Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Considerações sobre o reexame necessário no processo civil brasileiro

Exibindo página 2 de 3
Agenda 06/05/2008 às 00:00

5. O OBJETO DO REEXAME NECESSÁRIO E AS SUAS HIPÓTESES DE CABIMENTO

Conforme já estudamos no item anterior, o vigente Código de Processo Civil prevê o reexame necessário no seu art. 475, cujo objeto primordial, como se extrai do próprio texto da lei, consiste no resguardo do interesse público, traduzido no máximo de certeza e justiça das sentenças em que haja sucumbência da Fazenda Pública. Assim, verificada tal situação, independentemente de haver provocação da parte interessada, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, sob pena de a sentença não produzir seus respectivos efeitos. Não o fazendo o juiz da causa, deverá o presidente do tribunal avocá-los.

Mesmo antes das inovações trazidas pela Lei nº 10.352/2001, não se cogitava de outro elemento ensejador da remessa necessária que não fosse o interesse público. Na antiga redação do art. 475 do CPC, a remessa necessária era obrigatória também em caso de sentença anulatória de casamento, matéria outrora reputada de elevado interesse público, merecendo também um grau mais elevado de atenção por parte do Estado. Todavia, mediante a Lei nº 10.352/2001, o legislador reformador entendeu que tal hipótese já não requer tanta proteção.

É preciso, porém, ressaltar que esse interesse público de que falamos sofre variações de acordo com o objeto da remessa necessária na hipótese considerada. Expliquemos: é que o instituto da remessa necessária não é exclusividade do CPC, tendo previsão também em diversos outros diplomas normativos, e em todos eles sempre em prol do interesse público, mas nem sempre esse interesse público se traduz na defesa da Fazenda Pública.

Com efeito, todas as situações de cabimento da remessa necessária previstas no nosso ordenamento jurídico seguem o mesmo procedimento, resumido no encaminhamento dos autos, pelo próprio juiz que proferir a sentença, ao órgão revisor para a devida reapreciação. Mas o objeto nem sempre é o mesmo, embora em todas as situações o fim último seja sempre o interesse público.

Veja-se que o interesse público efetivamente objetivado pela remessa necessária prevista no CPC, art. 475, de fato está centrado na defesa da Fazenda Pública. Noutro giro, no caso da remessa necessária em sede de Ação Popular, o interesse público protegido tem seus reflexos voltados para a verificação minuciosa do pedido popular e da causa de pedir popular, de modo a proporcionar um novo exame sobre a matéria, quando a sentença extinguir o processo por carência ou julgar improcedente o pedido popular.

Na ação de mandado de segurança, igualmente, o interesse público protegido com a remessa necessária não corresponde exatamente à defesa da Fazenda Pública, mas da Administração Pública. Enfim, existem diversas hipóteses em que o interesse público protegido na remessa necessária é distinto do interesse da Fazenda Pública, embora também seja interesse público.

5.1. O art. 475 do CPC após as alterações da Lei 10.352/01

As hipóteses originalmente dispostas no Código sofreram alterações pela Lei nº 10.352, de 26.12.2001. Foi então excluído o inciso I (que aplicava a remessa necessária às sentenças declaratórias de nulidade do casamento); reescrito o inciso II, que passaria a ser inciso I, nele sendo incluídas outras figuras da Fazenda Pública, substituindo-se a expressão "proferida contra a União, o Estado e o Município", por "proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as autarquias e fundações de direito público".

Vê-se que foram incluídas expressamente no contexto da norma as autarquias e fundações públicas, o que há muito já era admitido na prática forense, de modo que a inovação deu-se apenas para positivar a matéria, não se tratando, efetivamente, de alargamento das hipóteses de cabimento da remessa necessária, mesmo porque nunca fez sentido a exclusão desses dois entes, também de direito público, e que, igualmente à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, sempre gozaram de outros privilégios processuais, a exemplo do prazo em quádruplo para contestar e em dobro para recorrer, execução mediante precatório etc. Aliás, o que fez a lei a Lei nº 10.352/01 foi simplesmente trazer para o bojo do Código de Processo Civil um consenso da prática jurídica, que, inclusive, já havia sido positivado pela Lei nº 9.469/97 (art. 10º).

Nesse mesmo sentido, a expressa inclusão do Distrito Federal no rol dos beneficiários da remessa necessária, que se deu apenas para reparar a lacuna deixada pelo legislador de 1973, porquanto ninguém jamais duvidou de que ao Distrito Federal seria estendido o mesmo tratamento conferido aos demais entes federativos.

