado Constitucional Democrático de Direito o Poder Público está obrigado, normativo-constitucionalmente, à adoção de todas as medidas necessárias à concretização das imposições constitucionais. A proteção jurídica não comporta lacunas, o que pressupõe, nos casos de omissão inconstitucional, o reconhecimento de um direito público subjetivo ao cidadão de exigir uma atuação positiva tanto do legislador, através do seu direito à legislação, quanto dos demais Poderes do Estado.
Por tudo isso, a Constituição brasileira tem dentre suas principais preocupações a efetividade de suas normas, especialmente daquelas que definem os direitos e garantias fundamentais, não admitindo mais que os cidadãos fiquem desamparados enquanto não editadas as normas reguladoras faltantes. Se assim não fosse, a omissão do legislador infraconstitucional seria mais eficaz que a atuação do legislador constituinte, e a inexistência de norma reguladora mais vinculante que a existência de imposições constitucionais.
No atual momento do constitucionalismo moderno, os autores sustentam a passagem de uma fase em que as normas constitucionais dependiam da interpositio legislatoris para uma fase em que elas se aplicam diretamente nas situações da vida. Além do enunciado do art. 5º, § 1º, da CF, a jurisdição constitucional também deve estar estruturada para assegurar a efetividade das normas constitucionais.
O sucesso dos meios jurídico-processuais específicos de controle da constitucionalidade da omissão e, conseqüentemente, do próprio controle judicial das omissões inconstitucionais do Poder Público, depende de uma atuação forte do Poder Judiciário. Para isso, faz-se necessária uma reformulação teórica na dinâmica da relação entre os Poderes constituídos, com mudança na concepção clássica do princípio da separação dos Poderes, de modo a priorizar-se a realização constitucional e o respeito à vontade do Poder Constituinte. Nesse contexto, a atuação do Judiciário torna-se mais política, porque, no caso do controle de constitucionalidade, a ação direta de inconstitucionalidade faz dele um legislador negativo, enquanto a ação de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção o impelem a portar-se como um legislador ativo. Tal atuação provoca o estreitamento da relação entre os fenômenos jurídico e político.
Em consonância com a idéia de efetivação dos comandos constitucionais, José Afonso da Silva salienta:
O mandado de injunção tem, portanto, por finalidade realizar concretamente em favor do impetrante o direito, liberdade ou prerrogativa, sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o seu exercício. Não visa obter a regulamentação prevista na norma constitucional. Não é função do mandado de injunção pedir a expedição da norma regulamentadora, pois ele não é sucedâneo da ação de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º) (SILVA, 2005, p. 450-451).
Do mesmo modo, destaca Luís Roberto Barroso:
O objeto da decisão não é uma ordem ou uma recomendação para edição de uma norma. Ao contrário, o órgão jurisdicional substitui o órgão legislativo ou administrativo competentes para criar a regra, formulando ele próprio, para os fins estritos e específicos do litígio que lhe cabe julgar, a norma necessária. A função do mandado de injunção é fazer com que a disposição constitucional seja aplicada em favor do impetrante, ‘independentemente de regulamentação, e exatamente porque não foi regulamentada’ (BARROSO, 2006, p. 248).
Jorge Hage propõe:
Reconhece-se, agora, por exemplo, que, quando o Legislativo deixa vagos ou imprecisos os termos de uma lei (seja por não alcançar um acordo entre seus membros, seja por qualquer outra razão), isso significa estar ele deixando ao Judiciário (ou à Administração, se o caso) a tomada da decisão, a escolha entre as alternativas possíveis, vez que são os juízes aqueles que têm de oferecer soluções concretas aos casos concretos que se hão de apresentar. E isso permanecerá assim até quando o legislador, descontente com os rumos das decisões dos juízes, resolva legislar, imprimindo uma outra orientação ao problema (HAGE, 1999, p. 89).
