Resumo
O tema deste trabalho versa sobre a fraude à cota de gênero nas eleições brasileiras, a partir da descrição e análise de suas consequências como forma de inibir a prática irregular e resguardar a participação feminina na política. A metodologia empregada na investigação foi a coleta de dados através de pesquisa bibliográfica na legislação de regência, na doutrina e na jurisprudência e normas regulamentares do Tribunal Superior Eleitoral atinentes ao tema.
Palavras-chave: Cota. Gênero. Fraude. Eleições.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo objetiva apresentar e analisar a disciplina normativa que rege o ilícito eleitoral da fraude à cota de gênero, tendo por motivo as crescentes notícias de casos envolvendo fraude a tal regra e sua consequente apuração e julgamento perante a Justiça Eleitoral.
Os objetivos específicos são fundamentar a obrigatoriedade da cota de gênero no ordenamento jurídico brasileiro, bem como apresentar a evolução jurídica pela qual passou a citada norma, e analisar os impactos de uma eventual condenação definitiva à perda do mandato, por fraude à cota de gênero.
O processamento de ações na Justiça Eleitoral em razão de descumprimento de regras eleitorais é ocorrência cada vez mais frequente atualmente, principalmente em se tratando de infringência a regras eleitorais introduzidas no sistema a partir da Minirreforma Política de 2009 (Lei nº 12.034/09).
Uma dessas regras é a obrigatoriedade da cota de gênero nas candidaturas para as eleições proporcionais, que consta na Lei das Eleições (Lei nº 9.504/97), que tem o condão de garantir a participação mínima de mulheres nesse tipo de eleição, de forma a fomentar a atuação feminina na política brasileira.
2. A COTA DE GÊNERO COMO NORMA IMPOSITIVA
A norma que dispõe sobre a cota de gênero nas eleições caracteriza-se como uma ação afirmativa. Esta pode ser definida como a atuação do Estado com vistas a garantir igualdade de oportunidades para pessoas historicamente discriminadas, como é o caso das mulheres, da população negra e da comunidade LGBTQIA+, perfectibilizando-se tanto através de políticas públicas, quanto através de normas jurídicas.
GOMES (2024, p. 731) conceitua cota de gênero da seguinte forma:
Por quota de gênero compreende-se a ação afirmativa que visa garantir espaço mínimo de participação de cada gênero, masculino e feminino, na vida política do País. Seu fundamento encontra-se nos valores atinentes à cidadania, dignidade da pessoa humana, igualdade e pluralismo político que fundamentam o Estado Democrático brasileiro (CF, art. 1º, II, III e IV). [grifo do autor]
Sendo assim, o fundamento da norma eleitoral atinente à cota de gênero possui natureza constitucional, possível de identificar já no preâmbulo da Constituição Federal de 1988 (CF/88), que cita, dentre outros, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social. Destaca-se também o art. 3º, IV da CF/88, que constitui como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Importante mencionar ainda a garantia constitucional disposta no art. 5º, I, que aduz que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos da Constituição.
A norma sobre reserva de gênero eleitoral, que está vigente hoje, foi fruto de alteração promovida pela Lei nº 12.034/09, que cuidou de implementar uma Minirreforma Política, e que, além da Lei das Eleições (Lei nº 9.504/97), também alterou a Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/95) e o Código Eleitoral (Lei nº 4.737/65).
A norma em questão está contida no art. 10, § 3º, da Lei das Eleições, que assim dispõe:
Art. 10. Cada partido poderá registrar candidatos para a Câmara dos Deputados, a Câmara Legislativa, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais no total de até 100% (cem por cento) do número de lugares a preencher mais 1 (um).
§ 3o Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo. [grifo nosso]
Agora, vejamos a redação do § 3o anterior à minirreforma:
§ 3º Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo. ). [grifo nosso]
À primeira vista, uma leitura irrefletida pode dar a impressão de que não houve alteração substancial do texto, porém a simples substituição da expressão “deverá reservar” por “preencherá”, trouxe outro tratamento dado pela norma e causou significativos impactos ao processo eleitoral até então vigente. Isso porque, com a alteração, a norma passou a prever que a cota de gênero deveria ser preenchida de forma obrigatória pelos partidos políticos quando do registro de candidaturas, deixando de vincular-se à reserva mínima de vagas, tal como dispunha a redação anterior, que garantia o preenchimento destas apenas e tão somente se surgissem interessadas.