Com a referida Lei nº 10.352/01, o inciso III passou a ser inciso II, com modificação do texto. Antes constava:

III – que julgar improcedente a execução de dívida ativa da Fazenda Pública (art. 585, número VI).

Após a reforma vigora a seguinte redação:

II - que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública (art. 585, VI).

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Foi substituída a expressão "que julgar improcedente a execução" pela expressão "que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução". A alteração buscou apenas corrigir a imprecisão literal existente no texto anterior, que se referia impropriamente à "improcedência da execução". Para muitos, na execução não se deve falar em improcedência do pedido satisfativo, pois não há uma apreciação cognitiva propriamente. É possível sim, em certas situações, falar-se em improcedência dos embargos à execução, pois nestes é que há uma efetiva atividade cognitiva. O legislador lapidou a literalidade do comando legal para então adequá-lo à devida técnica.

O novo texto, ao falar dos embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública, repetiu a remissão ao art. 585, inciso VI, que trata dos títulos executivos extrajudiciais. Tal dispositivo, com a Lei nº 11.382/06, foi renomeado, deixando de ser inciso VI e passando a figurar como inciso VII do referido artigo, constando a seguinte redação:,

VII - a certidão de dívida ativa da Fazenda Pública da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, correspondente aos créditos inscritos na forma da lei;

Pois bem, a situação a que se refere o inciso II do art. 475 remete-nos à execução fiscal, regulada pela Lei nº 6.830/80, consistindo no processo de execução da dívida ativa da Fazenda Pública de qualquer das esferas da federação. Deve-se entender por dívida ativa, conforme dispõe o art. 2º da lei mencionada, toda aquela definida como tributária ou não-tributária na Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, com as alterações posteriores, ou seja, qualquer valor, cuja cobrança seja atribuída por lei à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios e às suas respectivas autarquias e fundações públicas. Em suma, é dívida ativa todo crédito devido à Fazenda Pública.

O referido inciso VII do art. 585 do CPC é quem define o título executivo apto a deflagrar a execução, que se inicia, obviamente, pela apresentação de uma petição inicial devidamente instruída com a Certidão de Dívida Ativa. Citado o devedor, este poderá opor embargos à execução, na forma do art. 16 da citada Lei de Execução Fiscal. Do julgamento destes, na forma do art. 475, inciso II, é que caberá a remessa necessária, caso a sentença acolha, total ou parcialmente, as alegações do executado embargante, ou seja, julgue contrariamente à Fazenda Pública.

Convém alertar que, para os fins do disposto do art. 475, inciso II, do CPC, a sentença que acolher a exceção de executividade (ou pré-executividade) interposta pelo devedor equivale à sentença de procedência dos embargos. Neste sentido, Costa Machado (2006, p. 677).

É oportuno ressaltar que, em se tratando de embargos do devedor opostos pela Fazenda Pública, mesmo sendo estes julgados improcedentes, não há o duplo grau obrigatório, porquanto, em tal hipótese certamente teríamos um caso de execução de título judicial, com a Fazenda Pública operando na qualidade de executada, e aí já restaria superada a fase cognitiva, quando, possivelmente teria se dado o uso da remessa necessária. Desse modo, a previsão de uma nova remessa necessária, diante da sucumbência da Fazenda Pública nos embargos do devedor, corresponderia à duplicação do instituto. Veja-se que a hipótese do art. 475, II, do CPC está restrita ao caso do art. 585, inciso VII, que trata de uma das espécie de título extrajudicial, cuja execução se procede sem que tenha havido uma fase cognitiva, como é curial nas execuções de títulos extrajudiciais.

A lei modificadora também transformou o parágrafo único em parágrafo 1º e incluiu os parágrafos 2º e 3º, cujos teores traduzem dois freios ao cabimento da remessa necessária. Assim, embora sucumbente a Fazenda Pública, não haverá reexame obrigatório sempre que a condenação, ou o direito controvertido, corresponder a valor certo não excedente a 60 (sessenta) salários mínimos, bem como no caso de procedência dos embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor, e também quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula do tribunal superior competente.

