Introdução
Tanto a moral quanto a religião são sistemas que exercem autopoiese com o sistema jurídico, isto é, inspiram na formação do direito e influenciam em seu desenvolvimento. É, portanto, evidente a necessidade de serem estudados conjuntamente. Tal importância é facilmente observada quando se analisa a grande parte de trabalhos surgindo relacionando os temas, tanto na área jurídica quanto nas demais ciências sociais. Se mostra ainda mais necessário no cenário brasileiro, especialmente em contextos em que a secularidade do Estado é proclamada, mas, na prática, se revela permeada por influências religiosas. Se observa uma complexa intersecção entre as normas de direito canônico e o ordenamento jurídico civil, especialmente no que se refere ao Direito de Família. Essa intersecção levanta questionamentos acerca da laicidade do Estado brasileiro, especialmente quando se analisa a persistência de normas ou no mínimo, premissas de caráter religioso nas esferas jurídicas.
O presente estudo vai investigar o conceito de família, fazendo uma análise histórica do conceito, mas para além desta, tentar entender seus fundamentos atuais. Também, analisar a hipótese de a religião ser apenas parte do pluralismo jurídico e se isso seria uma resposta suficiente para a situação jurídica brasileira vivida no momento posterior à constituição de 1988. O foco, no entanto, é tratar da evolução da família e da constituição do matrimônio. Por fim, cumpre ainda fazer uma análise da chamada "falsa laicidade" presente na atual Constituição brasileira, e como se desenrolou na prática o processo da laicização e seus reflexos na construção das normas familiares. Com isso, analisar os impactos do favorecimento ou não de uma religião, no que se refere à velocidade de desenvolvimento do direito, isto é, como a falsa laicidade impacta no ordenamento jurídico de um Estado e como isso está ligado ao fato da dificuldade em acompanhar as mudanças que ocorrem no mundo, bem como se adequar às mudanças nem tão recentes, mas fruto de um mundo globalizado.
1. O direito canônico e sua doutrina sobre o casamento
O direito canônico pode ser entendido como um conjunto de normas jurídicas de natureza humana, mas, inspiradas pela razão oriunda de Deus, qual tem sua validade emana da máxima autoridade da Igreja Católica, sendo este direito o ramo que disciplina a organização da Igreja bem como suas atividades. Acerca disso, segundo De Plácido e Silva: “DIREITO CANÔNICO. Assim se designa o corpo ou coleção de leis que regem a Igreja Católica. [...]” (1995, p. 79). Teve seu apogeu entre os séculos IV e século XI, mas sua prática e os reflexos dessa doutrina ocorrem até hoje. Por óbvio, este ordenamento responde a determinados pressupostos ideológicos e culturais, no caso, os dogmas da religião católica. Seria até mesmo estranho buscar entender o direito vigente na igreja católica, sem considerar a fé e crença na veracidade de sua doutrina, pressupostos básicos para esta religião. Outro ponto importante e de destaque, é que a igreja católica partindo de um modelo idealista platônico, entende haver uma verdade, mas além disso, que está verdade é em qualquer tempo única e não pode ser fracionada, e por lógica, as leis e artigos (chamadas dentro deste texto de canons), são por conseguinte, verdadeiras e imutáveis, sendo claro que trata-se de um modelo jusnaturalista. “A lei natural é imutável e permanente através das variações da história; ela subsiste sob o fluxo das ideias e dos costumes e constitui a base para seu progresso” (CATECISMO 2017, p. 518). Sendo importante dizer que suas normas não seguem as mesmas, mesmo que sejam pautadas na “verdade”, se admite que normas podem estar erradas, visto que são fruto dos homens, logo, o direito canônico atual é fruto de um desenvolvimento que ocorre a diversos séculos.
