1 – INTRODUÇÃO
A utilização de gravações de conversas por meio de interceptações telefônicas, de acordo com a Lei 9296/96, ou mesmo de gravações clandestinas, ambientais ou realizadas com a anuência dos interlocutores torna-se cada vez mais comum nos inquéritos policiais e nos processos penais.
Ocorre que o desenvolvimento tecnológico possibilita uma crescente facilitação do emprego dessa espécie de meio de prova e o legislador procura adaptar-se às inovações e novas perspectivas, ajustando-as à legalidade e à constitucionalidade de forma objetiva e proporcional.
Nesse passo, a Lei 9296/96, diploma legal mais próximo do tratamento desse meio de prova, determina a transcrição das gravações obtidas a fim de propiciar uma documentação formal do teor dos diálogos (artigo 6º., § 1º., da Lei 9296/96).
O questionamento que se faz neste trabalho refere-se à determinação da natureza jurídica da diligência de transcrição. Indaga-se se a transcrição é uma modalidade de prova pericial ou de prova documental.
Essa pergunta não é meramente teórica ou restrita ao aspecto terminológico. Apresenta conseqüências práticas importantes.
Quando se define a transcrição como "prova pericial", sua produção deve regrar-se de acordo como o Título VII (Da Prova), Capítulo II (Do exame de corpo de delito e das perícias em geral), artigos 158 a 184, CPP. E, acaso tais regras não sejam seguidas à risca, ensejar-se-á a ilicitude ou, no mínimo, a ilegitimidade da prova, o que a tornará nula e inadmissível no processo (artigo 5º., LVI, CF). De outra banda, com as mesmas conseqüências, acaso se a defina como "prova documental", deverão ser obedecidos os mandamentos do mesmo Título, mas agora referentes ao Capítulo IX (Dos documentos), artigos 231 a 238, CPP.
Têm sido comuns basicamente dois procedimentos quanto à transcrição das gravações:
a) O encaminhamento das fitas ou CDs com as gravações respectivas ao Instituto de Criminalística, requisitando-se a transcrição em laudo pericial;
b) A transcrição dos diálogos formalizada diretamente pela Autoridade Policial ou, mais comumente, por um policial por ela indicado, independentemente do concurso do Instituto de Criminalística para tal fim.
Resta bastante nítido que, no primeiro caso, procede-se tendo em mente a natureza de "prova pericial" da transcrição e no segundo sua natureza "documental". Ocorre que, se realmente a natureza jurídica da transcrição for de "prova documental", não haverá prejuízo algum em que seja levada a efeito por dois peritos oficiais ou mesmo nomeados. Nesse caso, estar-se-ia obrando com zelo e formalidades acima das exigidas legalmente e, como ensina o velho brocardo latino, "quod abundant non nocet". [01] Entretanto, se a verdadeira natureza jurídica da transcrição for de "prova pericial", no segundo caso estarão faltando relevantes formalidades, o que pode conduzir à ilegalidade probatória.
Percebe-se, então, muito claramente, a importância da determinação da natureza jurídica da transcrição, o que será levado a termo neste trabalho perscrutando os conceitos de "prova pericial" e "prova documental" e confrontando-os com a diligência de transcrição de acordo com sua dinâmica própria e as referências legais.
2 – CONCEITUANDO A PROVA PERICIAL
O Código de Processo Penal não conceitua prova pericial, de modo que tal incumbência acaba recaindo na doutrina.
Pesquisando os pronunciamentos acerca da conceituação de "prova pericial" ou de "perícia", verifica-se certa constância entre os autores em acenar com a caracterização dessa espécie de prova quando se faz necessário o concurso de "experts" dotados de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, a fim de realizarem exames e apresentarem conclusões e explanações que, naturalmente, não estariam ao alcance das pessoas leigas.
Dentre os clássicos, encontra-se Mittermaier asseverando:
"Tem lugar o exame de peritos sempre que se apresentarem na causa criminal questões importantes, cuja solução, para poder convencer o juiz, exija o exame de homens, que tenham conhecimentos e aptidão técnicos e especiais". [02]
E igualmente Malatesta, afirmando ser a perícia um testemunho especial, vez que se distingue do testemunho comum, "sobretudo porque, ao contrário deste, tem por objeto a percepção de coisas não perceptíveis, em geral, pelo homem". Por isso não pode ser realizada por qualquer pessoa, mas tão somente por aquelas especialmente habilitadas. [03]
Mais modernamente não diverge a orientação doutrinária.
