Tenho acompanhado os debates sobre o Marco Civil da Internet sobre os limites da liberdade de expressão nas redes sociais e as responsabilidades das Big Techs.
O STF tem analisado ações relacionadas à moderação de conteúdo pelas plataformas digitais, considerando os limites da liberdade de expressão, principalmente em casos que envolvem a remoção de conteúdos sem uma decisão judicial clara. O Tribunal tem discutido até que ponto as plataformas podem ser responsabilizadas por conteúdos prejudiciais ou ilegais sem que haja uma ordem judicial, ou até onde vai à autonomia das empresas para censurar ou moderar conteúdos de acordo com suas próprias políticas.
Em relação ao art. 19, do Marco Civil da Internet, o STF tem sido chamado a decidir sobre a constitucionalidade de certas práticas de remoção de conteúdos e de bloqueio de contas, especialmente quando essas medidas são tomadas sem ordem judicial, o que poderia ferir o princípio da liberdade de expressão.
O STF reforça que as plataformas podem ser responsabilizadas por conteúdos fraudulentos ou nocivos, mesmo antes de uma ordem judicial formal, caso os algoritmos e as políticas das plataformas não cumpram com o devido controle de conteúdos. No entanto, não somente é o Supremo Tribunal Federal (STF) que analisa os limites da liberdade de expressão na internet. O PL das Fake News (Projeto de Lei nº 2.630/2020) institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Transcrevo:
Art. 3º Esta Lei será pautada pelos seguintes princípios:
I – liberdade de expressão e de imprensa;
II – garantia dos direitos de personalidade, da dignidade, da honra e da privacidade do indivíduo;
III – respeito ao usuário em sua livre formação de preferências políticas e de uma visão de mundo pessoal;
IV – responsabilidade compartilhada pela preservação de uma esfera pública livre, plural, diversa e democrática;
V – garantia da confiabilidade e da integridade dos sistemas informacionais;
VI – promoção do acesso ao conhecimento na condução dos assuntos de interesse público;
VII – acesso amplo e universal aos meios de comunicação e à informação;
VIII – proteção dos consumidores; e
IX – transparência nas regras para veiculação de anúncios e conteúdos pagos.
Art. 4º Esta Lei tem como objetivos:
I – o fortalecimento do processo democrático por meio do combate ao comportamento inautêntico e às redes de distribuição artificial de conteúdo e do fomento ao acesso à diversidade de informações na internet no Brasil;
II – a defesa da liberdade de expressão e o impedimento da censura no ambiente online;
III – a busca por maior transparência das práticas de moderação de conteúdos postados por terceiros em redes sociais, com a garantia do contraditório e da ampla defesa; e
IV – a adoção de mecanismos e ferramentas de informação sobre conteúdos impulsionados e publicitários disponibilizados para o usuário.
(...)
Seção I - Disposições Gerais
Art. 6º Com o objetivo de proteger a liberdade de expressão e o acesso à informação e fomentar o livre fluxo de ideias na internet, os provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada, no âmbito e nos limites técnicos de seu serviço, devem adotar medidas para:
I – vedar o funcionamento de contas inautênticas;
II – vedar contas automatizadas não identificadas como tal, entendidas como aquelas cujo caráter automatizado não foi comunicado ao provedor de aplicação e, publicamente, aos usuários; e
III – identificar todos os conteúdos impulsionados e publicitários cuja distribuição tenha sido realizada mediante pagamento ao provedor de redes sociais.
§ 1º As vedações do caput não implicarão restrição à manifestação artística, intelectual ou de conteúdo satírico, religioso, político, ficcional ou literário, ou a qualquer outra forma de manifestação cultural, nos termos dos arts. 5º, inciso IX, e 220 da Constituição Federal.
§ 2º A identificação de conteúdos impulsionados e publicitários de que trata este artigo deve ser disponibilizada de maneira destacada aos usuários e mantida inclusive quando o conteúdo ou mensagem for compartilhado, encaminhado ou repassado de qualquer maneira.
