A ELABORAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
O processo de elaboração constitucional esteve condicionado pelas particularidades da transição política que se caracterizou por ser nem um simples continuísmo, nem uma efetiva ruptura, mas uma transição pelo alto, pactada inclusive com o Estado autoritário. Lassalle tinha assim razão quando afirmava que a essência da Constituição são os fatores reais de poder, as relações de forças políticas existentes na sociedade. A Constituição formal ou jurídica representa, num primeiro instante, a racionalização jurídica de uma determinada ordem social, convertendo em instituições jurídicas os fatores reais de poder. A Constituição adequada seria então aquela que correspondesse no fundamental à Constituição real e efetiva. Por tudo isto, "os problemas constitucionais não são primariamente problemas de direito, mas de poder". Entretanto, a Constituição formal ou jurídica não pode ser uma simples fotografia da realidade, traduzindo em disposições escritas os fatos, a reboque dos fatos, portanto. Ela é mais do que uma simples "folha de papel" como afirmava Lassalle. Se deve obedecer no essencial às condições sociais, ela deve também pretender elevar-se acima das práticas condenáveis e ultrapassadas. Em suma, não podemos desconhecer a força ativa da Constituição formal ou jurídica, sua eficácia renovadora e até, em determinadas circunstâncias, transformadora, apontando para um horizonte histórico mais avançado.
Assim como podemos distinguir entre uma Constituição formal ou jurídica, por um lado, e uma Constituição real e efetiva, os fatores reais de poder, por outro, devemos igualmente diferenciar o poder constituinte material do poder constituinte formal. O poder constituinte material identifica-se com a força política protagonista da mudança institucional, enquanto que o poder constituinte formal confunde-se com a entidade responsável pela elaboração da Constituição formal ou jurídica. De acordo com Jorge Miranda, o poder constituinte material representa "um poder de autoconformação do Estado segundo certa idéia de Direito"; o poder constituinte formal "um poder de decretação de normas com a forma e a força jurídica próprias das normas constitucionais (MIRANDA, Jorge, in Manual de Direito Constitucional, v. II - Introdução à Teoria da Constituição. Coimbra, Coimbra Editora Limitada, 2a edição revista, 1983, pp. 62-63)". Neste sentido, o poder constituinte material precede e conforma o poder constituinte formal, embora este último confira juridicidade ao poder constituinte material. Porém, o poder constituinte formal não pode ser automaticamente deduzido do poder constituinte material. Os princípios genericamente enunciados pelo poder constituinte material devem sofrer por parte do poder constituinte formal as necessárias determinações que inevitavelmente comportam opções e alternativas jurídico-políticas fundamentais. Mas não apenas isto: as circunstâncias políticas podem eventualmente favorecer, sobretudo tratando-se de um processo onde a hegemonia política não esteja ainda cristalizada, o papel e a importância do poder constituinte formal na própria definição daqueles princípios.
Nesta perspectiva, até que ponto a nova Constituição conseguiu inovar com relação a nossa precária tradição constitucional e colocar-se, para o futuro, como instrumento de efetiva modernização da sociedade? Além dos limites impostos pela natureza da transição política e em decorrência deles, a Constituinte apresentou inúmeros vícios de origem, entre outros aquele que diz respeito às distorções de representação entre os Estados, nitidamente sub-representando as forças populares no seu interior. Some-se a isto as reiteradas pressões no decorrer do processo constituinte, tanto por parte do Executivo, aí incluída a corporação militar, como por parte dos grandes interesses econômicos. A própria Constituinte abriu mão em grande parte de sua soberania, como no episódio da definição e redação do seu Regimento Interno. A tendência da conjuntura política a uma consolidação conservadora, favorecida também pela desmobilização crescente das forças populares, após tantas e repetidas frustrações, impediu maiores avanços. Some-se a isto ainda a articulação da direita e alguns erros dos setores populares que por momentos pareceram preferir a negociação parlamentar a um trabalho de base, onde estaria o essencial de sua força. Numa atuação denunciada como golpista pela direita, apostou-se demasiadamente nos trabalhos da Comissão de Sistematização, que não refletia o Plenário e onde foram feitas importantes concessões, ao invés de preparar-se para o embate principal, a direita, através de seus substitutivos com preferência sobre o próprio projeto da Comissão de Sistematização, tendo deixado os setores populares na defensiva desde o primeiro turno. O processo de elaboração constitucional refletiu inevitavelmente esta realidade.
