O STJ decidiu, em recurso repetitivo, que o marco para definição da natureza do crédito em recuperação judicial é o fato gerador, isto é, o momento que surge a pretensão do crédito.
A despeito da redação na lei de recuperação e falências (L. 11.101/05), há algum tempo existe o debate de qual seria o termo onde o crédito seria considerado concursal ou não.
A questão é central no âmbito do direito empresarial, e até mesmo nas relações consumeristas, que por vezes integram um rol significativo de pessoas no quadro geral de credores de empresas em recuperação judicial.
A LRF (L. 11.101/05) trata do tema no artigo 49, definindo que estão sujeitos à recuperação judicial, todos os créditos existentes na data do pedido da recuperação judicial, ainda que não vencidos.
E o que se considera crédito existente? A partir de que momento o crédito existe?
A problemática fica mais bem temperada quando se pensa nos créditos constituídos em decisão judicial. A sentença condenatória é constitutiva ou declaratória? O crédito é constituído com a decisão, ou a decisão somente declara um crédito já existente, p.ex. desde o inadimplemento contratual?
Houve posições de ambos os lados. No entanto, a falta de definição de um marco exato estava resultando na prática de burlar o processo de recuperação judicial, prejudicando o soerguimento das empresas em crise.
Dos que entendiam que o crédito somente existiria (art. 49, LRF) com a decisão judicial definitiva, sabendo da situação econômico-financeira da empresa, protelavam o trânsito em julgado da decisão condenatória afim de que só tivesse o trânsito em julgado após o pedido da recuperação judicial, tornando o crédito, portanto, extraconcursal. Com esta prática, os credores “escolhiam” se o seu crédito estaria sujeito ou não ao processo de recuperação judicial. Além de violar a par conditio creditorum, a depender do montante à ser executado fora do plano de recuperação, inviabilizaria o soerguimento da empresa recuperanda.
Por este motivo, o STJ em 2020 pode afetar o tema, em recurso repetitivo, para firmar a seguinte tese no Tema 1051:
“Para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador.”
Com isso, o STJ na ratio decidendi firmou no sentido de que o fato gerador, no exemplo citado acima, o descumprimento contratual e não a decisão condenatória. Isto é, desde a violação contratual, surge a pretensão da indenização; a sentença condenatória somente liquidaria o crédito que surgiu lá atrás, no inadimplemento na relação credor e devedor.
À primeira vista, parece ter solucionado a problemática. Mas só em parte.
Ocorre que, os artigos 61 e 63 da LRF determinam que após a concessão da recuperação judicial (art. 58, LRF), o devedor ficará em “supervisão judiciária” pelo prazo de 2 anos, que após este, tendo cumprido todas as obrigações do plano de recuperação judicial, será decretada o encerramento da recuperação.
Observação que o encerramento da recuperação judicial não significa no encerramento das obrigações do plano de recuperação, tampouco que os credores retardatários possam executar seus créditos (se concursais) de forma extraconcursal. Somente não está mais em supervisão do administrador judicial etc. Mas havendo descumprimento de obrigações do plano, o credor poderá requerer a execução específica ou a falência (art. 62, LRF).
E qual é a relação disso com a tese firmada pelo STJ?
Explico. Imagine a situação de um credor que possui um crédito fruto de indenização decorrente de um ato ilícito praticado pela empresa, antes do pedido de recuperação judicial, mas que a sentença condenatória foi proferida somente após o encerramento do processo de recuperação ou em estágio avançado do processo de recuperação, isto é, após votação em assembleia geral de credores etc.