§ 3º Os provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada devem desenvolver procedimentos contínuos para melhorar sua capacidade técnica para o cumprimento das obrigações estabelecidas neste artigo.
§ 4º Os provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada devem adotar medidas técnicas que viabilizem a identificação de contas que apresentem movimentação incompatível com a capacidade humana, devendo informá-las em seus termos de uso ou outros documentos disponíveis aos usuários.
Seção IV - Dos Procedimentos de Moderação
Art. 12. Os provedores de aplicação de internet submetidos a esta Lei devem garantir o direito de acesso à informação e à liberdade de expressão de seus usuários nos processos de elaboração e aplicação de seus termos de uso, disponibilizando mecanismos de recurso e devido processo.
§ 1º Em caso de denúncia ou de medida aplicada em função dos termos de uso das aplicações ou da presente Lei que recaia sobre conteúdos e contas em operação, o usuário deve ser notificado sobre a fundamentação, o processo de análise e a aplicação da medida, assim como sobre os prazos e procedimentos para sua contestação.
§ 2º Os provedores dispensarão a notificação aos usuários se verificarem risco:
I – de dano imediato de difícil reparação;
II – para a segurança da informação ou do usuário;
III – de violação a direitos de crianças e adolescentes;
IV – de crimes tipificados na Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é, sem dúvida, um marco solene, que consagra princípios humanísticos inéditos nas constituições anteriores, destacando-se pela primazia da dignidade humana como seu “Espírito da Lei”. Sem esse princípio fundamental, que assegura o valor intrínseco do ser humano, independentemente de classe social, sexualidade, etnia ou qualquer outra característica, é impensável garantir a verdadeira proteção dos direitos individuais. Infelizmente, o Brasil passou por tentativas de destruição e relativização desses direitos, culminando em momentos sombrios, como os trágicos eventos de 8 de janeiro de 2023. Contudo, estamos vivendo um processo de retorno à normalidade, com a reafirmação dos direitos humanos como pilares do Estado Democrático de Direito, superando as adversidades de um período de crise, em que até os operadores do Direito, comprometidos não apenas com a legislação, mas com a justiça que ela representa, enfrentaram grandes desafios para defender esses valores fundamentais.
Os ministros e a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) são educados. Porém, a educação deve conter a realidade: somos seres vivos. Somos seres orgânicos e emocionais, cujas reações frequentemente se originam no inconsciente. Muitas vezes, o que acreditamos ser nossas decisões racionais estão, na verdade, moldadas por processos emocionais profundos, dos quais não temos plena consciência. O ego, que é a parte da psique responsável pela nossa percepção consciente da realidade, lida constantemente com o conflito entre os impulsos do id, representando os desejos primitivos, e as exigências do superego, que traz as normas sociais e morais internalizadas. O ego busca equilibrar esses dois aspectos por meio de mecanismos de defesa, que ajudam a reduzir a ansiedade gerada por esse conflito interno.
A repressão é talvez o mecanismo de defesa mais conhecido, onde o ego bloqueia pensamentos e sentimentos inaceitáveis ou dolorosos para evitar que se tornem conscientes. A negação também age similarmente, mas ao rejeitar a realidade, o indivíduo se recusa a aceitar fatos que causariam angústia. A projeção é outro mecanismo comum, onde uma pessoa atribui a outros os sentimentos ou desejos que não consegue reconhecer em si. Já a racionalização busca dar explicações lógicas para atitudes que, na verdade, têm raízes emocionais, ajudando a manter a imagem de um sujeito coerente e razoável.
Outros mecanismos como o deslocamento fazem com que a pessoa redirecione sentimentos intensos de uma situação para um alvo menos ameaçador, enquanto a formação reativa leva a pessoa a adotar comportamentos opostos aos sentimentos reais para evitar o desconforto emocional. A sublimação é vista como um mecanismo de defesa positivo, onde desejos e impulsos inaceitáveis são canalizados para atividades socialmente aceitas e até admiradas, como a arte ou o esporte. Já a regressão ocorre quando, diante de situações de estresse, a pessoa volta a comportamentos típicos de estágios anteriores do desenvolvimento.