Tourinho afirma textualmente que "entende-se por perícia o exame procedido por pessoa que tenha determinados conhecimentos técnicos, científicos, artísticos ou práticos acerca de fatos, condições pessoais ou mesmo circunstâncias relevantes para o desate da questão, a fim de comprová-los". [04]
No mesmo sentido manifesta-se Bonfim:
"Perícia é o exame realizado por pessoa que detenha ‘expertise’ sobre determinada área do conhecimento – o perito - , a fim de prestar esclarecimentos ao juízo acerca de determinado fato de difícil compreensão, auxiliando-o no julgamento da causa". [05]
E ainda chamando a atenção para a necessidade de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos para a caracterização da perícia, encontra-se o escólio de Oliveira:
"A prova pericial, antes de qualquer outra consideração, é uma prova técnica, na medida em que pretende certificar a existência de fatos cuja certeza, segundo a lei, somente seria possível a partir de conhecimentos específicos. Por isso, deverá ser produzida por pessoas devidamente habilitadas, sendo que o reconhecimento dessa habilitação é feito normalmente na própria lei, que cuida das profissões e atividades regulamentadas, fiscalizadas por órgãos regionais e nacionais". [06]
Portanto, sublinha a doutrina que a prova pericial é aquela necessariamente produzida por especialistas, eis que imprescindível a presença de conhecimentos técnicos para a realização de exames, exposição de resultados e, principalmente, para a análise conclusiva do apurado.
3 – CONCEITUANDO A PROVA DOCUMENTAL
O conceito de "prova documental" não apresenta grandes dificuldades, podendo ser deduzido da definição legal de "documento" ofertada pelo artigo 232, CPP:
"Consideram-se documentos quaisquer escritos, instrumentos ou papéis, públicos ou particulares".
Acosta traz à colação os ensinamentos de João Monteiro e de Florian. O primeiro afirma ser documento "qualquer escrito produzido em juízo pelas partes litigantes em apoio das suas pretensões". O segundo aduz que "documento é todo objeto que representa , em si, reunida e fixada, a manifestação, por parte de uma pessoa, de um pensamento, de uma vontade, ou a enunciação de um fato próprio, ou a narração de um acontecimento". [07]
Tourinho apresenta o conceito de Fenech, explicando que "documento é o objeto material em que se insere uma expressão de conteúdo intelectual por meio de um escrito ou de quaisquer outros sinais, imagens ou sons". [08]
Destaca o autor sob comento que o Código de Processo Penal Brasileiro adotou uma definição "estrita" de "documento", restringindo-os aos "escritos" (artigo 232, CPP). Não obstante, tal dicção legislativa não tem o condão de excluir do conceito de documento outras formas de manifestação e fixação material de fatos, idéias etc., tais como "os esquemas, as fotografias, os desenhos, as microfotografias, os vídeos etc.". [09]
4 – NATUREZA JURÍDICA DAS TRANSCRIÇÕES
Observando-se atentamente os conceitos de "perícia" e "documento" expostos nos itens anteriores, resta claro que a transcrição de gravações no processo penal aproxima-se muito mais da prova documental do que da prova pericial. Dessa forma, são legítimos os procedimentos nos quais as transcrições são levadas a efeito diretamente por policiais sem o concurso de peritos do Instituto de Criminalística.
É claro que também não é inválida a iniciativa adotada por alguns de valer-se dos peritos para o trabalho de transcrição, embora isso não seja imprescindível para a legalidade da prova.
Afinal, o trabalho de ouvir uma gravação e transcrever atentamente seu teor não requer conhecimentos especializados, podendo ser perfeitamente executado por qualquer pessoa dotada do sentido da audição e alfabetizada. E, como visto, a prova pericial caracteriza-se pela necessidade do concurso de pessoas dotadas de especiais conhecimentos.
A própria Lei 9296/96, em seu artigo 6º., § 1º., ao determinar a transcrição das gravações, não menciona tratar-se de exame pericial ou que deva ser realizada necessariamente por peritos ou "experts".
