5 - O ARTIGO 1º. DA LEI 9455/97 EM FACE DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ESTRITA
Dúvida não há que o artigo 4º. da Lei 9455/97 logrou pôr cobro a toda a polêmica reinante acerca da tipificação de um crime de tortura pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, mediante a revogação expressa do artigo 233 desse diploma. Mas, daí a concluir que a Lei 9455/97 promoveu uma definição adequada da figura criminosa da tortura, há uma longa e possivelmente invencível distância.
Na realidade a deficiência na técnica do legislador ao redigir as tipificações do crime de tortura, acaba por simplesmente trocar uma perplexidade por outra. Se a tipificação de um crime de tortura era duvidosa com relação ao artigo 233 do ECA, esta continua sendo bastante vaga em face às novas disposições da Lei de Tortura.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, tal qual outras leis ordinárias (Código Penal, Lei dos Crimes Hediondos) e a própria Constituição Federal, apenas utilizava a palavra "tortura" em um dispositivo, sem proceder a uma descrição, qualquer que fosse, ainda que singela ou genérica daquilo em que consistiria. Ora, o que faz de novo a Lei 9455/97? Procede a uma descrição segura, taxativa, pormenorizada do que seja tortura, de modo a evitar que tal conceito fique ao sabor de subjetivismos, do senso comum ou de idiossincrasias?
À vista da dicção do artigo 1º. acima transcrito a resposta só pode ser negativa. Ele realmente vai um pouco adiante em relação ao tratamento anterior sob comentário, pois descreve objetiva e subjetivamente condutas consistentes em tortura, coisa que não existia antes porque a lei, como já foi dito, se limitava a mencionar a palavra tortura sem qualquer esforço conceitual. Não obstante, o avanço descritivo foi pífio. Os contornos que são ali traçados não passam de um esboço iniciado, que não chega a definir as formas do objeto que pretende representar, de maneira que pode comportar interpretações que em nada se adequariam ao que realmente se destina. Isso porque as linhas traçadas existem e nesse ponto são melhores que uma folha em branco, mas são ainda insuficientes para a devida definição do objeto com absoluta segurança.
É interessante notar que a Lei 9455/97 efetivamente descreve condutas que constituiriam tortura, não versando esta crítica sobre eventual impropriedade do conteúdo da norma, mas sim sobre sua insuficiência descritiva.
A título ilustrativo, veja-se três afirmações que são estritamente corretas: "A população nova-iorquina é superior a 2000 habitantes"; "As palavras filosofia e farmácia derivam ambas de palavras gregas que começam com a letra pi"; e "O homem é um bípede sem penas". Como foi dito, as três afirmações são absolutamente corretas, e, no entanto estão bem longe de precisarem algo, sendo, portanto errôneas em vários níveis apesar de sua correção. Pode-se dizer que nenhuma delas, embora verdadeira, consegue trazer à tona aquilo que tenta descrever. Será que de posse dessas afirmações corretas alguém pode ter formado uma idéia capaz de individualizar a população nova-iorquina, diferenciando-a de outras populações mundiais? Ou extrair um conceito de filosofia ou da arte farmacêutica? Ou, ainda pior, conhecer o homem em sua essência?43