Na primeira hipótese, o legislador apenas seguiu a linha das chamadas "causas de pequeno valor", já adotada para definir a nova alçada do procedimento sumário, prevista no inciso I do art. 275 do CPC, visando, sobretudo, desafogar os tribunais, dispensando a remessa necessária quando a condenação ou o direito controvertido não superar 60 salários mínimos.

Já no caso do § 3º, o critério vislumbrado está relacionado com a plausibilidade do direito discutido, numa clara homenagem à jurisprudência do STF e dos Tribunais Superiores, evitando assim o retardamento da prestação jurisdicional. Nos moldes da norma anterior, não fazia qualquer sentido o duplo obrigatório quando a sentença, para condenar a Fazenda Pública, fundava-se em jurisprudência do STF ou em súmula do Tribunal Superior competente, uma vez que instância especial seria confirmada a sucumbência.

5.2. Outras hipóteses de remessa necessária

A remessa necessária não se limita às previsões dos incisos I e II do art. 475 do CPC. Diversas outras hipóteses são previstas no ordenamento jurídico, conforme demonstraremos a seguir.

O art. 2º, parágrafo único, da Lei 1.533/51 (Lei da Ação de Mandado de Segurança) também prevê a remessa necessária, assim dispondo:

Art. 12 - Da sentença, negando ou concedendo o mandado cabe apelação. (Redação dada pela Lei nº 6.014, de 1973)

Parágrafo único. A sentença, que conceder o mandado, fica sujeita ao duplo grau de jurisdição, podendo, entretanto, ser executada provisoriamente. (Redação dada pela Lei nº 6.071, de 1974).

Do mesmo modo, a Lei 4.717/65 (Lei da Ação Popular), cujo art. 19 prevê a remessa obrigatória quando a sentença concluir pela carência ou pela improcedência da ação:

Art. 19. A sentença que concluir pela carência ou pela improcedência da ação está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal; da que julgar a ação procedente caberá apelação, com efeito suspensivo. (Redação dada pela Lei nº 6.014, de 1973).

Na previsão do art. 19 da Lei da Ação Popular, a remessa necessária não busca propriamente a proteção da Fazenda Pública mas, sim, da sociedade, do interesse público. Sendo qualquer cidadão parte legítima para propor ação popular, que, em tese, busca proteger o interesse geral, a norma estabelece a revisão obrigatória de sentença que extinguir o feito por carência ou que julgar improcedente o pedido popular. Aqui fica bem clara a distinção entre interesse da Fazenda Pública e interesse público.

Também nas causas relativas à especificação da nacionalidade brasileira, nos termos do art. 4º, § 3º, da Lei nº 818/1949 (regula a aquisição, a perda e a reaquisição da nacionalidade, e a perda dos direitos políticos), com as alterações produzidas pela Lei nº 5.145/1966 e pela Lei nº 6.014/1973, in verbis:

Art. 4º - O filho de brasileiro, ou brasileira, nascido no estrangeiro e cujos pais ali não estejam a serviço do Brasil, poderá após a sua chegada ao País, para nele residir, requerer ao juízo competente do seu domicilio, fazendo-se constar deste e das respectivas certidões que o mesmo o valerá, como prova de nacionalidade brasileira, até quatro anos depois de atingida a maioridade. (Redação dada pela Lei nº 5.145, de 20/10/66).

§ 1º O requerimento será instruído com documentos comprobatórios da nacionalidade brasileira de um dos genitores do optante, na data de seu nascimento, e de seu domicilio do Brasil. (Incluído pela Lei nº 5.145, de 20/10/66);

§ 2º Ouvido o representante do Ministério Público Federal, no prazo de cinco dias, decidirá o juiz em igual prazo. (Incluído pela Lei nº 5.145, de 20/10/66);

§ 3º Esta decisão estará sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo Tribunal. (Redação dada pela Lei nº 6.014, de 27/12/73). Grifamos.

Na hipótese acima aventada, a subida dos autos em remessa necessária independerá de a sentença ser de procedência ou de improcedência. O intento da norma é, pois, reavaliar a matéria, buscando alcançar o máximo de certeza, objetivando a segurança jurídica e não exatamente a proteção da Fazenda Pública.