A compensação é uma tentativa de lidar com uma fraqueza percebida por meio da ênfase em outras qualidades ou habilidades. A identificação ocorre quando o indivíduo assimila características de outras pessoas para lidar com sentimentos de inferioridade, enquanto a introjeção implica a internalização das normas e valores de outras pessoas, especialmente figuras de autoridade. Por fim, o isolamento permite a separação de emoções de uma situação, de modo a não serem processadas emocionalmente, facilitando a adaptação à realidade sem maiores desgastes.
Esses mecanismos de defesa são essenciais para a manutenção do equilíbrio psíquico, permitindo que o ego lide com os conflitos internos e as pressões externas, mesmo quando a razão parece estar, por vezes, à mercê do emocional. Assim, a psicanálise oferece uma chave para compreender como essas dinâmicas inconscientes moldam nosso comportamento e nos ajudam a navegar pelo complexo universo das emoções e da razão.
Antes da Revolução Francesa, a sociedade era rigidamente estratificada em três grandes estados: o Primeiro Estado (clero), o Segundo Estado (nobreza) e o Terceiro Estado (camponeses, burguesia e trabalhadores). Essa divisão era marcada pela falta de mobilidade social, ou seja, as pessoas nasciam, viviam e morriam em suas classes sociais, sem a possibilidade real de ascensão. Cada indivíduo se adaptava aos seus papéis sociais e se defendia psicologicamente das limitações impostas pela sua posição, por meio dos mecanismos de defesa do ego. As classes mais altas, como a nobreza e a realeza, frequentemente extrapolavam as convenções morais e religiosas da Igreja, dado o seu poder e status, enquanto as classes mais baixas, como o Terceiro Estado, se viam obrigadas a se moldar à religião e aos valores sociais estabelecidos pela autoridade eclesiástica, com a repressão de seus desejos mais profundos.
A Revolução Francesa quebrou esse paradigma, ao transmitir uma ideia de igualdade, sugerindo que qualquer pessoa poderia alcançar o que desejasse, quebrando as barreiras sociais e estabelecendo a base para um novo conceito de mobilidade social. Esse ideal foi amplificado com o avanço científico e o fortalecimento do antropocentrismo, onde o ser humano passou a ser visto como o "senhor do mundo", tendo o direito de moldar a natureza e a si mesmo. Nesse novo contexto, o indivíduo se tornou o centro das atenções, e suas vontades, desejos e potenciais passaram a ser o principal foco da sociedade. Esse conceito começou a se expandir também com as teorias da psicanálise, que defendiam que o inconsciente humano deveria ser manifestado e expresso, muitas vezes através dos produtos de consumo.
Ao longo do tempo, essa lógica foi absorvida pelas publicidades e pela cultura de consumo, que passaram a sugerir que os desejos inconscientes poderiam ser atendidos por meio do consumo de produtos específicos. O apelo de que "você pode ser o que quiser" se tornou uma mensagem recorrente, impulsionada pela indústria, que prometia satisfação emocional e social através de bens materiais, criando uma nova forma de adaptação dos indivíduos à sociedade contemporânea. O mercado foi construído com base na exploração dos desejos inconscientes, utilizando-se de mecanismos psicológicos para promover produtos que, de alguma forma, preenchessem lacunas emocionais e sociais.
No entanto, no século XXI, essa lógica de consumo e exposição mediática tem gerado um paradoxo: a exposição excessiva e muitas vezes irresponsável aos meios de comunicação e à publicidade leva os indivíduos a uma falta de responsabilidade social e coletiva. As pessoas são constantemente estimuladas a agir com base em impulsos imediatos e em desejos superficiais, sem refletir sobre as consequências dessas ações para a sociedade como um todo. O conceito de responsabilidade desaparece em favor da busca incessante por satisfação individual, muitas vezes negligenciando a dimensão social de suas escolhas.