A noção de História do Direito Canônico se exprime como ciência que, mediante a investigação, procura evidenciar a origem e o desenvolvimento das normas que constituem a legislação eclesiástica da Igreja Católica, podendo esse direito definir-se, com Arnaldo Bertola, como complexo das leis estabelecidas e aprovadas pela Igreja para o governo da sociedade eclesiástica e a disciplina das relações dos fieis entre si e com seus pastores. (LIMA, 2004, p. 19)
Ele tem como base os grandes doutores da igreja católica, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Antes de tudo, cabe destacar a influência aristotélica para toda a doutrina destes pensadores, bem como uma filosofia do direito jusnaturalista. A lei, para São Tomás, é além de só uma regra, mas também uma medida dos atos humanos. É um princípio que orienta o homem e a natureza. Cabe destacar que no pensamento tomista, somente é lei aquela ordenação que busque o bem comum, o que é diferente dos modernos, principalmente o pensamento posterior ao positivismo, para os quais bastaria a validade formal estatal para que uma lei seja assim considerada. Mas, em Tomás de Aquino, uma lei que não for voltada a assegurar o bem comum não é, portanto, uma lei. Definia a justiça como “um hábito pelo qual, com vontade constante e perpétua, atribuímos a cada um o que lhe pertence” (S. Th. IIª IIª q. LVIII, a. I).
Os decretos papais são uma forma fácil de compreender o enorme poder que detinha a igreja católica na época. Por conta disso, é claro que o conhecimento da época foi muito limitado e em forma circular, qual grande parte dos estudos eram oriundos da igreja, e estes por sua vez, legitimam as verdades da igreja. Além disso, é interessante ressaltar a relação de poder imposta por esta entidade paraestatal, que na época, estava acima do Estado. Acerca disso, disciplina Foucault (1999) que na genealogia da biopolítica localizamos o poder religioso, isto pois, a governamentalidade se concretiza pelos controles heterogêneos e inesperados, típicos à religião.
De certo, foram diversas as reformas de entendimentos desenvolvidos durante os séculos por este direito. Porém, o foco deste estudo é destacar a sua importância durante os principais momentos jurídicos da história do Brasil, que por ter sido colônia de Portugal e por conseguinte, carregando grande parte de sua cultura, acabará por se confundir em alguns momentos com os momentos marcantes da nação europeia.
2. A evolução dos conceitos de casamento e família
Segundo Vicente de Faria Coelho (1956, p. 15), a família "é um fato natural", ela é o "o primeiro agente socializador do ser humano" (DIAS, 2007, p. 28). Para Nietzsche no entanto, não há a necessidade de haver afeto mútuo, sendo na verdade, mais próspero o casamento que se pauta na utilidade “Um casamento no qual cada um quer alcançar um objetivo individual através do outro se conversa bem; por exemplo, quando a mulher quer se tornar famosa através do homem, e o homem quer se tornar amado através da mulher” (2005, p. 201), também, complementa com certa ironia aquele casamento constituído por amor (liebesheiratem) “Os matrimônios que são contraídos por amor tem o erro como pai e penúria como mãe” (2005, p. 200).
Temos também a compreensão de Durkheim (1977), qual a família é um corpo social ligado pela solidariedade e de forma sadia, primeiro, acerca da solidariedade, aqui tem sentido de que cada um possuiria um rol de atribuições, qual os membros dessa família podem ou não terem suas tarefas atribuídas em relação a seu sexo, no entanto, serão divididos em razão da idade e tarefas. Já acerca da expressão “sadia”, nos mostra que já nessa época se pensava na família como uma estrutura humana na qual predomina uma atmosfera harmônica entre os membros, qual cada um respeitar seus limites e em suas funções respeitarem às dos outros.
Sobre Weber, há uma sofisticada teoria acerca da família, incorporando muitos elementos econômicos e religiosos. A família possuiria uma forma básica, que seria o “comunismo doméstico”, um grupo de residência e consumo comum, "A comunidade doméstica em sua forma 'pura' significa econômica e pessoalmente solidariedade frente ao exterior e comunismo no consumo dos bens cotidianos" (Weber, 1996, p. 291). Outro tipo de seria o “clã”, uma forma que seleciona todos os relacionados pelo sangue, sendo caracterizada por ser uma unidade militar secreta, isto é, uma unidade de proteção, ou ainda, ser organizado como um clã totêmico, sendo regido por regras ritualísticas, separando os membros entre os que tomam ou não parte do grupo. “A família não é simplesmente uma agência para a socialização da criança” (Couto, 2002, p. 8). Ainda em Weber, a família seria baseada na relação sexual qual teve consentimento do clã, sendo o clã o responsável por permitir e reforçar os relacionamentos sexuais, ao passo que o casamento seria um relacionamento sexual estável.