De qualquer forma, as Constituições costumam representar nas democracias liberais um compromisso multifacetado: compromisso entre as tradições políticas existentes e o direito constitucional geral; compromisso entre forças conservadoras e forças reformadoras, entre outros. Por isto mesmo, dificilmente poderemos esperar ou exigir das Constituições o que elas não podem ou não devem oferecer, isto é uma perfeita homogeneidade ideológica ou política, embora deva ser assegurada e preservada sua unidade e coerência jurídicas. A questão principal a ser respondida no nosso caso é aquela referente a favor de qual projeto ideológico ou político operou-se prioritariamente este compromisso. Inegavelmente, ele ocorreu favoravelmente ao liberal-conservadorismo que juntamente com o autoritário-modernismo são as duas principais vertentes de nossa história constitucional.
AS "CONSTITUIÇÕES" DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
O fato de o perfil da nova Constituição revelar-se predominantemente liberal-conservador não impediu, porém, que novos e importantes direitos populares fossem previstos, atendendo inclusive ao caráter compromissório das Constituições. Assim, observamos alguns avanços significativos. A começar pela alternativa de redação de uma Constituição analítica, evitando o equívoco conservador de elaboração de uma Constituição concisa, limitada apenas à declaração dos direitos, sobretudo os direitos individuais e os direitos políticos, e ao estatuto do poder, temas clássicos. Incorporando então novas questões que passaram a ter uma importância cada vez maior na atualidade, merecendo por isto mesmo um estatuto constitucional. A declaração dos direitos, além de suceder ao preâmbulo e aos princípios fundamentais, alterando a sistemática adotada pelas Constituições anteriores, amplia-se consideravelmente; mecanismos mais eficientes e aperfeiçoados de controle do poder foram alcançados; o fortalecimento do Legislativo foi visado. Entretanto, pouco se alterou no atinente à ordem econômica, mantendo-se intacto o modo de acumulação vigente. Neste sentido, não se instrumentalizaram suficientemente aqueles direitos de forma a torná-los mais efetivos, além de simples declaração de intenções, tentativa permanente das elites. Aliás, em comparação com a atividade prévia das subcomissões e comissões temáticas da Constituinte, mais sensíveis à demanda popular, retrocedeu-se significativamente. Além disto, tendeu-se a optar, em questões polêmicas e críticas, pelo subterfúgio ou pelo artifício de remeter a solução final da matéria ao legislador ordinário. O uso e o abuso das definições genéricas e vagas, das fórmulas vazias, das normas programáticas se pretendeu muitas vezes contornar conflitos e impasses políticos, evitando por exemplo os denominados "buracos negros", atendeu principalmente aos objetivos e interesses conservadores, comprometendo a eficácia e salientando ainda mais o caráter liberal-conservador da nova Constituição. De qualquer forma, o processo constituinte serviu pelo menos para desmistificar a idéia da norma jurídica, e sobretudo a norma constitucional, como mandamento objetivo, neutro e imparcial, revelando ao contrário o conflito de interesses a sinalizar sua elaboração.