Essa desconexão entre o indivíduo e o coletivo é visível na crescente incapacidade de reflexão sobre as próprias ações, especialmente quando elas podem afetar o bem-estar comum. Um exemplo disso é a influência midiática, onde as pessoas, ao seguir tendências ou ideais promovidos pelos meios de comunicação, não pensam nas implicações éticas de suas escolhas e comportamentos. Como resultado, o comportamento irresponsável de um indivíduo, em termos de consumo ou discurso público, gera uma reação na sociedade, refletindo de volta as consequências daquilo que foi gerado.
O ciclo de reações e consequências sugere que, ao negligenciar a responsabilidade coletiva e atuar apenas em função de desejos individuais, os indivíduos acabam contribuindo para a instabilidade social e a fragilidade moral da sociedade. Mais tarde, o mesmo indivíduo, ao se tornar alvo das consequências de suas ações, pode perceber a interconexão entre seus desejos inconscientes, as mensagens de consumo e as responsabilidades que deveria ter assumido como parte da sociedade.
Assim, o individualismo exacerbado, promovido pela cultura de consumo e pelo apelo midiático, cria um cenário onde as pessoas se distanciam cada vez mais do sentido coletivo, esquecendo que suas ações geram repercussões no tecido social. Nesse contexto, a psicanálise, ao identificar os desejos inconscientes que movem o comportamento humano, oferece uma reflexão importante sobre como essas dinâmicas influenciam não apenas a psique individual, mas também o equilíbrio e a moralidade da sociedade. A verdadeira liberdade só será alcançada quando o indivíduo for capaz de conciliar seus desejos pessoais com a responsabilidade social, reconhecendo que suas ações têm um impacto duradouro no mundo em que vive.
Quando a internet começou a se tornar acessível para os civis no Brasil, ela trouxe consigo uma revolução na forma como as pessoas interagiam, principalmente por meio de redes sociais como o (extinto) Orkut. Esse espaço digital, como bem apontado por alguns ministros, proporcionou um encontro de pessoas de diferentes regiões, etnias e culturas, permitindo a troca de ideias, o conhecimento, e até a formação de novos relacionamentos — seja para amizade ou até para romance. Em muitos aspectos, a internet era vista como uma plataforma de expansão das fronteiras sociais, onde as interações eram possíveis independentemente das limitações físicas ou geográficas.
Entretanto, a internet não é uma realidade completamente desvinculada do mundo físico e emocional. Ela é, na verdade, uma extensão da realidade humana, sendo uma projeção do comportamento humano e das interações sociais, incluindo as dinâmicas de poder, preconceito e discriminação que marcam a sociedade em geral. A realidade emocional do ser humano, com seus valores culturais, suas experiências históricas e suas tensões sociais, também se manifesta nesse ambiente digital. Ou seja, assim como no mundo físico, as virtudes e os defeitos dos indivíduos e das sociedades também se refletem no espaço virtual.
Um exemplo claro disso foi o caso que envolveu a extinta rede Orkut, amplamente discutido pelo Ministro Luiz Fux no julgamento do RE 1057258, em que se discutiu o direito de uma professora que pediu à rede social a retirada de uma comunidade ofensiva. Essa comunidade, criada por usuários da plataforma, ironizava e disseminava preconceituosos contra a profissional. O caso chamou a atenção para o fato de que, embora o ambiente digital seja muitas vezes visto como um espaço de liberdade e anonimato, ele não está imune aos efeitos da realidade social, como o racismo e outras formas de discriminação. O episódio, portanto, trouxe à tona uma questão crucial: a internet, como extensão da realidade, deve ser tratada com as mesmas responsabilidades legais e sociais que as interações no mundo físico.
O ministro Luiz Fux, ao apresentar o seu relatório, sublinhou a importância de proteger os indivíduos de ataques prejudiciais à sua dignidade e honra no ambiente digital, considerando a internet como um meio de comunicação e expressão, mas também como um espaço onde se deve assegurar os direitos fundamentais das pessoas. No caso da professora, a rede Orkut foi pressionada a remover o conteúdo ofensivo, em um momento em que as plataformas digitais começavam a ser desafiadas por sua responsabilidade na moderação de conteúdo e na proteção da dignidade humana.