O Decreto-Lei nº 779/1969, que dispõe sobre a aplicação de normas processuais trabalhistas à União Federal, aos Estados, Municípios, Distrito Federal e Autarquias ou Fundações de direito público que não explorem atividade econômica, traz a previsão da remessa necessária, no seu art. 1º, inciso V, ao que chama de "recurso ordinário ex officio", tratando-o expressamente como um dos "privilégios" processuais da Fazenda Pública, como se vê:

Art. 1º Nos processos perante a Justiça do Trabalho, constituem privilégio da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das autarquias ou fundações de direito público federais, estaduais ou municipais que não explorem atividade econômica:

[...];

V - o recurso ordinário "ex officio" das decisões que lhe sejam total ou parcialmente contrárias;

[...].

A Lei nº 8.437, de 30.06.1992, que dispõe sobre a concessão de medidas cautelares contra atos do Poder Público, também prevê a incidência da remessa necessária, ainda nominando-a de "recurso ex officio", como fazia o Código de Processo Civil de 1939, conforme consta do seu art. 3º:

Art. 3° O recurso voluntário ou ex officio, interposto contra sentença em processo cautelar, proferida contra pessoa jurídica de direito público ou seus agentes, que importe em outorga ou adição de vencimentos ou de reclassificação funcional, terá efeito suspensivo.

Temos ainda a hipótese do Decreto-Lei nº 3.365/1941, conhecido doutrinariamente como "Lei Geral das Desapropriações", cujo art. 28, § 1º, também prevê a remessa necessária, assim dispondo:

Art. 28. Da sentença que fixar o preço da indenização caberá apelação com efeito simplesmente devolutivo, quando interposta pelo expropriado, e com ambos os efeitos, quando o for pelo expropriante.

§ 1 º A sentença que condenar a Fazenda Pública em quantia superior ao dobro da oferecida fica sujeita ao duplo grau de jurisdição. (Redação dada pela Lei nº 6.071, de 1974).

[...].

Alerta-se para o fato de que, em todas as hipóteses citadas, a remessa necessária tem como alvo o resguardo do interesse público, e não exatamente a proteção da Fazenda Pública.

À exceção da sentença que decreta a carência da ação popular, que extingue o processo sem resolução do mérito (art. 267 do CPC), em todas as demais hipóteses somente as sentenças de mérito estão sujeitas à remessa necessária. E mais, somente as sentenças, nunca os acórdãos. Veja-se que o caput do art. 475 menciona expressamente o termo "sentença", a indicar que se trata de decisão prolatada pelo juiz singular (CPC, art. 162, § 1º). Os acórdãos, decisões próprias dos colegiados, mesmo em se tratado de competência originária, não estão sujeitos ao reexame obrigatório.

Não se incluem, portanto, nas hipóteses de remessa necessária, com a exceção já mencionada, as decisões que extinguem o processo sem resolução do mérito (art. 267 do CPC), bem assim todas as demais decisões não definitivas, como é o caso dos provimentos liminares concedidos em ação de mandado de segurança, ação cautelar, ação popular, ação civil pública e até mesmo em sede de tutela antecipada. Todas essas decisões, sendo prolatadas contra o Poder Público, embora de caráter provisório, poderão, em regra, observadas as exceções legais, ser cumpridas de imediato, não se submetendo ao regime do duplo grau obrigatório de jurisdição.

Cabe ainda acrescentar que a exceção ou limite imposto à remessa necessária pelo CPC, no parágrafo 2º do seu art. 475, ou seja, na hipótese de condenação a valor certo não excedente a 60 (sessenta) salários mínimos, só se aplica às hipóteses de remessa necessária do próprio CPC (art. 475, incisos I e II). Nas hipóteses disciplinadas pelos demais diplomas legais, conforme acima demonstrado, não se cogita de tal limitação, porquanto configuram situações sui geniris, normalmente refletindo obrigações de fazer, não fazer ou dar coisa, fora do contexto econômico-financeiro próprio das condenações pecuniárias, nas quais, encontrando-se o poder público no pólo passivo da condenação, entra em cena a Fazenda Pública.

Enfim, o objeto da remessa necessária não se traduz exatamente na proteção à Fazenda Pública, mas na proteção do interesse público, do ordenamento jurídico, como forma de manifestação do princípio da segurança jurídica.

Sobre o autor
Clemilton da Silva Barros

Advogado da União. Mestre em Direito e Políticas Públicas. Especialista em Direito Processual Civil, em Direito do Trabalho e em Direito Processual do Trabalho, Professor da Universidade Estadual do Piauí. Autor jurídico e literário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, Clemilton Silva. Considerações sobre o reexame necessário no processo civil brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1770, 6 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11235. Acesso em: 18 nov. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!