Identificamos nas modernas Constituições pelo menos três grandes segmentos: uma Constituição social, fundamentalmente a declaração dos direitos, tanto os clássicos e tradicionais, como os novos e modernos, uma Constituição política, basicamente a estrutura do poder, seja no plano horizontal (o sistema de governo), seja no plano vertical (a forma de Estado) e uma Constituição econômica, o modo de acumulação no essencial. Os avanços obtidos dizem prioritariamente respeito às duas primeiras, a Constituição econômica tendo sofrido inclusive alguns retrocessos. A Constituição social inspirou-se em grande parte da Constituição portuguesa de 1976, embora tendo ainda ficado bastante aquém dela. Criaram-se novos institutos ou remodelaram-se anteriores institutos como a aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, o mandado de injunção, a inconstitucionalidade por omissão, o mandado de segurança coletivo, o "habeas data", o direito a receber dos órgãos públicos informações de interesse particular, coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade. Aliás, o artigo 5o, dos direitos e deveres individuais e coletivos, talvez seja o ponto alto, mais libertário da nova Constituição. Introduziram-se mecanismos da democracia direta; alargaram-se os direitos sociais. Rompeu-se parcialmente com a tradição individualista do nosso direito, entendendo-se os conflitos jurídicos não mais como exclusivamente inter-individuais, mas como cada vez mais como conflitos intergrupais, e reconhecendo-se o papel fundamental na atualidade dos novos sujeitos sociais como sindicatos, entidades e associações da sociedade civil. O presidencialismo foi reformado, fortalecendo-se o Legislativo, inclusive através da adoção de alguns corretivos parlamentaristas, sistemática aliás já inaugurada pela Constituição de 1934. Da mesmo forma, o Estado Federal foi redimensionado, alcançando-se talvez pela primeira vez uma efetiva autonomia municipal. Entretanto, no que se refere especificamente ao Poder Judiciário, não se chegou, conforme inicialmente cogitado, tanto à criação de uma verdadeira Corte Constitucional, nos moldes europeus, como à organização de um Conselho Nacional de Justiça, de ampla representação, que significariam um inequívoco progresso. Além disto, poucos avanços houve no sentido de um controle social do poder mais amplo, como a criação de um Conselho Econômico e Social. Os maiores atrasos estiveram por conta, porém, da Constituição econômica. Além de manter intacto o modo de acumulação vigente, retrocedeu-se nitidamente com relação à reforma agrária e ao papel do Estado na economia, ficando aquém mesmo do anterior estatuto autoritário.
Afinal, a nova Constituição antes serviu à legitimação da vontade das elites e à preservação do "status quo" ou poderá significar um instrumento de efetiva modernização da sociedade? A assinalar-se inicialmente que o trabalho constituinte não se encerra propriamente com a promulgação da Constituição. A regulamentação do novo texto constitucional, assim como a adaptação da legislação ordinária, representam um prolongamento inevitável e necessário do processo constituinte. A maior ou menor amplitude dos direitos constitucionalmente previstos depende consideravelmente da atividade legislativa pós-constituinte. Além disso, a efetividade destes direitos depende igualmente da atuação dos partidos políticos e das entidades e associações da sociedade civil, bem como da consciência e da participação populares. Como vemos, a resposta àquela questão fica em grande parte em aberto. Independentemente das limitações apresentadas pela nova Constituição, cabe explorar ao máximo suas virtualidades no sentido da modernização da sociedade.
AS "VIRTUALIDADES MODERNIZANTES" DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Em todo processo de elaboração constitucional identificamos elementos de continuidade e elementos de descontinuidade com relação à herança constitucional nacional. A maior ou menor ruptura com o direito anterior dependerá em grande parte, embora não exclusivamente, das condições e da natureza da mudança institucional ou, na linguagem dos juristas, das hipóteses de exercício do poder constituinte originário que são aqueles fenômenos políticos, sociais, extrajurídicos portanto, que tornam necessária a elaboração constitucional. Historicamente, a revolução constituiu a hipótese clássica, marca do constitucionalismo moderno. Entretanto, ocorreram igualmente mudanças do regime político, que está na base do exercício do poder constituinte originário, sem ruptura revolucionária. Aliás, torna-se muitas vezes difícil estabelecer concretamente uma nítida fronteira entre estas duas hipóteses de exercício do poder constituinte originário.
Já salientamos acima que, exatamente em decorrência das características e das limitações de nossa transição política, prevaleceram na nova Constituição os elementos de continuidade, seu perfil revelando-se predominantemente liberal-conservador, entre outras coisas através da manutenção praticamente intacta do modo de acumulação vigente. Mas que, em função inclusive do caráter compromissório das Constituições, encontramos ao mesmo tempo virtualidades modernizantes. Assim, em que pese poder servir fundamentalmente à legitimação da vontade das elites e à preservação do "status quo", não podemos porém desconhecer que ela poderá também representar um instrumento, limitado e parcial é verdade, de modernização da sociedade. E que, neste particular, cabe, por parte das forças populares, a luta pela preservação e pela ampliação de espaços constitucionais.