Esse episódio é um exemplo claro de como a internet reflete e amplifica os desafios da sociedade real, como o preconceito racial, mas também como ela pode servir de plataforma para a luta pelos direitos humanos e pela justiça social. A evolução das redes sociais, que passaram de um simples espaço de encontros e trocas de ideias para um campo de batalha contra a violação dos direitos humanos, exige cada vez mais uma responsabilidade das plataformas digitais, não só no que diz respeito à liberdade de expressão, mas também à preservação da dignidade humana.
O caso da professora é emblemático, pois nos lembra que a internet não é um espaço isolado da realidade social, mas uma extensão dela, com todos os desafios e complexidades que envolvem questões como o racismo, a intolerância e o respeito à dignidade.
O Direito é, sem dúvida, uma expressão da sociedade, refletindo as ideologias que moldam o comportamento e as relações sociais. Essas ideologias podem ser de natureza religiosa, política ou econômica, e através do Direito, a sociedade materializa tanto seus desejos conscientes quanto inconscientes. Embora o Direito, em sua forma mais visível, seja frequentemente entendido como letra fria da lei, ele é, na realidade, impregnado de valores culturais que expressam as estruturas de poder, as normas sociais e até mesmo os instintos da sociedade. O Direito, portanto, não é apenas um conjunto de normas, mas um reflexo das ideologias dominantes e das dinâmicas de poder de uma época.
Um exemplo histórico claro disso é o Código Civil de 1916, que refletia uma sociedade patriarcal em que as mulheres eram vistas de maneira instrumental. O corpo feminino, naquela época, não tinha uma plena autonomia, sendo controlado por um sistema cultural que subjugava a mulher à figura do homem, seu guardião. Nesse contexto, o direito não representava a liberdade ou os direitos plenos da mulher, mas sim uma estrutura de poder que reforçava a dependência e a subordinação feminina, evidenciando como a legislação é uma construção cultural que acompanha os valores predominantes em uma sociedade.
Esse tipo de estrutura de poder, que objetifica e submete certos grupos sociais, se estende para outras áreas da sociedade, e podemos ver isso também na maneira como o racismo estrutural estava presente na cultura e na legislação. No caso do Orkut, a sociedade da época — incluindo os próprios operadores de Direito — não estava preparada para entender a solicitação de uma professora que pedia a remoção de uma comunidade ofensiva. Esse episódio, aparentemente localizado no contexto de uma plataforma digital, revela algo mais profundo: a realidade social da época ainda era marcada por racismo estrutural e outras formas de discriminação sistêmica.
O racismo não se limitava apenas à relação entre brancos e negros, mas se expandia para outros grupos marginalizados pela sociedade: as pessoas LGBTQI+, aquelas com deficiência, mulheres, indígenas, e qualquer pessoa que não se encaixasse no modelo utilitarista ou normativo da sociedade daquela época. A opressão era multifacetada, e a lei, como expressão da sociedade, reproduzia essa desigualdade de maneira institucionalizada, refletindo o inconsciente coletivo de um país marcado por séculos de discriminação e exclusão social.
Foi nesse cenário de injustiça e exclusão que a Constituição Federal de 1988 foi elaborada, representando uma tentativa de transformação e superação do legado autoritário e discriminatório que marcava o Brasil desde os anos de chumbo (1964-1985). Ou melhor, desde o "descobrimento".
A CRFB de 1988 não apenas estabeleceu direitos e garantias fundamentais para os cidadãos, mas também refletiu a realidade inconsciente de um povo que, após décadas de repressão, buscava reverter séculos de objetificação de minorias.
Essas minorias — como pessoas LGBTQI+, negros e seus descendentes, povos indígenas, mulheres, pessoas com deficiência e aqueles com crenças religiosas não judaico-cristãs — foram, ao longo da história, marginalizadas e invisibilizadas, tanto nas esferas jurídicas quanto nas sociais. A Constituição de 1988 visou corrigir essa trajetória histórica, oferecendo uma estrutura legal que buscava a inclusão e a valorização da diversidade.