O conceito de matrimônio só pode se definir em relação a outras comunidades, para além daquela constituída por pai, mãe e filhos. Como instituição social, o casamento nasce em todas as partes em primeiro lugar em virtude da contraposição aoutras relações sexuais que não se constituem como matrimoniais. Pois sua existência significa que não se tolera o nascimento de uma relação contra a vontade do clã.., e, sobretudo, que apenas os descendentes de uma certa comunidade sexual estável são acolhidos no círculo mais amplo, de unia associação política, econômica, religiosa ou de outra classe a qual pertence um dos pais ou ambos, em virtude de sua procedência. e recebem tratamento igual aos demais membros. (1996, p. 291)
Deste modo, a família para Weber é um conjunto de relações sexuais e econômicas, que serão reguladas por um poder político, essas regulamentações terão impactos na propriedade. Sendo uma forma bastante “fria” de se observar, sem incorporar elementos como o afeto ou propriamente qualquer tipo de vínculo socioafetivo.
Para a psicanálise freudiana, a concepção da família é muito fundada nas relações entre pais e filhos, sendo muito famoso o conceito de complexo de édipo. Em síntese a família seria fundada no questionamento de uma "onipotência patriarcal", na rivalidade do filho em relação a seu pai, e com o assassinato deste por seu filho. Enquanto para as mulheres, na emancipação da opressão paterna, junto ao sentimento de ciúmes de sua mãe para com seu pai (enquanto na infância). Sobre o filho, é importante mencionar a noção freudiana do sonho pelo incesto, qual pela culpa do filho pelo assassinato de seu pai e desejo por sua mãe, Freud batiza esse sentimento universal de Ödipus Komplese (1910). De outro modo, a esquizoanálise de Deleuze e Guattari, observa uma família pós-moderna, com a ausência de significados e presença de significantes, isto é, a família é vista sob a seguinte dinâmica, produção inventiva e possibilitadora de novos modos de vida para possibilitar e promover uma revolução que permite o deslocamento da subjetividade no dentro-fora familiar.
Agora, analisando sob a perspectiva jurídica, podemos atribuir o nascimento do conceito de família enquanto instituto regulado pelo direito, no direito romano, qual em síntese “era formada por um conjunto de pessoas e coisas que estavam submetidas a um chefe: o pater famílias. Esta sociedade primitiva era conhecida como a família patriarcal que reunia todos os seus membros em função do culto religioso, para fins políticos e econômicos. ” (NORONHA; PARRON, 2012 p. 3). Logo após, com a ascensão da religião cristã e por consequência da doutrina católica, esta passou a ser a religião oficial do império romano, com somente o casamento católico (in facie Ecclesiae) sendo conhecido como legal. Em suma, esse conceito perdurou no Brasil por muito tempo, somente no código de 1916 houve uma mudança de fato na compreensão de família. A partir daí, era sustentado um modelo qual família era somente a constituída por matrimônio, não sendo mais necessário que fosse um casamento religioso, mas ainda sim, só havia família com casamento, porém, ainda havia a configuração hierárquica, qual somente os pais possuíam poder enquanto somente os filhos possuíam dever. Ainda aqui, o homem era tido como o chefe da família, mesmo que pelo direito canônico com o casamento houvesse a fusão de dois corpos em um só, não funcionava assim na prática. Enquanto a mulher sequer poderia trabalhar, muito menos exercia atividades sobre seus bens. Aqui a principal função da família passava a ser preservar o patrimônio entre si, isto é, que este não fosse para alguém de fora, sendo os filhos mero instrumento para atingir essa finalidade. A figura do pater familias no direito romano, possuía um poder analogamente comparado com o poder estatal, havendo sujeição de todos os membros da família, a uma só soberania e jurisdição, a do pai, que era o juiz, júri e carrasco.
Modernamente, a família tem sentido e núcleo completamente diferente, o pátrio poder se tornou dever de afeição, possuindo agora uma relação jurídica ao estilo do neo-kantismo, isto é, uma relação de poder-dever. No Brasil prevalece a priorização do afeto em detrimento à formalidades, e tem se entendido na doutrina, que de fato isto deveria ocorrer, a desestatização da família. Por mais que autores mais pessimistas como Nietzsche (2012, p. 127), ainda argumentam que filhos se tratam de propriedade de seus pais.