3. CONSEQUÊNCIAS DE UMA CONDENAÇÃO POR FRAUDE À COTA DE GÊNERO
A Resolução TSE nº 23.735/2024, que dispõe sobre os ilícitos eleitorais, em seu art. 8º, 5º, tratou de reservar espaço para firmar o entendimento acerca das consequências geradas pela fraude à cota de gênero, no seguinte sentido:
A fraude à cota de gênero acarreta a cassção do diploma de todas as candidatas eleitas e de todos os candidatos eleitos, a invaidação da lista de candidaturas do partido ou da federação que dela tenha se valido e a anulação dos votos nominais e de legenda, com as consequências previstas no caput do art. 224 do Código Eleitoral.
Segundo informações divulgadas pelo TSE (2024), em sua página oficial, somente no ano de 2023, o referido Tribunal confirmou 61 casos de fraude à cota de gênero, e, até meados de maio de 2024, já contavam mais de 20 casos.
Em razão dessa crescente tendência durante o processo eleitoral, o TSE aprovou, na data de 16 de maio de 2024, uma súmula que trata sobre esse illícito, a fim de orientar partidos federções, candidatos e julgamentos da própria Justiça Eleitoral acerca do tema.
Trata-se da Súmula 73, cujo enunciado aduz o seguinte:
A fraude à cota de gênero, consistente no que diz respeito ao percentual mínimo de 30% de candidaturas femininas, nos termos do art. 10, § 3º, da Lei 9.504/1997, configura-se com a presença de um ou alguns dos seguintes elementos, quando os fatos e as circunstâncias do caso concreto assim permitirem concluir:
votação zerada ou inexpressiva;
prestação de contas zerada, padronizada ou ausência de movimentação financeira relevante;
ausência de atos efetivos de campanha, divulgação ou promoção da candidatura de terceiros.
O reconhecimento do ilícito acarretará as seguintes consequências:
cassação do Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários (DRAP) da legenda e dos diplomas dos candidatos a ele vinculados, independentemente de prova de participação, ciência ou anuência deles;
inelegibilidade daqueles que praticaram ou anuíram com a conduta, nas hipóteses de Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE);
nulidade dos votos obtidos pelo partido, com a recontagem dos quocientes eleitoral e partidário (artigo 222 do Código Eleitoral), inclusive para fins de aplicação do artigo 224 do Código Eleitoral, se for o caso.
No que tange à verifcação dos elementos caracterizadores GOMES (2024, p. 745), faz interessante ponderação sobre essa questão, aduzindo que "tais eventos são indiciários e, sozinhos, não podem significar que necessariamente que houve fraude ou que a canddatura em questão é fraudulenta". E continua, afirmando que "É mister que o contexto seja bem ponderado, afinal, não é impossível que surjam obstáculos que tornem muito difícil ou impeçam a candidata de levar adiante sua campanha, ou mesmo que simplesmente se desinteressse ou não se empolgue com ela".
Os elementos caracterizadores da fraude foram fruto de julgamentos realizados em casos anteriores, em que se verificou a ocorrência de padrões de conduta que revelavam a adoção de candidaturas fictícias pelo partido envolvido. A adoção dessas candidaturas fictícias visava atingir o percentual de 30% da cota de gênero e, consequentemente, a obtenção do Documento de Regularidade de Atos Partidários (DRAP) pela Justiça Eleitoral.
Um dos primeiros precedentes a estabelecer importantes decisões sobre o assunto foi o ocorrido em 2019, relativo às Eleições Municipais de 2016 em Valença do Piauí-PI. Neste julgamento, ficou decidido que a constatação de fraude à cota de gênero comprometeria todo o DRAP da legenda na localidade.
Mais recentemente, em 2022, o Tribunal debruçou-se sobre o mesmo ilícito ocorrid em Jacobina-BA, nas Eleições Municipais de 2020, ooportunidade em que fixou os critérios identificadores da fraude à cota de gênero, agora já sedimentados na Súmula 73.