A legislação pós-88 expressa a necessidade consciente e inconsciente de reparação das injustiças passadas e a busca por uma sociedade mais justa e igualitária, onde o direito não seja mais uma ferramenta de opressão, mas um meio de liberação e reconhecimento dos direitos de todos. Ao mesmo tempo, essa transformação no direito reflete uma mudança cultural em curso, que se manifesta tanto no mundo jurídico quanto nas relações sociais. A Constituição de 1988 não é apenas uma Carta Jurídica, mas um reflexo do anseio de uma sociedade que, finalmente, reconhece as vozes daqueles que foram historicamente silenciados e marginalizados.
Portanto, o Direito, como uma expressão da sociedade, carrega consigo não apenas as normas explícitas que regem a convivência social, mas também os valores e ideologias subjacentes de uma cultura que, ao longo do tempo, vai se transformando. A jornada para a superação de preconceitos históricos, como o racismo e a subordinação das mulheres, é uma jornada cultural e emocional, e o direito, como instrumento da sociedade, desempenha um papel crucial nesse processo de mudança.
A Revolução Industrial, iniciada no século XVIII, provocou uma transformação radical na sociedade, com a mecanização da produção e a urbanização em massa. Esse processo gerou grandes desigualdades, principalmente nas condições de trabalho, e foi um dos motores para a reflexão sobre os direitos dos trabalhadores e as condições sociais. A Revolução Francesa de 1789 também teve um impacto significativo, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que introduziu os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, influenciando profundamente as futuras constituições e as lutas por direitos civis no Ocidente.
Ao longo do século XIX, o movimento abolicionista conquistou vitórias importantes, como a abolição da escravidão no Brasil em 1888, e o fim da escravidão nos Estados Unidos em 1865. As ideias liberais também se consolidaram, estabelecendo bases para os direitos individuais e sociais. A Revolução Russa de 1917, por sua vez, marcou a ascensão do socialismo na Rússia, com a promessa de uma nova ordem social, embora o regime soviético tenha restringido muitos direitos individuais ao longo do tempo.
Após a Segunda Guerra Mundial, o mundo assistiu à criação da Organização das Nações Unidas (ONU), e em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada, oferecendo um marco global para a proteção da dignidade humana, a liberdade e a igualdade. Nas décadas seguintes, movimentos de direitos civis emergiram em vários países, incluindo os EUA, onde figuras como Martin Luther King lideraram a luta contra o racismo, e outras lutas por direitos das mulheres, direitos trabalhistas e igualdade de gênero.
O fim do apartheid na África do Sul em 1994 foi um marco fundamental, quando Nelson Mandela se tornou o primeiro presidente negro do país, simbolizando a vitória contra a segregação racial e a luta por direitos igualitários. No século XXI, os direitos humanos continuaram a se expandir com movimentos globais em defesa dos direitos de LGBTQIA+, pessoas com deficiência, e a luta contra violência de gênero e discriminação racial. A internet também emergiu como um novo campo de debate sobre liberdade de expressão e privacidade, ampliando os desafios e as oportunidades para a proteção dos direitos humanos em uma era digital.
Essa trajetória histórica reflete a evolução das ideias sobre direitos humanos, movendo-se de uma sociedade marcada pela opressão e desigualdade para uma busca contínua por justiça, liberdade e inclusão. No entanto, as lutas ainda estão longe de ser concluídas, com desafios persistentes no que diz respeito à equidade, dignidade e liberdade em muitas partes do mundo.
O liberalismo clássico, que emergiu com a Revolução Francesa, é uma corrente filosófica e política baseada na defesa de um Estado mínimo, onde as liberdades individuais são prioritárias. Nesse modelo, as leis (ou normas jurídicas) devem ser claras, públicas e universais, permitindo que os cidadãos saibam claramente o que é permitido ou proibido, garantindo a autonomia pessoal dentro de um marco jurídico bem definido. A publicidade dos atos administrativos, princípio que exige transparência nas ações do Estado, é um dos aspectos fundamentais desse modelo, pois assegura que a administração pública seja aberta e acessível, permitindo que os cidadãos se orientem e se protejam contra abusos de poder.