Nenhuma mãe dúvida, no fundo de seu coração, que o filho que trouxe ao mundo seja de sua propriedade, nenhum pai precisa ter o direito de impor-lhe suas concepções e seus juízos de valor. Em outros tempos se considerava como um direito dos pais a disposição da vida ou da morte do recém-nascido (como exemplo poder-se-ia citar o caso dos antigos germanos) e o educador, a classe social, o sacerdote, o soberano. e ainda o pai, vêm em cada novo ser humano a oportunidade de se apropriar sem mais de um novo objeto
Não haver uma definição de fato sobre o que é família, mostra a complexidade e variabilidade do conceito, podemos entender então, de maneira abstrata, que família é a união de indivíduos que pode ser formada por laços sanguíneos, civis ou socioafetivos, sempre pautados na plena comunhão de vidas e pleno exercício da vida cívica.
O casamento por sua vez, se trata de uma convenção social, este era necessariamente o único meio legal para que o homem pudesse constituir uma família de maneira legal, ao menos em períodos recentes. O homem deseja obedecer à ordem da lei, mas não pode desobedecer à sua natureza. A pessoa que quisesse constituir legalmente uma família, no período do império brasileiro, deveria, necessariamente, ser católica e realizar o processo matrimonial seguindo o direito canônico. No entanto, o ser humano constitui família dentro da lei, se é possível, porém, fora da lei se for necessário. Segundo Fustel de Coulanges, “Sem dúvida, não foi a religião que criou a família, mas foi certamente a religião que lhe deu regras”(2006, p. 31). Dessa forma, as alterações sociais, modificam a concepção da família ao longo do tempo, como exemplo, a passagem da família poligâmica para a monogâmica.
Entretanto, com as transformações da sociedade, passaram a nascer tipos de união diferentes aos tradicionalmente instituídos, fazendo o direito vigente ficar desatualizado, mas com o desenvolvimento contínuo desse, chegamos à proteção das outras formas de organização familiar, com a constituição de 1988 consolidando a evolução do conceito.
Essa nova compreensão de família, é fruto do desenvolvimento constante de mais de 2 milênios. É de suma importância entender a história e evolução dos conceitos para que ao analisar o passado não voltemos a cometer os mesmos erros, e acabar por nos tornarmos reacionários. Assim, deve-se buscar uma família “sadia” pautada no afeto, com deveres e poderes para ambos, que se respeitem e tratem com igualdade. Sem que se busque novamente uma estatização da família, que como será demonstrado, o Estado possui viés religioso bem definido durante a história,e ainda é possível observar esse viés. A doutrina atual concorda com essa desestatização do afeto, e menor intervenção estatal possível, como demonstra Maria Berenice Dias (2007, p. 28) “de há muito deixou de ser uma célula do Estado, e é hoje encarada como uma célula da sociedade".
2.1. Direito de família no Brasil Colônia
Não se pode dizer exatamente qual o momento temporal que o Brasil começou a interessar Portugal, portanto, genericamente se atribui que a partir de 1500 ano cujo teve o seu “descobrimento”. Pode-se dizer que desde aí, a lei portuguesa passou a vigorar em território brasileiro, formando certa relação de causa e efeito, isto é, não é possível separar totalmente direito e moral, e de mesmo modo, pode-se dizer que em grande parte a moral do brasileiro foi formada por uma lei estrangeira, logo, não podemos separar tão facilmente algo que está presente desde a formação da cultura e direito brasileiro, e isto se dificulta ainda mais quando se trata de pressupostos metafísicos, tal como a religião.
É necessário ressaltar que Portugal era um país católico desde a fundação, e era clara a união entre Igreja e Estado, com somente em 1911 saindo uma lei que separava Estado e Religião. Por ser da natureza da igreja católica, ao notar o avanço do protestantismo na Europa, o Concílio de Trento passou a publicar diversos cânones, ao observar que a mesma podia estar perdendo seu poder hegemônico, logo, se publicam esses artigos visando reforçar a doutrina católica e o direito canônico em si. Assim, Portugal adotou em seu ordenamento os cânones promulgados pela igreja, e, por consequência, foram adotados na legislação brasileira, reforçando o casamento religioso como o único válido.