Uma leitura determinista, não dialética, portanto, da célebre conferência de Lassalle realizada no século passado (Sobre a Essência da Constituição), leitura esta talvez sugerida pelo próprio texto, mas a favor do qual pesam, entretanto, as circunstâncias da época de sua redação, favoreceu uma relativização indevida do papel e das funções das Constituições, tendendo a torná-las meras "folhas de papel", um simples epifenômeno das determinações econômicas e sociais, dos denominados "fatores reais de poder". Desconhecendo-se, embora a conexão com a realidade seja o seu elemento principal, a dialética existente, primeiro, entre Constituição formal e jurídica e Constituição real e efetiva e, depois, entre poder constituinte formal e poder constituinte material, e ignorando-se ao mesmo tempo a dimensão prospectiva das modernas Constituições. Assim, não podendo as Constituições nada mais do que refletir a realidade, pouco restaria no sentido de apontar-se para um horizonte histórico mais avançado. Este pretenso ou falso realismo, cuja outra face parece ser o ceticismo político, tem muitas vezes como corolário a desmobilização e o desarme das forças populares durante o processo constituinte e, posteriormente à elaboração constitucional, na luta para assegurar a efetividade do texto constitucional no que se refere aos direitos populares eventualmente conquistados e consagrados. Desertando a dimensão jurídica da disputa política e inviabilizando, num certo sentido, a luta pela atualização, isto é pela concretização das virtualidades modernizantes porventura existentes. Tão mais grave torna-se isto quanto mais tratar-se de concessões apenas em princípio por parte das classes dominantes, remetendo portanto a uma decisão política ulterior o problema da integralização ou não das normas constitucionais atinentes a direitos populares. Aliás, do ponto de vista das classes dominantes, a legitimação da ordem estabelecida revela-se uma das principais funções do Direito, cabendo às forças populares lutar pela efetividade daqueles direitos, algo mais do que simples retórica legitimadora. Em suma, a possibilidade de a Constituição, no respeitante a direitos populares, deixar de ser uma Constituição-programa, de reduzida efetividade, e passar a ser uma Constituição-lei, de relativa efetividade, dependerá basicamente da relação de forças políticas existente em cada conjuntura precisa.
A miopia política apontada funda-se numa profunda incompreensão da dinâmica da legalidade burguesa. A legislação do trabalho, por mais sensível à demanda popular, é exemplar a este propósito. Para alguns, ela seria uma pura conquista da classe trabalhadora, supondo no limite a possibilidade de uma transformação através do direito. Para outros, ela seria uma pura legalização ou domesticação da classe trabalhadora. Assim, esta última teria sido legalizada na empresa e no Estado, fazendo-se com que falasse a língua que não é a sua, a língua da legalidade burguesa. Ora, a legislação do trabalho nasce da dissociação do trabalho humano da propriedade dos instrumentos de trabalho, estando portanto ligada à emergência do capitalismo. Entretanto, o movimento operário luta para impor, sem por isso transformar a natureza do regime, uma legislação do trabalho de maneira a limitar o poder discricionário do patronato. A legislação do trabalho possui desta forma um duplo aspecto: por um lado, regula a exploração da força de trabalho e, por outro, exprime a resistência da força de trabalho a esta exploração. Tais observações tornar-se-iam mais abrangentes numa reflexão sobre o uso alternativo do direito oficial e mesmo sobre o direito alternativo ao direito oficial, procurando inscrever, nas fissuras da legalidade burguesa, o direito emergente dos de baixo.
REFORMA DA CONSTITUIÇÃO OU "FRAUDE À CONSTITUIÇÃO"?
Nossa Constituição previu, no artigo 3o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, um processo de revisão constitucional a efetivar-se após cinco anos contados da promulgação da Constituição, a partir de 5 de outubro de 1993, portanto. Uma análise superficial poderia concluir que o dispositivo em questão guarda semelhança com o artigo 286 da Constituição portuguesa de l976 (atual artigo 284) ou mesmo com o Título VII da Constituição Francesa de 1791, ou ainda com os artigos 174-177 da Constituição brasileira de l824. Todavia, enquanto que nessas últimas hipóteses tratava-se de dispositivos que visavam dificultar a reforma da Constituição, proibindo-a antes de decorrido determinado prazo de vigência, no primeiro caso tratou-se de mecanismo para facilitar ainda mais a alteração da Constituição. Em outros termos, a Constituição de l988 estabeleceu dois procedimentos de reforma constitucional: um ordinário e permanente, o do artigo 60 do "corpus" constitucional, denominado emenda à Constituição, com "quorum" de aprovação de três quintos dos membros de cada uma das casas do Congresso Nacional; outro extraordinário e transitório, o do artigo 3o do ADCT, chamado revisão constitucional, com "quorum" facilitado de aprovação, ou seja, maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral (aqui, sem diferenciar-se Câmara dos Deputados e Senado Federal).