Na verdade trata-se de procedimento em que se "documentam" as gravações obtidas, consistindo na reprodução do que foi dito no telefone, para o papel. [10]
O que o legislador previu no dispositivo foi o revestimento do resultado da interceptação de forma documental, sendo fato que a própria "gravação, de per si, já constitui documento". [11] Como aduz Luiz Flávio Gomes, "a gravação é o resultado de uma operação técnica (captação da comunicação). Mais precisamente, é a documentação da fonte de prova. Fonte de prova é a comunicação. A gravação atesta a existência dessa fonte, mas não é, por si só, meio de prova. O meio de prova (documental) é a transcrição, porque é ela que ‘fixa a prova em juízo’". Tanto isso é verdadeiro, que esse não é o único meio de fixar a prova da gravação em juízo, o que pode também ser feito por via da "prova testemunhal". [12]
Note-se que, seja como "prova documental", seja como "prova testemunhal", a fixação das gravações em juízo prescinde de conhecimentos técnicos especializados, consistindo tão somente na documentação escrita ou narração oral daquilo que foi captado e ouvido durante as diligências, descaracterizando-se o requisito da especialização inerente ao conceito de "prova pericial". Como bem adverte Paiva, a prova "literal ou documental" nada mais é senão "uma asserção exprimida pelos caracteres visíveis e permanentes da linguagem", de modo que não passa da "prova oral exposta por outra forma e dirigida a outro sentido". [13]
Na atualidade deve-se ter sempre em mente um conceito amplo de documento, pois que a tecnologia inova continuamente, ampliando sobremaneira a casuística, apontando para uma necessária interpretação progressiva dessa noção.
O documento dever ser hoje entendido de forma bem mais abrangente do que a limitada dicção do artigo 232, CPP. Deve ser interpretado como "qualquer manifestação materializada, por meio de grafia, de símbolos, de desenhos, e, enfim, que seja uma forma ou expressão de linguagem ou de comunicação, em que seja possível a compreensão de seu conteúdo". [14] Se as bases de registro das idéias e da sua expressão já se limitaram à pedra lascada, ao papiro e, mais recentemente, ao papel, hodiernamente não se podem desprezar as bases magnéticas e informáticas em suas diversas conformações.
Vale transcrever a lição de Mirabete:
"Como já visto, em sentido estrito, documento (de doceo, ensinar, mostrar, indicar) é o escrito que condensa graficamente o pensamento de alguém, podendo provar um fato ou realização de algum ato dotado de significação ou relevância jurídica. Para Carlos J. Rubianes, como meio de prova no processo penal, é a coisa, papel ou outro material, sobre o qual o homem, mediante inscrição manuscrita ou qualquer forma semelhante, de expressão gráfica, expõe um pensamento, vontade ou sentimento, narra um fato vivido ou experiência, ou acontecimentos relativos a outras pessoas, ou se comunica com outros homens, ou registra atos ou fatos capazes de produzir efeitos jurídicos, ou lhe dá os mais diversos conteúdos, que podem ser reproduzidos pela linguagem escrita ou modalidade similar. Para o Código de Processo Penal, consideram-se documentos ‘quaisquer escritos, instrumentos ou papéis públicos ou particulares’ (art. 232). (...). Hoje, porém, a prova documental não se limita ao escrito em que há uma representação indireta daquilo que se quer provar, pois existem as provas fotográficas, fonográficas, cinematográficas e a feita por videograma, em que a representação é direta". [15]
Observe-se que mesmo o documento que retrata apenas indiretamente uma idéia, um sentimento, um fato etc., prescinde , normalmente, de conhecimentos especializados para sua constatação e interpretação. O documento já constitui, em si, a prova, prescindindo de perícia, a não ser que se questione sua autenticidade. Caso contrário, exprime-se sozinho, sem necessidade da intermediação de "experts", exames, laudos etc.
As gravações em bases magnéticas e informáticas são documentos modernos e exprimem-se por si mesmas de forma direta, independendo o Juiz e os demais sujeitos processuais da intermediação de peritos para tomarem contato com seu teor. Assim sendo, a transcrição não é perícia, mas diligência de produção de prova documental, que pode ser executada sim pelo Instituto de Criminalística, mas que pode, sem qualquer prejuízo, ser levada a efeito por policiais. O concurso de peritos somente será imprescindível para a realização de exames que demandem conhecimentos técnicos especializados, como por exemplo, casos de aferição de autenticidade das gravações, presença de cortes ou inclusões nos diálogos, montagens de conversas, análise espectográfica da voz, dentre outros.