No entanto, essa liberdade não foi suficiente para eliminar as desigualdades sociais e as práticas de instrumentalização e objetificação do ser humano. Embora o liberalismo tenha estabelecido o princípio de que todos são iguais perante a lei, essa igualdade formal não se traduziu em igualdade material. A concepção de raças superiores e inferiores, ou servos e senhores, ainda persistia, com base em teorias pseudocientíficas que justificavam a discriminação, a violência e a escravidão, e que foram, em muitos casos, respaldadas por uma interpretação positivista do direito, onde as normas eram vistas como independentes das questões éticas e morais.
No século XX, o neoliberalismo surgiu como uma versão mais radical do liberalismo clássico, especialmente a partir da década de 1970, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Durante a Guerra Fria, a luta ideológica entre o capitalismo e o comunismo moldou as políticas econômicas globais, sendo que o neoliberalismo surgiu como uma tentativa de revitalizar o capitalismo com uma menor intervenção do Estado na economia. Milton Friedman, um dos principais expoentes desse movimento, defendia que o Estado não deveria legislar contra o racismo ou impor inclusão social, pois isso interferiria na liberdade individual e na autonomia privada. Para ele, o papel do Estado deveria ser limitado à proteção da propriedade privada e ao estímulo ao mercado livre. Segundo Friedman, as liberdades individuais de lojistas e empresas deveriam ser preservadas, desde que seus interesses não colidissem diretamente com os objetivos econômicos do mercado, ou seja, os preconceitos de um indivíduo não deveriam ser proibidos, mas, se praticados, acarretariam um prejuízo econômico. No entanto, a ideia de que as liberdades individuais seriam suficientes para garantir justiça e igualdade ignora as dinâmicas sociais mais profundas de exclusão e exploração.
A globalização, que se acelerou nas últimas décadas, facilitou a mobilidade de capitais e o comércio transnacional, criando uma nova dinâmica de riqueza global. As tecnologias de transporte, como aviões e navios, desempenharam um papel crucial na facilitação do comércio transatlântico e na expansão do capitalismo global. Contudo, esse avanço tecnológico também trouxe consigo formas de exploração transnacional, com empresas multinacionais aproveitando-se de legislações fracas em países em desenvolvimento, onde os direitos trabalhistas e humanos eram (ou ainda são) pouco protegidos. A China, que é oficialmente um regime comunista, tornou-se um dos maiores polos do capitalismo global, com empresas multinacionais se estabelecendo no país para explorar mão de obra barata, aproveitando-se das suas leis trabalhistas ainda em desenvolvimento. Embora o país tenha progredido em muitos aspectos, as condições de trabalho e os direitos humanos dos trabalhadores ainda são uma questão central.
Além disso, a globalização também resultou em um aumento significativo do consumismo e do desperdício de recursos naturais, exacerbando as questões ambientais. Uma das consequências mais críticas dessa dinâmica é o comércio transatlântico de lixo, onde países industrializados, com sistemas de reciclagem ineficazes, exportam suas tecnologias obsoletas e resíduos tóxicos para países em desenvolvimento, criando uma nova forma de colonialismo ambiental. Esse processo, embora legal em termos de normas internacionais, implica sérios danos ao meio ambiente e à saúde humana, particularmente em países que não têm a infraestrutura necessária para lidar com esses resíduos de maneira adequada.
Em muitos casos, o capitalismo global explora brechas nas legislações nacionais, especialmente em países onde os direitos humanos ainda não são plenamente assegurados, particularmente na terceira dimensão dos direitos humanos, que envolve direitos econômicos, sociais e culturais. Quando as legislações são inadequadas ou ineficazes, o capitalismo tende a se aproveitar dessas lacunas para maximizar os lucros, muitas vezes à custa da dignidade humana, da justiça social e da sustentabilidade ambiental. O neoliberalismo, com sua ênfase na liberdade de mercado e na autonomia do indivíduo, muitas vezes negligencia as complexas desigualdades estruturais e as questões sociais que continuam a perpetuar as violações dos direitos humanos, tanto no contexto local quanto global.