Note-se que nas descrições típicas do artigo 1º. da Lei de Tortura pode-se encaixar uma infinidade de condutas, cuja configuração ou não de tortura não se dá pela inadequação à dicção legal, mas sim por uma análise meramente subjetiva, orientada pelo bom (ou mau) senso do intérprete. É claro que algumas condutas induvidosamente configuradoras da prática de tortura enquadram-se perfeitamente nas tipificações da lei, mas há certos atos que podem ser perpetrados e caberem muito bem nas definições legais, sem que justifiquem a qualificação de um crime de tortura.Exemplificando: submeter uma pessoa a uma sessão de "pau de arara" com choques elétricos para obter uma confissão, certamente teria abrigo na moldura do art. 1º., I, "a", da Lei 9455/97. Quem negaria que isso é uma forma de tortura? Há constrangimento, emprego de violência e sofrimento físico, bem como a satisfação do elemento subjetivo consistente no desejo do agente de obter uma confissão da vítima. Por outro lado, quando um Policial Militar desfere um tapa no rosto da vítima a fim de obter informação sobre seus dados qualificativos, os quais se negou a fornecer durante o registro de uma ocorrência. A conduta também apresenta adequação ao tipo penal, tanto quanto a primeira. Apresenta todos os elementos necessários: há o constrangimento, o emprego de violência, sofrimento físico (afinal de contas é somente nos versos da canção popular que "um tapinha não dói" (sic)) e até o elemento subjetivo de obter uma informação da vítima. Há adequação típica à figura do art. 1º., I, "a", da Lei 9455/97. Mas há mesmo o crime de tortura? Ou seria mais adequado o reconhecimento de um mero Abuso de Autoridade, previsto pela Lei 4898/65 em seus artigos 3º., "i" e 4º., "b"? Distinguir entre uma suposta adequação formal e outra material à lei não elide o fato de que a norma simplesmente não é capaz de individualizar ou determinar com segurança as condutas por ela abarcadas. Como já se disse alhures, a dicção da norma é correta, mas não possibilita ao intérprete um conhecimento seguro daquilo que pretende retratar.
A doutrina não deixou passar "in albis" as lacunas e atecnias da Lei 9455/97, especialmente no que tange à deficiente definição da conduta típica do crime de tortura.44 Efetivamente a descrição típica é muito genérica, criando o que se convencionou chamar de "tipo aberto", gerador de insegurança jurídica e infringente do Princípio da Legalidade (art. 5º., II e XXXIX, CF e art. 1º., CP).
Quando se afirma que a descrição genérica da Lei 9455/97 infringe o Princípio da Legalidade, tem-se em consideração o conceito de "Legalidade Estrita" defendido pelo Garantismo Jurídico-Penal, de acordo com a formulação de Luigi Ferrajoli.45 Isso porque poder-se-ia argumentar que a mera previsão legal, ainda que genérica, dependente de complementação pelo intérprete por processos os mais variados, poderia satisfazer o chamado Princípio da Legalidade, desde que visto sob um prisma amplo.
Realmente, o próprio Ferrajoli opera uma distinção entre o que denomina de "Princípio da Legalidade Ampla ou de mera legalidade" e o "Princípio da Legalidade Estrita ou Princípio de Estrita Legalidade". Para a satisfação do primeiro, não há necessidade de uma descrição semântica taxativa. Ao contrário, para obedecer ao "Princípio de estrita legalidade" é imprescindível a taxatividade descritiva das condutas incriminadas. Em suma, a mera legalidade determina que ao juiz é dado apenas reconhecer como delito àquilo que é predeterminado pelo legislador como tal. Já para a legalidade estrita, não basta que haja uma previsão do legislador para que o juiz possa reconhecer uma conduta como criminosa. Mister se faz que o legislador obedeça criteriosamente "uma regra metajurídica de formação da linguagem penal que para tal fim" lhe prescreve "o uso de termos