Introdução
A comunidade jurídica, em meio à complexidade dos tempos atuais, enfrenta uma crescente dificuldade em realizar uma leitura precisa do acerto ou desacerto do ativismo judicial praticado pelas cortes. Tribunais, que outrora eram exclusivamente jurídicos, têm mostrado, com intensidade crescente, a influência política tanto do Poder Legislativo quanto do Executivo. Esse fenômeno é ainda mais evidente no Brasil, onde a Suprema Corte, ao mesmo tempo que protege garantias constitucionais, expande suas competências e tem de enfrentar os temas mais banais, interferindo em questões que vão desde a separação dos poderes até a definição da localização de instituições acadêmicas, como o caso do Colégio Pedro II.
Esse excesso de competências, como não poderia ser diferente, infla a atuação da Suprema Corte e coloca em risco o equilíbrio entre os Poderes da República. Em tempos de grande comoção social, o Judiciário se vê pressionado a tomar posições que deveriam ser exclusivas do Legislativo, como ocorre, atualmente, no debate acerca da execução da pena. A recente morte de um policial militar por alguém em liberdade durante uma saída temporária reacendeu o clamor popular por mudanças mais rígidas nas leis penais.
Dentro desse contexto, emerge a reflexão: a Suprema Corte deveria, mais uma vez, censurar o que parece ser um claro retrocesso no direito à execução da pena, fruto da pressão popular e do crescimento do populismo penal?
O Crescimento do Populismo Penal e a Lei 14.843/24
O populismo penal é uma constante em sociedades movidas pela comoção e pelo apelo midiático. O Brasil, infelizmente, não foge a essa regra. A Lei 14.843/24, aprovada sob forte pressão social, ficou conhecida como Lei Sargento PM Dias. Esta norma, além de revogar a saída temporária — um mecanismo consolidado no ordenamento jurídico como parte do sistema progressivo de cumprimento de pena —, trouxe previsões explícitas de monitoramento eletrônico e endurecimento no acesso à progressão de regime.
O que torna essa lei ainda mais preocupante, no entanto, é o seu manifesto regresso em relação à exigência de exames criminológicos para todas as progressões de regime. A redação originária da Lei de Execução Penal (LEP) já contemplava tal exigência, mas, em 2003, com a entrada em vigor da Lei 10.792/03, essa previsão foi retirada. Na época, a modificação foi amplamente justificada pela falta de estrutura no sistema penitenciário, que simplesmente não conseguia acompanhar a demanda, levando a atrasos significativos nos incidentes de execução. O resultado era um ambiente de desrespeito sistemático aos direitos dos presos.
Com a Lei 14.843/24, o retorno dessa exigência agrava ainda mais a já caótica situação do sistema penitenciário. O Brasil, cujo sistema carcerário já é conhecido pelo seu colapso estrutural, vê-se agora pressionado a lidar com uma nova onda de demandas, sem a mínima capacidade de dar respostas adequadas. O ideal da progressão de regime, que deveria funcionar como um estímulo à ressocialização, torna-se um mecanismo de punição continuada, aprisionando o indivíduo por mais tempo do que o necessário.
Impacto no Sistema Penitenciário
O sistema penitenciário brasileiro nunca acompanhou a evolução de sua própria população carcerária. A superlotação, a violência e a ineficiência do sistema são marcas já reconhecidas, como evidenciado na ADPF 347, onde o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou o estado de coisas inconstitucional no sistema prisional brasileiro.
O retorno das exigências de exames criminológicos introduzido pela Lei 14.843/24 não considera as dificuldades já conhecidas do sistema. Na prática, essas novas regras agravam a sobrecarga do sistema, aumentando o tempo de permanência de presos no regime fechado e dificultando ainda mais o processo de reintegração social. Isso se dá em um ambiente onde os índices de reincidência continuam elevados, justamente pela falha na implementação dos ideais da LEP.
A questão da saída temporária é outro ponto relevante. Dados apontam que a taxa de fuga durante essas saídas é mínima e não justifica a revogação completa do benefício. No entanto, em nome de um populismo penal que ignora as evidências, tais dados são seletivamente descartados para justificar políticas mais punitivas. O resultado é um endurecimento penal que, longe de solucionar o problema da criminalidade, infla o sistema penitenciário com mais indivíduos, sem qualquer preocupação com a eficácia das medidas adotadas.
Conclusão
O crescimento do populismo penal e sua influência na formulação de leis como a Lei 14.843/24 são um claro reflexo da fragilidade do sistema democrático frente à pressão popular e midiática. Em vez de se pautar por estudos, dados e políticas públicas baseadas em evidências, o sistema legislativo adota um caminho que favorece o encarceramento em massa, ignorando os problemas estruturais já amplamente conhecidos no sistema penitenciário brasileiro.
A revogação da saída temporária, a imposição retroativa de exames criminológicos e o endurecimento do regime progressivo representam retrocessos para a execução penal no Brasil, e, se somarmos a esses elementos a histórica ineficiência do sistema carcerário, fica evidente que o impacto será devastador. A Lei 14.843/24, ao tentar responder à comoção popular, ignora os avanços tímidos, mas importantes, conquistados após o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional pela ADPF 347.
É preciso reavaliar os rumos da execução penal no Brasil, repensar a implementação das penas e focar na ressocialização, ao invés de insistir em políticas punitivas que apenas inflam um sistema já em colapso. O populismo penal, ao contrário do que promete, apenas perpetua a crise do sistema carcerário e reforça o ciclo de reincidência, oferecendo, assim, mais punição e menos justiça.