O artigo 3o do ADCT foi objeto de um amplo debate jurídico. Poderia o início da revisão ou sua conclusão serem transferidos para a legislatura seguinte ou, ao contrário, a determinação do poder constituinte originário era no sentido de a revisão concluir-se até o término da legislatura inaugurada em 1991, impondo-se inclusive a qualquer tentativa de alteração nesse sentido, mesmo por parte do poder constituinte derivado, exercido pelo Congresso Nacional nos termos do artigo 60 do "corpus" constitucional? Prevaleceriam, com relação à revisão constitucional, os limites quanto ao objeto explícitos, as denominadas "cláusulas pétreas", do parágrafo 4o do artigo 60 da Constituição? E mesmo os limites quanto ao objeto implícitos, sujeitos a construção doutrinária e jurisprudencial? Mais ainda: o artigo 3o do ADCT não se esgotaria no artigo 2o do mesmo ADCT, inviabilizando-se a revisão constitucional se a decisão plebiscitária fosse favorável, como ocorreu, à manutenção da república e à preservação do presidencialismo? Ou, quando muito, seria autorizada apenas, em face do resultado plebiscitário, para aperfeiçoar a forma (república) e o sistema (presidencialismo) de governo?
Malograda em grande parte a denominada revisão constitucional de 1994, que serviu antes de tudo para a aprovação do Fundo Social de Emergência, implementa hoje o governo uma ampla reforma da Constituição através do procedimento previsto no artigo 60 de seu "corpus".
As primeiras propostas de emenda à Constituição de iniciativa governamental, já aprovadas pelo Congresso Nacional, foram relativas à ordem econômica. Fortalecido por este resultado positivo, o governo acaba de enviar suas propostas de reforma tributária e de reforma administrativa, devendo na seqüência retomar aquela referente à previdência social.
A ninguém é dado desconhecer que a Constituição, como toda norma jurídica, deve continuamente adaptar-se, seja através de interpretação, seja através de modificação, às novas circunstâncias e necessidades impostas pelo decurso do tempo e pela evolução da sociedade. Aliás, as próprias Constituições costumam prever mecanismos de sua alteração.
Entretanto, a Constituição, como parâmetro básico de toda ordem jurídica, deve alcançar um mínimo de estabilidade e segurança jurídicas. Precipitar uma reforma da Constituição pode ser um fator de instabilidade institucional, atingindo ainda mais a supremacia constitucional almejada. Na realidade, os problemas maiores com relação à nova Constituição parecem ser, por um lado, sua falta de aplicação ou sua precária aplicação, por outro, sua má aplicação, antes de sua eventual reforma, Não só a ausência de regulamentação de inúmeros dispositivos, mas igualmente o atentado ao espírito se não à letra do texto fundamental.
A pretexto de uma pretensa crise de governabilidade gerada pela nova Constituição, propõe-se sua ampla e profunda alteração. Se crise de governabilidade eventualmente existe, trata-se antes de uma crise de insuficiência de democracia: institucionalização ainda precária e limitada do jogo democrático, comprometida em grande parte pela herança do passado. Neste contexto, cabe antes de tudo dar efetividade à Constituição de l988, sobretudo a suas "virtualidades modernizantes", ao invés de atingi-la fundamentalmente. De forma a gerar na sociedade um verdadeiro "sentimento constitucional" (Karl Loewenstein) ou uma efetiva "vontade de Constituição" (Konrad Hesse), necessários à estabilidade das instituições e do sistema político.
Grande parte das propostas surgidas já durante o processo de revisão constitucional no ano passado procurava atingir o "núcleo jurídico-político fundamental" da Constituição de l988, isto é, seus parâmetros e princípios básicos, caracterizando-se na realidade como propostas de uma nova Constituição sob a aparência de reforma da já existente. Nova Constituição só admissível com novo apelo ao poder constituinte originário, com nova convocação de uma Constituinte. O resultado mais imediato poderia ser o de uma regressão histórica. Mais ainda, ao invés de conformar as políticas públicas à Constituição, procura-se, na ótica conservadora, adaptar a Constituição ao projeto neoliberal de alto custo social para as classes trabalhadoras.