de extensão determinada na definição das figuras delituosas, para que seja possível a sua aplicação na linguagem judicial como predicados ‘verdadeiros’ dos fatos processualmente comprovados".46 Pode-se dizer que enquanto à mera legalidade basta a "conformidade formal às leis dos atos de produção normativa", à legalidade estrita, além da conformidade formal, exige-se uma "conformidade substancial às leis dos significados ou conteúdos das normas produzidas". Em suma, não basta que o legislador produza leis de acordo com o processo legislativo, mas é imprescindível que ele produza leis claras, taxativas, com descrições objetivas.É essa característica de determinação segura do conteúdo da lei penal que lhe empresta validade sob o aspecto "substancial".47
Ferrajoli atribui essa submissão ao Princípio de estrita legalidade exclusivamente à lei penal. "Efetivamente, somente a lei penal, na medida em que incide na liberdade pessoal dos cidadãos, está obrigada a vincular a si mesma não somente as formas, senão também, por meio da verdade jurídica exigida às motivações judiciais, a substância ou os conteúdos dos atos que a ela se aplicam. Esta é a garantia estrutural que diferencia o Direito Penal no Estado ‘de direito’ do Direito Penal nos Estados simplesmente ‘legais’, nos quais o legislador é onipotente e, portanto, são válidas todas as leis vigentes, sem nenhum limite substancial à primazia da lei." Daí deflui um axioma proposto pelo autor: "nulla poena, nullum crimen sine lege valida".48
A lei penal só é válida no Estado de Direito quando obedece ao Princípio de Estrita Legalidade. Outra não poderia ser a conclusão, principalmente conhecendo o fato de que a teoria de Ferrajoli não se constitui de postulados estanques ou independentes, mas de uma "teia" de princípios que se complementam, integram e interrelacionam.49 Sem a legalidade estrita seria inviável a efetividade de um outro princípio que norteia a teoria garantista, qual seja, o "Princípio da Jurisdicionariedade Estrita", que consiste no entendimento de que também as manifestações judiciais e acusatórias devem ser fundamentadas de forma clara e taxativa, norteando-se necessariamente por leis que tenham essas características. Tanto na lei, como nas decisões judiciais e imputações deve-se evitar a "polissemia", o uso de termos imprecisos, vagos. "O uso de palavras equívocas e de juízo de valor na descrição dos fatos imputados e na realização das provas representa, melhor, uma técnica de esvaziamento das garantias penais e processuais por parte dos juízes, não menos difundida do que a adotada analogamente pelo legislador na formulação das leis. E pode produzir a dissolução total das garantias, quando a indeterminabilidade das denotações fáticas se combina com a das denotações jurídicas: como quando uma qualificação legal vaga e/ou valorativa e/ou concorrente com outras (...) é predicada de fatos ou situações expressos, por sua vez, por termos vagos e/ou valorativos, porque se referem a períodos ou condutas vitais, a contigüidades genéricas, a inclinações, a prognoses de periculosidade ou a outras valorações do próprio julgador".50
No campo penal a fim de satisfazer todas essas condições necessárias ao reconhecimento de um Estado de Direito, só há espaço para o Princípio da Estrita Legalidade. Olvidá-lo nessa seara, contentando-se com a mera legalidade, equivale à sua negação completa (do próprio "Princípio da Legalidade" em geral).
Há exemplos históricos desastrosos dessa negação absoluta acobertada por uma legalidade num sentido amplo.