Pelo Tema 1051, STJ, o fato gerador é anterior ao pedido de recuperação, logo o crédito é concursal. Mas neste caso, quando houve o pedido de recuperação, o credor não tinha como ter conhecimento se haveria um crédito (se o pedido indenizatório seria procedente ou não); de quanto seria o crédito. Essa situação problemática e peculiar se desenvolve, sem que seja culpa sua. Por morosidade do judiciário ou qualquer outro motivo o credor fica excluído de exercer seus direitos de credor no processo de recuperação judicial (cujo por sua vez tem características de processo negocial), não podendo: (1) habilitar-se no momento oportuno; (2) integrar o quadro geral de credores; (3) participar da assembleia geral de credores; (4) votar o plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor e (5) se for o caso, elaborar o plano de recuperação dos credores, quando não houver apresentação do PRJ (plano de recuperação judicial) após o stay period (art. 6°, §4°-A da LRF) ou havendo, houver sido rejeitado (art. 56, §4°, LRF).
Essa exclusão cria uma lacuna jurídica que contradiz os princípios fundamentais da recuperação judicial, especialmente o caráter negocial e coletivo do procedimento. A exclusão de credores cujo crédito não foi formalmente constituído à época do pedido parece desvirtuar esse objetivo, criando um cenário de desequilíbrio, tanto na violação da par conditio creditorum, onde alguns credores exercem plenamente seus direitos no procedimento negocial e outros não, quanto ao devedor que pode ter vantagem desproporcional aprovando um PRJ com o quorum reduzido na assembleia.
Veja que as desvantagens não são poucas. O art. 50 da LRF cria um rol exemplificativo de meios de recuperação judicial. Mas o judiciário não faz sindicância quanto o conteúdo da PRJ, somente controle de legalidade, ou seja, não há baliza nem controle do conteúdo, que faz parte da liberdade de negociação, com a aprovação do plano. É comum ter planos de recuperação com deságio de 90% nos créditos e prazo de 30 anos paga pagamento, por exemplo; sem que isso seja “ilegal”, pois foi submetido a votação na AGC (assembleia geral de credores).
Pense em uma AGC, onde o crédito mais substancial está em discussão judicial, e no momento da aprovação do plano, os credores habilitados são, créditos trabalhistas (que geralmente tem condições melhores de pagamento) e alguns créditos quirografários de pouco valor, que acabam votando de qualquer maneira, em razão do baixo valor. Os créditos que estavam em discussão judicial, quando forem constituídos e poderem habilitar-se, estarão submetidos a um plano, onde fossem habilitados anteriormente, poderiam tê-lo rejeitado, por crédito e por cabeça.
Parece que a metáfora do lago, de Thomas Jackson que inspira a recuperação judicial, onde os credores, em igualdade de tratamento participam da comunhão das perdas, para que a empresa recuperanda possa voltar a produzir benefícios econômicos e sociais não é tão justa com o credor que somente obtém seu crédito após todo o processo de recuperação, mas seu fato gerador é anterior ao pedido de recuperação, participando somente dos ônus da recuperação judicial.
E para aquecer a discussão sobre o fato gerador, tem-se a questão dos honorários advocatícios sucumbenciais, cujo STJ decidiu nos precedentes paradigmáticos EAREsp 1.255.986/PR e REsp 1.841.960/SP que a sentença ou ato jurisdicional equivalente é o marco para a constituição do direito aos honorários. Ou seja, o fato gerador dos honorários sucumbencial não será da contratação do advogado; da apresentação da pretensão ou resistência no processo; mas sim da decisão judicial, que “...é o ato processual que qualifica o nascedouro do direito à percepção dos honorários...” (REsp 1.841.960/SP).
Perceba que tanto o tema 1051 e os precedentes acima são de 2020, ano que a LRF foi substancialmente alterada pela Lei 14.112/20, que buscou modernizar a lei de recuperação e falências, mas ainda não solucionou este imbróglio. Em 2023/2024 o senado formou comissão de juristas para debater a reforma do código civil, incluído nela a comissão para tratar do livro de direito da empresa. A esperança que nesta oportunidade seja ventilada esta situação para debates.
Por ora, o que temos é um lençol de elástico pequeno para uma cama grande. Cobre-se um lado e solta de outro. O STJ para solucionar a questão dos credores fugirem da concursalidade dos créditos, atrasando o transito da sentença, deixou a situação dos créditos tardios descoberto.