Para Mauro Cappelletti,
A única diferença possível entre jurisdição e legislação não é, portanto, de natureza, mas sobretudo de freqüência ou quantidade, ou seja, de grau, consistindo na maior quantidade e no caráter usualmente mais detalhado e específico das leis ordinárias e dos precedentes judiciários ordinários, em relação às normas constitucionais – usualmente contidas em textos sucintos e formuladas em termos mais vagos – como da mesma forma relativamente às decisões da justiça constitucional. Daí decorre que o legislador se depara com limites substanciais usualmente menos freqüentes e menos precisos que aqueles com os quais, em regra, se depara o juiz: do ponto de vista substancial, ora em exame, a criatividade do legislador pode ser, em suma, quantitativamente mas não qualitativamente diversa da do juiz. E não está dito que a legislação cesse de ser tal simplesmente porque deve se conformar, a sua vez, com vínculos bastante precisos, constitucionais ou de justiça constitucional, não menos claros e detalhados, por sua vez, dos que de modo mais freqüente se impõem aos juízes, não apenas para delimitar negativamente, mas também, em larga medida, para determinar positivamente o conteúdo da própria lei.
Do ponto de vista substancial, portanto, não é diversa a ‘natureza’ dos dois processos, o legislativo e o jurisdicional. Ambos constituem processos de criação do direito (CAPPELLETTI, 1999, p. 26-27).
Ao se privilegiar o princípio da supremacia da Constituição na atividade interpretativa do ordenamento jurídico, fortalece-se o Estado, a sociedade e as instituições democráticas. Nesse contexto, o controle judicial das omissões do Poder Público, para estar em consonância com referido princípio, deve voltar-se à operativa erradicação das omissões inconstitucionais acompanhada do conseqüente reconhecimento de um direito fundamental à efetivação da Constituição.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ainda que a Lei Fundamental tenha trazido o mandado de injunção e a ação de inconstitucionalidade por omissão como meios de combate à inércia legislativa inconstitucional, após mais de 18 anos de vigência da Constituição Cidadã, muitos dos direitos nela previstos ainda não foram implementados por falta de regulamentação.
O atual quadro que se apresenta em relação à continuidade da falta de integração de muitas normas constitucionais foi delineado não só pela inadvertência das autoridades do Poder Legislativo e do Poder Executivo, às quais a Constituição confere a iniciativa das leis integradoras ainda inexistentes, mas também pela interpretação mais teórica que prática desenvolvida pelo Excelso Pretório a respeito do tema, principalmente nas oportunidades em que casos concretos de impossibilidade de exercício de direitos constitucionais foram levados ao seu conhecimento por meio de ação direta de inconstitucionalidade por omissão e de mandado de injunção.
Em doutrina, contudo, notou-se que vários são os constitucionalistas que propugnam um enfoque mais efetivo e proveitoso dos meios jurídicos existentes e tão pouco utilizados. Faz-se premente, dessa forma, uma observância mais cuidadosa da questão para que não se ponha em perigo a supremacia da Constituição e a efetividade de seus direitos em razão de um positivismo pouco arejado e do descontrole das influências políticas.
No âmbito da dogmática constitucional transformadora, propugnada por muitos constitucionalistas, a própria teoria dos direitos fundamentais serve de amparo ao exercício do controle da omissão legislativa inconstitucional ao permitir a dedução de um direito fundamental à efetivação da Constituição, cuja eficácia há de ser plena e a aplicabilidade imediata.
Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal, para portar-se de modo compatível com as disposições da Lei Maior, deve nortear sua atividade no cumprimento de sua tarefa na realização constitucional, aplicando sempre o princípio da máxima efetividade, que significa atribuir a uma norma o sentido que lhe proporcione maior eficácia. Qualquer atuação da Corte que seja contrária à realização da Constituição é violadora de sua maior obrigação institucional: a guarda da própria Constituição.
REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 8. ed. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
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CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores?. Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999.
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle judicial das omissões do poder público: em busca de uma dogmática constitucional transformadora à luz do direito fundamental à efetivação da constituição. São Paulo: Saraiva, 2004.
HAGE, Jorge. Omissão inconstitucional e direito subjetivo: uma apreciação da jurisprudência do STF sobre o mandado de injunção, à luz da doutrina contemporânea. Brasília: Brasília Jurídica, 1999.
MACIEL, Marcela Albuquerque. O Supremo Tribunal Federal e a omissão inconstitucional: a tarefa realizadora da Constituição e o mandado de injunção. Fórum Administrativo: direito público. Belo Horizonte. Fórum, ano 6, n. 60, p. 6827-6832, fev. 2006.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003.
_________________ . Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.