5 – CONCLUSÃO
No decorrer deste trabalho, procurou-se deslindar a verdadeira natureza jurídica das transcrições de gravações utilizadas no processo penal.
Duas hipóteses foram aventadas, questionando tratar-se de modalidade de prova pericial ou documental.
Foram expostos os conceitos e principais caracteres da prova pericial e da prova documental, concluindo-se, ao final, que as transcrições são, em verdade, modalidade de prova documental, assim como as próprias gravações em si mesmas constituem documentos em sentido amplo.
Afastou-se a característica de prova pericial, considerando o fato de que essa modalidade está afeta à necessidade da detenção de conhecimentos especializados técnicos, científicos, artísticos ou práticos para sua produção. Ora, a interpretação e transcrição de gravações independe de qualquer especialização, podendo ser realizada por qualquer pessoa alfabetizada e dotada do sentido da audição. Ademais, a própria legislação que se refere à diligência de transcrição de gravações (Lei 9296/96, artigo 6º., § 1º.) não menciona a palavra "perícia" e nem ressalva que o ato deverá ser executado por "peritos".
Deve-se ter em consideração que, modernamente, somente um conceito amplo de documento pode satisfazer a vasta gama de possibilidades ensejadas pelo desenvolvimento tecnológico para a captação, armazenamento e registro das mais variadas informações de interesse probatório.
Frise-se, por derradeiro, que a transcrição feita por peritos é válida, pois reveste o ato de formalidades além das legalmente exigidas. No entanto, igualmente válidas são as transcrições realizadas diretamente por policiais em ato de documentação.
Também é importante ressaltar que as gravações (fitas, CDs etc.) poderão e deverão ser periciadas para aferição de autenticidade ou em outros casos que requeiram exames somente passíveis de execução por pessoas que detém conhecimentos técnicos especiais.
6 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ACOSTA, Walter P. O Processo Penal. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Do Autor, 1962.
BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2006.
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Interceptações Telefônicas. Lorena: Stiliano, 2000.
GOMES, Luiz Flávio, CERVINI, Raúl. Interceptação Telefônica. São Paulo: RT, 1997.
GRINOVER, Ada Pellegrini, FERNANDES, Antonio Scarance, GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. São Paulo: Malheiros, 1992.
MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. Trad. Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1996.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 18ª. ed. São Paulo: Atlas, 2006.
MITTERMAIER, C.J.A. Tratado da Prova em Matéria Criminal. 2ª. ed. Trad. Herbert Wützel Heinrich. Campinas: Bookseller, 1997.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 4ª. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
PAIVA, José da Cunha Navarro. Tratado Teórico e Prático das Provas no Processo Penal. Trad. Leandro Farina. Campinas: Minelli, 2004.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
NOTAS
01 "O que excede não prejudica".
02 MITTERMAIER, C. J. A. Tratado da Prova em Matéria Criminal. 2ª. ed. Trad. Herbert Wützel Heinrich. Campinas: Bookseller, 1997, p. 151.
03 MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. Trad. Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1996, p. 538 – 539.
04 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 520.
05 BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 307.
06 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 4ª. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 335.
07 ACOSTA, Walter P. O Processo Penal. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Do Autor, 1962, p. 247.
08 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit., p. 564 – 565.
09 Op. Cit., p. 565.
10 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Interceptações Telefônicas. Lorena: Stiliano, 2000, p. 161.
11 GRINOVER, Ada Pellegrini, FERNANDES, Antonio Scarance, GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 143.
12 GOMES, Luiz Flávio, CERVINI, Raúl. Interceptação Telefônica. São Paulo: RT, 1997, p. 222. No mesmo sentido: CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Op. Cit., p. 160.
13 PAIVA, José da Cunha Navarro. Tratado Teórico e Prático das Provas no Processo Penal. Trad. Leandro Farina. Campinas: Minelli, 2004, p. 287.
14 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Op. Cit., p. 341.
15 MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 18ª. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 312 – 313.