O pós Segunda Guerra Mundial foi um marco no desenvolvimento dos direitos humanos, especialmente no âmbito do direito internacional público, com a criação da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948. A partir dessa declaração, ficou claro que, embora os Estados mantenham sua soberania, não podem violar os direitos humanos que são universalmente reconhecidos. Isso trouxe uma nova perspectiva ao direito internacional, no qual os Estados têm a obrigação de respeitar e proteger os direitos fundamentais das pessoas, independentemente de sua nacionalidade.
Porém, com a globalização digital e o surgimento das Big Techs, como Google, Facebook, Twitter e outras plataformas, surgiram novas questões sobre o alcance desses direitos, especialmente em relação ao direito à liberdade de expressão. As empresas, embora privadas, possuem uma responsabilidade social, pois seus algoritmos e diretrizes podem impactar diretamente os direitos dos usuários. Por exemplo, um vídeo de uma mulher indígena nua pode ser removido de uma plataforma digital por violar regras de pudor, sem considerar que, para muitas culturas indígenas, a nudez não tem a conotação de vergonha ou pecado que as normas colonizadoras impõem. Esse tipo de censura ocorre não por uma intervenção direta do Estado, mas pela automação dos algoritmos que seguem diretrizes internas das plataformas, que são, por sua vez, moldadas pelas ideologias predominantes.
Dessa forma, ao falar sobre liberdade de expressão, as Big Techs se contradizem. Embora promovam a liberdade de publicar e compartilhar conteúdo, suas diretrizes, alimentadas por preconceitos culturais e valores hegemônicos, acabam impondo uma forma de censura digital. O argumento de que a regulação estatal geraria censura prévia e falta de veracidade não pode ser aceito sem considerar que a censura exercida por essas empresas é igualmente arbitrária e não responde a uma democracia participativa. Assim, ao moldar a estrutura do direito, seja ele interno ou internacional, estamos lidando com sistemas influenciados por hegemonias culturais e econômicas, que precisam ser constantemente reavaliadas para garantir que os direitos humanos sejam verdadeiramente universais.
De fato, a partir da visão de Milton Friedman, o liberalismo econômico se baseia na ideia de que as liberdades individuais devem ser preservadas, e o mercado deve ser livre para atender às necessidades e desejos dos consumidores. Segundo essa perspectiva, as Big Techs, como empresas capitalistas, buscam maximizar seus lucros, atendendo às expectativas dos usuários. Isso implica que, sem diretrizes regulatórias, as plataformas poderiam permitir a disseminação de conteúdos sem restrições, como vídeos de mulheres nuas, desde que isso atendesse à demanda dos consumidores e gerasse lucros com a monetização desses conteúdos. Sob essa ótica, a liberdade de expressão e a liberdade de mercado seriam vistas como compatíveis, desde que não houvesse interferência regulatória.
No entanto, essa liberdade de mercado sem base nos direitos humanos pode, de fato, levar à violação de direitos fundamentais. A ausência de diretrizes claras pode resultar em divulgações de conteúdos prejudiciais, como vídeos de abuso ou exploração sexual, incluindo pedofilia. Essas questões não podem ser justificadas ou relativizadas por motivos culturais ou pela busca de lucro. O capitalismo sem uma estrutura de proteção dos direitos humanos se torna perigoso, pois pode negligenciar os direitos básicos e a dignidade humana em nome da monetização.
Debates nos Estados Unidos e na União Europeia demonstram que há um limite para a liberdade de expressão nas plataformas digitais quando se trata de conteúdos nocivos, como a abuso sexual ou pedofilia. Nesses casos, a proteção das vítimas e a segurança pública devem ser priorizadas, e não podem ser negociadas em função da cultura ou do mercado. As plataformas digitais têm a responsabilidade de garantir que seus algoritmos e diretrizes internas não incentivem ou permitam a propagação de conteúdo prejudicial. Portanto, o capitalismo precisa ser equilibrado com a responsabilidade social, a fim de garantir que as plataformas digitais não violem os direitos humanos em nome do lucro.