Até que ponto as atuais propostas do governo, algumas já aprovadas pelo Congresso Nacional, não atingem este "núcleo jurídico-político fundamental" da Constituição de 1988? Constituição esta que inspira-se nos princípios da democracia social e da democracia participativa, favorecendo ao mesmo tempo um projeto de desenvolvimento nacional, inclusive como forma de viabilizar as conquistas sociais da Constituição. Projeto este que historicamente, isto é, no contexto de uma industrialização tardia, encontrou e hoje ainda encontra no Estado um importante se não decisivo articulador Não se trata de desconhecer ou de condenar o processo de internacionalização e de globalização da economia, mas de saber-se em que condições nos inseriremos neste processo: como pólo periférico ou preservando a autonomia dos centros de poder nacionais face à emergência das estruturas de poder transnacionais. De forma a que desenvolvimento, que implica também no nosso caso em resgate da dívida social, não seja confundindo - abastardado poderíamos acrescentar - com simples crescimento econômico.
Aliás, a proposta de reforma administrativa, recentemente enviada pelo governo ao Congresso Nacional, soma-se à reforma econômica no sentido do desmantelamento do Estado, como forma de uma inserção ainda mais subsidiária e dependente do país no processo de internacionalização e de globalização da economia.
Neste contexto, caberia mencionar uma possível fraude à Constituição: "... esta prática ... consiste no seguinte: um governo alçado ao poder através de procedimentos legais faz pressão sobre o órgão de revisão para que este transforme a Constituição ou mesmo estabeleça uma nova. Cedendo a estas injunções, a autoridade revisionista opera a mudança solicitada, dentro das formas constitucionalmente previstas e sem que nenhuma solução de continuidade introduza-se na forma entre o texto antigo e o texto novo pelo qual se exterioriza o sucesso da operação. Uma idéia de direito nova, um poder político novo introduzem-se no Estado através do jogo da revisão implícita ou expressa da Constituição e graças a um desconhecimento evidente do espírito segundo o qual ela tinha considerado sua modificação (BURDEAU, Georges, in Traité de Science Politique, v. IV - Le Statut du Pouvoir dans lÉtat. Paris, LGDJ, 3ª edição revista e aumentada, 1983, pp. 244-245)." Em outros termos, a fraude à Constituição implica uma "utilização do procedimento de reforma para, sem romper com o sistema de legalidade estabelecido, proceder à criação de um novo regime político e de um ordenamento constitucional diferente (DE VEGA, Pedro, in La Reforma Constitucional y la Problematica del Poder Constituyente. Madrid, Editorial Tecnos S.A., 1ª edição, 2ª reimpressão, 1991, p. 291)". Submetendo em conseqüência a permanência de inúmeras conquistas democráticas que qualificam e dignificam a Constituição de 1988, obtidas num contexto de ampla participação do povo brasileiro, à deliberação de maiorias parlamentares eventuais ou passageiras, sob pressão do Executivo e num momento de crise econômica e social e de relativa desmobilização da sociedade. O que levou Paulo Bonavides, ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, a afirmar que "a reforma é antipopular, fere a cidadania, desnacionaliza o país e poderá representar um dos piores retrocessos institucionais de todas as fases de nossa existência republicana (BONAVIDES, Paulo, in Jornal do Conselho Federal da OAB, n0 40, 1995)".
Reforma da Constituição ou mudança de Constituição? Esta, a primeira indagação a ser respondida. O que envolve inclusive uma reflexão sobre os limites da reforma constitucional e sobre a eventual inconstitucionalidade de emendas à Constituição.
Caberia igualmente indagar sobre as conseqüências da iniciativa governamental com relação ao consenso social e à estabilidade constitucional necessários para gerar na sociedade "sentimento constitucional" e "vontade de Constituição".
O aperfeiçoamento da Constituição é uma possibilidade sempre presente, estando legitimado para tanto o Congresso Nacional, detentor do poder de reforma constitucional. Mas reforma da Constituição não pode significar mudança de Constituição. Algo só admissível com novo apelo ao poder constituinte originário, como dissemos acima.
A prudência e a sensatez estão a revelar, sobretudo em matéria de reforma da Constituição, a necessidade de um largo consenso. Se há pontos que mereçam aperfeiçoamento em benefício do país e não de grupos, inclusive na perspectiva da alegada "governabilidade", não seria difícil persuadir neste sentido a maior parte se não todas as forças políticas. É o momento de deixarmos de lado a razão cínica e acreditarmos na razão sábia.