O casamento foi considerado exclusivamente como um sacramento, sendo aplicada a pena de excomunhão àqueles que o negassem. Esse cânone foi adotado em Portugal, pelo decreto de 12 de novembro de 1564 e pela lei de 8 de abril de 1569, e no Brasil, pelo Bispado da Bahia, criado em 28 de janeiro de 1550. Com isso, o casamento religioso foi incorporado nas instituições brasileiras desde o início de sua existência. (AZEVEDO, 2002, p. 122)
De mesmo modo, a principal forma de constituição familiar, o casamento, tinha o seu fazer monopolizado pelo poder da igreja, que por sua vez, era regulado pelo direito canônico. Portanto, o casamento inserido no Brasil, como demonstrado, era essencialmente religioso desde o momento da “descoberta” do território. A igreja Católica desempenhou papel crucial na colonização, tanto para legitimá-la quanto para propriamente exercê-la. Não se limitando ao aspecto jurídico, acabou influenciando diretamente as instituições políticas, mas também, que pela natureza do cristiano, difundiu e impôs a religião católica no Brasil através de seus missionários. O catolicismo tornou-se uma ferramenta de controle social e civilizatório, impondo normas sobre comportamento e organização familiar, que como dito antes, virou um ato necessariamente religioso, mas além disso, cumpriu um papel na educação, na saúde e no controle moral, fazendo e moldando a seu interesse diversas famílias da época, e obviamente, perpetuando seus valores nesta.
No Brasil, por exemplo, a religião católica foi utilizada para catequizar os índios, tarefa que ficou a cargo dos jesuítas como forma de imposição da língua, crenças e valores portugueses, fazendo com que os nativos cedessem às deliberações dos portugueses por meio do que chamavam de fé pelo medo’, pelo temor aos castigos de Deus em razão de sua desobediência. (ROTOLI; SILVA, 2020, p. 7)
Em síntese, quando consagrou o casamento como “sacramento indissolúvel”, a Igreja exercia controle direto sobre a família relativo a todas as questões legais, fator que era essencial para a estabilidade social da colônia, visto que é fundamental para a vida humana a constituição de família, bem como a proteção legal desta. O cristianismo permeia a cultura ocidental mas não é idêntica a ela. A religião está ativamente participando da legitimação da ordem social, mas também, está constantemente sendo influenciada pela sociedade. A noção de casamento pode ter tido suas regras ditadas pela religião, mas com certeza houve influência de aspecto fundamental da moral predominante, neste caso, a moral portuguesa.
Como último ponto, cabe a análise de que o predomínio jurídico anterior ao direito canônico era o direito romano, que influenciou em grande medida o direito da igreja católica. Entretanto, uma das diversas diferenças entre eles se encontra no instituto da separação ou dissolução de matrimônio. O direito romano considerava o casamento como dissolúvel quando acabasse o amor ou a afeição, desde que mútua, chamava-se de affectio maritalis. Ao passo que o direito canônico defendia a indissolubilidade do matrimônio, considerando-o uma união contratual que não podia ser dissolvida, ainda que não houvesse afeto entre os cônjuges
2.2 Ordenações Filipinas
As Ordenações Filipinas foram promulgadas em 1603 e representaram um dos principais conjuntos legislativos do período colonial, influenciando as estruturas jurídicas e sociais do Brasil até o advento da Constituição Imperial de 1824. D. João VI ao vir para o Brasil, logicamente quis trazer o ordenamento vigente em Portugal, assim, o Brasil passou a se tornar um prolongamento do Estado Português, e não somente mais uma de suas colônias. Após a independência, apesar da criação da nova Constituição, muitas disposições das Ordenações continuaram a ser aplicadas, especialmente no direito privado, até serem formalmente substituídas por legislações específicas. Isto causou certa irritação por parte da sociedade “(...) com o advento das Ordenações, houve sensível diminuição do prestígio eclesiástico. ” (WALD, 1995, p. 29), quer dizer, a parte não católica ficou completamente abandonada quanto às proteções que o Estado deveria dar ao seu casamento, isto somente por terem crenças divergentes às dominantes.
A aplicação das Ordenações consolidou uma tradição jurídica que associava direito, religião e moralidade, sendo fundamental para o desenvolvimento do direito português, e obviamente, a formação do direito brasileiro. Esse legado está presente em diversas práticas e conceitos que ainda ressoam, como o papel central da família e da moralidade pública. As Ordenações Filipinas, em seu Livro 3, Título LIX, determinavam que todos os contratos e convenções deviam ser firmados por escritura pública, sendo vedada a aceitação de prova testemunhal nos casos onde a lei exigisse tal formalidade. Exceção a esta regra aplicava-se aos contratos de casamento, regulados pelo direito canônico, sendo o casamento válido apenas o católico, não existindo, assim, o casamento civil “Desta forma, a família se desenvolveu no Brasil, fruto de uma mistura de raças e culturas, sob a tentativa de um controle intenso e repressor realizado pela igreja católica” (NORONHA; PARRON, 2012 p.5).