Outra questão que merece destaque são as consequências advindas pela constatação de fraude à cota de gênero. Conforme se observa, a penalidade aplicada é bastante severa para o partido envolvido, indo da cassação do DRAP à anulação dos votos obtidos. Porém, observa-se que a penalidade é ainda mais dura para o canditado que logra êxito em ser eleito por esse partido. Isso porque o teor da súmula é claro ao afimar que a cassação dos diplomas ocorrerá independentemente de prova da participação, ciência ou concordância por parte dos candidatos eleitos.
Uma das críticas que se faz às consequências da condenação por esse tipo de fraude é justamente nesse ponto, visto que, ao imputar uma condenação de cassação do diploma a alguém que não atuou no ilícito eleitoral, mas que está vinculado ao partido que o elegeu, pode se apresentar como uma decisão desarrazoada de imputação objetiva.
No entanto, tal consequência deve ser objeto de uma análise mais reflexiva e ponderada da norma, sendo mister entender sua razão de ser.
Esta vinculação busca evitar que o partido se utilize da estratégia de ocultação da fraude a seus candidatos como justificativa para mantê-los no cargo, em caso de eleição. Ademais, insta salientar que, nas eleições proporcionais, prevalece o entendimento de que os partidos é que detém a representatividade, e não as pessoas eleitas.
Sendo assim, importante notar que, na medida em que as decisões da Justiça Eleitoral sobre tais irregularidades alcançam tanto a partidos políticos quanto aos que por estes foram eleitos, indistintamente, é inevitável que isso suscitará maior atenção ao cumprimento da cota de gênero por parte de todos os interessados no processo eleitoral. Dessa forma, espera-se que essa forte atuação da Justiça Eleitoral fomente o desestímulo à prática da fraude à cota de gênero eleitoral, contribuindo para a redução de ocorrrências dessa natureza e para o crescimento e fortalecimento da participação feminnina na política brasileira.
3. CONCLUSÃO
A participação feminina na política é tarefa que se impõe ao Estado e a toda a sociedade, como decorrência de princípios e normas consitucionais garantidora da igualdade entre as pessoas.
Dada essa premissa, estabeleceu-se uma importante ação afirmativa com vistas a garantir a participação da mulher nas Eleições proporcionais brasileiras. Trata-se da reserva de gênero eleitoral, instituída em 1997, pela Lei das Eleições (Lei nº 9.504/97), e que evoluiu para preenchimento de cota obrigatória, com a alteração promovida pela Lei nº 12.034/09 (Minirreforma Política).
Porém, esta evolução normativa foi seguida de vários ocorrências dando conta supostas fraudes ocoridas durante o processo eleitoral. Essa recorrência fez com que o Tribunal Superior Eleitoral amadurecesse o entendimento conferido a tais casos e editasse normas regulamentares acerca do tema, inclusive uma súmula (Súmula 73), em que define os elementos caracterizadores do ilícito e as consequências geradas pela condenação.
Quanto a este último aspecto, assentou-se que a condenação por fraude à cota de gênero acarreta duras penalidades ao partido envolvido e a todos os que participaram ou se beneficiaram com a conduta, o que inclui candidatos eleitos, independentemente de sua aquiescência ou ainda de seu gênero.
Verificou-se ainda que as fortes consequências de uma condenação por esse tipo de fraude tem a intenção de desestimular os partidos políticos e seus representantes de fraudar a norma eleitoral, possibillitando assim a higidez da disputa eleitoral.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 20 jun. 2024.
_____. Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9504.htm. Acesso em 29 jun. 2024.
_____. Lei nº 12.034, de 29 de setembro de 2009. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12034.htm. Acesso em 29 jun. 2024.
GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. Barueri: Atlas, 2024. [Versão E-book para Kindle]
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Resolução nº 23.735, de 27 de fevereiro de 2024. Disponível em: https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/res/2024/resolucao-no-23-735-de-27-de-fevereiro-de-2024. Acesso em 5 jul. 2024.
_____. Súmula TSE nº 73. Disponível em: https://www.tse.jus.br/legislacao/codigo-eleitoral/sumulas/sumulas-do-tse?b_start:int=60. Acesso em 5 jul 2024.
_____. TSE tem jurisprudência pacificada sobre fraude à cota de gênero para as Eleições 2024. Disponível em: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2024/Julho/tse-tem-jurisprudencia-pacificada-sobre-fraude-a-cota-de-generopara-as-eleicoes-2024. Acesso em 5 jul. 2024.