Na Alemanha nazista, uma lei datada de 28.06.1935 revogou o antigo artigo 2º. do Código Penal de 1871, que abrigava o Princípio da Legalidade penal, instituindo a seguinte normativa: "será punido quem pratique um fato que a lei declare punível ou que seja merecedor de punição, segundo o conceito fundamental de uma lei penal e segundo o são sentimento do povo. Se, opondo-se ao fato, não houver qualquer lei penal de imediata aplicabilidade, o fato punir-se-á sobre a base daquela lei penal cujo conceito fundamental melhor se ajuste a ele". Outro exemplo pode ser encontrado no direito soviético nos anos seguintes à revolução. O Código da república russa de 1922 previu no art. 6º. que seria crime toda "ação ou omissão socialmente perigosa, que ameace as bases do ordenamento soviético e a ordem jurídica estabelecida pelo regime dos operários e camponeses para o período de transição em prol da realização do comunismo". Chegou ainda a prever, em seu artigo 10, a analogia "in malam partem": "em caso de ausência no Código Penal de normas específicas para cada um dos delitos, as penas ou medidas de defesa social se ajustarão aos artigos do Código Penal que contemplem delitos análogos por sua importância e qualidade".51
Não há como pretender que a mera legalidade satisfaça a face garantista que legitima o Direito Penal enquanto inibidor de reações descontroladas e imprevisíveis (públicas ou privadas) face às condutas desviantes.52
Embora respeitando o entendimento daqueles que consideram que a "porosidade do conceito de tortura" teria sido extinta com a edição da Lei 9455/9753, tal assertiva não parece corresponder à realidade. Na verdade, o tratamento da matéria não logrou uma definição satisfatória da conduta típica, deixando quase que na mesma situação anterior os operadores do direito e juristas. Mesmo com o advento da Lei 9455/97, ainda tateamos uma definição do crime de tortura, ficando sua construção a cargo da doutrina e jurisprudência, que, com o tempo, poderão vir a formar uma noção mais segura a respeito do tema, através da análise dos casos concretos.É verdade que ao menos agora nosso ordenamento está dotado de uma lei que pune a prática da tortura, não mais permanecendo uma garantia constitucional a descoberto ou alijada da proteção necessária do ordenamento jurídico penal.54 Mas isso não é o suficiente, pois a proteção fornecida é falha e sob dois aspectos extremamente relevantes e fatais:
Em primeiro lugar a tipificação fluida pode levar ao reconhecimento da inaplicabilidade da norma por infração ao Princípio da Legalidade, conforme acima mencionado ou, no mínimo, a uma aplicação abrandada devido a sérias dificuldades de caracterização da infração penal nos casos concretos, sempre com sérios prejuízos à sociedade e à dignidade das vítimas desses atos cruéis.55
Além disso, se for feita vista grossa à indefinição do tipo penal, deixando de lado princípios básicos do Direito Penal moderno e aplicando indiscriminadamente a legislação falhada como se nada houvesse de errado; todo o prejuízo seria creditado também à própria sociedade, à dignidade das pessoas, desta feita aquelas ocupantes do pólo passivo de um processo criminal originado de fontes que olvidam conquistas seculares.
Nada mais se poderia esperar, senão tal fracasso, de uma legislação, como tantas em nossa realidade, elaborada de forma açodada, motivada por episódios isolados e em meio a comoções públicas, conforme expõe João José Leal:
"A primeira observação crítica, que deve ser feita a essa norma repressiva, refere-se ao atropelo que, mais uma vez, marcou o processo de discussão e de votação de uma lei integrante desse subsistema punitivo marginal ao Código Penal. Embora existissem, há muito tempo, projetos em tramitação no Congresso Nacional, a verdade é que a Lei 9455/97 foi discutida sumariamente e votada de forma acelerada, sob o impacto emocional causado pelo episódio da Favela Naval, em Diadema, no qual policiais militares constrangeram, espancaram inúmeras pessoas, abusaram da autoridade e causaram a morte de uma delas, durante uma blitze policial. Amplamente noticiado pelos meios de comunicação de massa, o fato causou enorme repercussão em todo o país e acabou motivando os congressistas a agilizarem o processo legislativo que culminou com a aprovação dessa lei".56
Portanto, a questão maior subjacente a toda essa crítica quanto à insuficiência do conceito legal trazido à cena pela Lei de Tortura é aquela que diz respeito a uma "cultura" jurídica que é freqüentemente influenciada por uma tendência à elaboração de normas meramente simbólicas em resposta a motivações de fatos isolados, da pressão da mídia, da chamada "opinião pública", de interesses eleitoreiros etc, mas tendo em último lugar (quando é que existe) o verdadeiro interesse social pelo "bem comum", essa expressão tão "gasta" e banalizada. A grande pergunta a ser formulada é: quando vamos nos libertar de um "Direito Penal Simbólico" que apenas simula solucionar os mais diversos problemas, inclusive aqueles que não dizem respeito à seara criminal, e ingressar numa fase de seriedade não somente científico jurídica, mas também político-social?