É fato que a centralidade do direito canônico no regime matrimonial se refletia não apenas na exigência do casamento católico como único válido, mas acabava por fluir na aplicação de normas morais e sociais, especialmente sobre o papel do homem e da mulher na família e na sociedade. Ademais, o regime matrimonial era o de comunhão parcial de bens, que assegurava a divisão de patrimônios adquiridos após o matrimônio, embora os direitos da mulher fossem limitados. Inclusive para casamentos clandestinos, desde que houvesse comprovação de convivência pública e duradoura como marido e mulher. Além disso, a legislação punia a bigamia com pena de degredo para a África, conforme disposto no Título XIX, §2, Livro 5, das referidas Ordenações. Pena que é atualmente vedada pelo ordenamento jurídico.
2.3. Brasil Império: constituições do arcebispo da Bahia e concílio de Trento
O Brasil deixou de ser colônia de Portugal, mas nem por isso deixou de adotar seu ordenamento. A Igreja Católica continuou a ter poder, mesmo que reduzido, e possuiu muita influência na Constituição de 1824, que positivou expressamente o catolicismo como religião oficial do Estado, fazendo que assim como Portugal, o Brasil fosse um Estado confessional. "A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas destinadas para esse fim, sem nenhuma forma exterior de templo." (Art. 5, CF/1824). Segundo Pimenta:
O nosso artigo constitucional começou por declarar que a religião católica apostólica romana é, e continuará a ser, a religião do Estado, pois que felizmente ela é a religião, senão de todos, pelo menos da quase totalidade dos brasileiros. Assim o seu culto não só interno, como externo, constitui um dos direitos fundamentais dos brasileiros; é a religião nacional, especialmente protegida; os que não a professam não podem ser deputados da nação (1958, p. 23)
D. Pedro I outorgou a Constituição Imperial, entretanto, esta não previu normas específicas sobre o direito das famílias, limitando-se a tratar da família imperial com garantias e privilégios políticos e financeiros. Um ponto de destaque é que durante o texto constitucional, não havia qualquer disposição em relação a questões familiares. Dessa forma, nada muda em relação ao matrimônio, pelo menos não no começo desse período, pois, as normas previstas nas Ordenações Filipinas continuaram a reger as relações familiares, visto que inexistia legislação sobre o tema na época. Era uma constituição imposta por um monarca português em território brasileiro, protegendo os interesses da família imperial portuguesa no Brasil, enquanto permanecia omissa quanto à proteção da entidade familiar. Além do direito matrimonial, o direito canônico e a moral cristã moldaram diversas normas do Código Penal e Civil, especialmente na regulamentação de crimes contra a família e os bons costumes. Por exemplo, mesmo no Código Penal do Império, os crimes como a bigamia e o adultério eram severamente punidos, refletindo o impacto direto da moral católica.
Em 1827, foi publicado o decreto que formalizou a aplicação das Constituições do Arcebispado da Bahia e novamente, o reforço feito pelo Concílio de Trento, tendo também sido positivado pelo decreto. Fizeram o matrimônio um processo bastante solene, determinava que os párocos deveriam acolher os noivos em suas respectivas paróquias, contanto que ao menos um dos cônjuges fosse paroquiano e que não houvesse qualquer impedimento matrimonial entre eles. Devendo fazer aqui a ressalva de que os impedimentos antes já eram muito influenciados pela moral cristã. Além disso, as normas incluíam que deveria ser feito antes da celebração, as denunciações canônicas prévias, que foram uma espécie de proclamação pública, visando verificar se existiam impedimentos para a união. Esse regulamento reforçava ainda mais a regulação do casamento por parte do do direito canônico e garantia que a instituição matrimonial continuasse alinhada aos preceitos da Igreja.
Outro ponto marcante ocorre em 1861, com a publicação da lei 1.144, que emergiu em decorrência do conflito de crenças predominante no país, levando a sociedade a exigir o reconhecimento dos matrimônios daqueles que não seguiam a fé católica, Arnoldo Wald (1995, p. 31) explica que a referida legislação "(...) conferiu efeitos civis aos casamentos religiosos celebrados por pessoas não católicas, desde que devidamente registrados". Para esse fim, foi instituído "o registro civil estatal, destinado a regulamentar a situação dos não católicos". A referida lei instituiu o denominado "casamento acatólico", sendo a união entre cristão não católicos. De todo modo, o casamento seria celebrado conforme o rito de cada seita. A nova lei ampliou a possibilidade de realização de casamentos, entretanto, cabe notar que ainda se restringe apenas às pessoas que são cristãs, visto que não se pode esquecer que o Brasil era aqui um Estado Confessional, logo, permanece a restrição às pessoas não cristãs.
Em 1863, aconteceu a promulgação do decreto n. 3.069, que permitia além do casamento tradicional católico, o casamento misto, um casamento que deveria ser celebrado sob os mesmos ritos, mas entre um católico e um cristão dissidente. O decreto estabelecia ainda que seria excluída como prova qualquer outro documento que não fosse a certidão emitida por ministros ou pastores religiosos, com somente estas sendo aceitas como prova do casamento. O decreto ainda mantinha os impedimentos matrimoniais estabelecidos pelo direito canônico, porém, ele concedeu às autoridades civis a competência para julgar a nulidade ou qualquer outra questão relacionada aos casamentos, como observa Bevilaqua (1976, p. 56), "a lei conferiu aos juízes seculares a competência para decidir sobre os impedimentos e nulidades matrimoniais".
E em 1890, com o Decreto n. 181, o casamento civil foi formalmente introduzido:
Art. 108. O casamento civil, único válido nos termos do art. 108 do Decreto n. 181 de janeiro último, deverá sempre preceder as cerimônias religiosas de qualquer culto com que desejem solenizá-lo os nubentes. O ministro de qualquer confissão que celebrar as cerimônias religiosas do casamento antes do ato civil, será punido com seis meses de prisão e multa correspondente à metade do tempo.
Outrossim, nota-se a queda da influência da igreja católica, ou seja, que seu poder começou a ser mitigado nas questões jurídicas lato sensu, mas especialmente nas questões relacionadas ao direito de família, com o Estado assumindo um papel mais relevante no reconhecimento dos matrimônios. Assim, por mais que as ordenações filipinas e o direito canônico tenham se mantido vigente durante o período imperial, pode se dizer que ao menos formalmente o Brasil colônia se libertou do ordenamento jurídico português. Porém, muito ainda irá demorar para poder ser falado em casamento civil.
2.4 Código de 1916 e Constituição federal
A chegada da constituição de 1988 foi um marco importantíssimo para o Brasil, foi ela a responsável por trazer diversos direitos relativos à dignidade da pessoa humana, mas mais do que isso, consagra-los como direitos invioláveis. Assim sendo, trouxe adaptações importantes relativas à igualdade de tratamento entre homens e mulheres, e se estendendo aos filhos independente de serem frutos do casamento ou de adoção, sendo esse um marco de destaque, a indiferenciação entre filhos de sangue e adotivos.
(...) pode-se concluir que a família, no antigo Código de 1916, era fundada sob o aspecto matrimonializado, patriarcal, hierarquizado, heteroparental, biológico, como função de produção e reprodução e caráter institucional; esse quadro reverteu-se com a Lex Fundamentallis de 1988, refletindo também no Código Civil de 2002, tornando-se pluralizada, democrática, igualitária substancialmente, hétero ou homoparental, biológica ou socioafetiva, com unidade socioafetiva e caráter instrumental (NORONHA; PARRON, 2012 p. 7)
Outrossim, é válido ressaltar que o direito canônico não permitia o divórcio, mesmo que não houvesse mais afeto, era um sacramento, sem possibilidade de dissolução. Segundo Padre Leonel Franca, O divórcio era sintoma da decadência e do egoísmo social (1955). Ocorreu de fato uma batalha para que pudesse ser instaurado no Brasil o divórcio (Câmara, 1952). A Emenda Constitucional 9 de 1977 instituiu o divórcio, porém, era dificil deste ocorrer, visto que somente era permitido após três anos da separação judicial, muito dessa dificuldade advinha da relação entre Igreja e política. Porém, em 1988 o dovrcio passa a ser instaurado plenamente, a constituição o consagra como o método por excelência para a dissolução do casamento. Ou seja, até 1988, por força do poder que detinha a Igreja Católica, não se pode incluir o divocio na ordem jurídica.