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A função do resultado no delito culposo

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Agenda 26/05/2008 às 00:00

Resumo: O fato típico culposo é composto de uma conduta voluntária negligente, imperita ou imprudente, previsibilidade objetiva, inobservância do dever de cuidado, resultado involuntário, nexo causal e tipicidade. Estes são os elementos descritos e estudados pela doutrina majoritária, exceto no que tange ao resultado que ficou relegado ao exame de poucos juristas. Logo, este requisito, posto como imprescindível, ficou sem a correlata dedicação. Para a corrente dominante só existiriam infrações culposas de resultado naturalístico. Daí nasceu o presente ensaio que, pelo método "estado da questão", baseado em pesquisa bibliográfica, analisou o posicionamento científico através dos escólios de Nélson Hungria, Francisco de Assis Toledo, Heleno Cláudio Fragoso, Zaffaroni e Luiz Luisi, dentre outros. Escolas penais tão distintas foram trazidas para fazer frente ao argumento teórico adotado. Concluiu-se que o resultado naturalístico - porque o jurídico é encontrado em todos os delitos - exerce função política, garantidora, do tipo, integrando o mesmo. O que não impede a previsão de delito culposo formal e de mera conduta que carregam a função garantista na situação de perigo previsto na norma incriminadora. Encontram-se neste texto exemplos desses delitos tirados da legislação pátria. Para facilitar a leitura, optou-se por citações indiretas e, subsidiariamente, pelas citações diretas curtas.

Palavras-chave: Delito culposo; elementos da culpa; resultado culposo; espécies; função.

Sumário: Introdução; 1 Delito culposo; 1.1 Dever de cuidado; 1.2 Previsibilidade; 2 O resultado culposo; Considerações finais; Referências.


INTRODUÇÃO

O conhecimento dos elementos do delito culposo é insuficiente para compreender sua especificidade. É preciso questionar sua estrutura e buscar a finalidade desses requisitos criados pelo legislador e pela principiologia penal. Até porque, a norma jurídica, além de trazer preceitos e definir estruturas, deve arrimar por uma função 01, sob pena de incidirmos em regras sobrescritas, cujas redações desarrazoadas gerariam mera perissologia 02.

A pesquisa profunda do delito culposo 03 não despertou interesse dos glosadores até recentemente 04. Contudo, a matéria 05 tem ganhado destaque nas discussões científicas, inclusive, quando foi utilizada, em passado próximo, na construção do conceito básico da teoria da imputação objetiva 06 que extraiu da violação do cuidado o elemento para criar o risco juridicamente desaprovado e do nexo de antijuridicidade colheu a idéia de realização do risco 07.

Foi, portanto, dentro dessa linha de crescente interesse pelo estudo da culpa que este trabalho enveredou. Nele foram empregadas lições de renomados estudiosos - ainda que filiados a escolas diversas - para se obter uma ampla visão doutrinária e de suficiente cientificidade.

No decorrer do texto, receberam maior amplitude dois requisitos específicos desse delito, quais sejam, a previsibilidade do resultado e a quebra do dever de cuidado. Isto foi necessário para mencionar a imprescindibilidade ou não do resultado culposo e a influência que aqueles elementos neste exercem.


1. DELITO CULPOSO

As condutas humanas, positivas ou negativas 08, que se amoldam aos elementos previstos nos preceitos primários de normas penais incriminadoras recebem o nome de fato típico 09.

Por força do princípio da reserva legal 10, às vezes chamado de princípio da legalidade, esse comportamento humano deve encaixar-se perfeitamente ao fato descrito pelo legislador antes de sua ocorrência (princípio da anterioridade). Acaso isso se concretize, ensejará tipicidade 11. Ao revés, ausente os componentes contextualizados na lei, o fato será um indiferente penal e, portanto, atípico 12.

Para compor o fato típico é preciso, primeiramente, verificar se a conduta é dolosa ou culposa, uma vez que seus elementos são diversos. Antes de demonstrarmos isto, podemos expor, em termos gerais, que os elementos do fato típico são: conduta humana, resultado e nexo causal (ou relação de causalidade) – ambos exigidos 13 somente para a caracterização dos crimes materiais 14 - e, por fim, enquadramento ao modelo legal (tipicidade) 15.

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Tipos 16 são fórmulas legais que traçam as infrações. Já tipicidade é a característica que uma conduta tem de se amoldar a um tipo penal qualquer 17. Fato típico 18, por conseguinte, é o comportamento humano previsto pelo legislador como infração penal e que produz um resultado 19 (naturalístico ou não).

Presentes os quatro elementos poderá ser reconhecido o comportamento do agente como típico. Nada obstante, ainda é prematuro asseverar se houve ocorrência de uma infração penal (crime ou contravenção), uma vez que, ainda não foi perquirido seu elemento subjetivo 20 nem tampouco a ilicitude do comportamento. Isto se dá porque a teoria finalista da ação – juízo valorativo da conduta 21 - aloca dolo e culpa no comportamento.

Sob o aspecto analítico-formal 22, a caracterização do crime 23 é composta de fato típico e ilicitude 24, ou seja, a conduta, além de típica, deve ser contrária as normas jurídicas. Na exata prelação de Francisco de Assis Toledo 25: "Ilicitude é a relação de antagonismo que se estabelece entre uma conduta humana voluntária e o ordenamento jurídico, de modo a causar lesão ou expor a perigo de lesão um bem jurídico tutelado".

Tipicidade, nesse aspecto, é um indício de ilicitude 26. Se não for afastada esta última por nenhuma outra norma, ter-se-á por verificada uma infração penal.

Essa classificação, chamada de bipartida, preceitua que a culpabilidade não integra a figura da infração penal, pois representa o pressuposto 27 de aplicação da pena 28. Vale dizer que a culpabilidade tanto nos delitos dolosos 29 quanto nos culposos possui os mesmos elementos, a saber: imputabilidade, possibilidade de conhecimento da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa 30.

Todavia, seus elementos são diferentes no que tange ao fato típico de um e de outro.

Assim é que o fato típico doloso 31 é composto de uma conduta dolosa 32, resultado (nos crimes materiais), nexo causal (também exigido nos crimes materiais) e tipicidade. Já o fato típico culposo 33 é constituído de outros elementos, quais sejam: conduta 34 inicial voluntária 35, resultado involuntário 36, nexo causal 37, quebra do dever de cuidado 38 previsibilidade objetiva 39 e tipicidade.

É possível traçar suas disparidades da seguinte forma: conduta dolosa é a vontade e consciência de realizar os elementos constantes do tipo legal 40; conduta culposa é a imperita 41, negligente ou imprudente 42 que põe em risco ou lesa um bem jurídico, quer dizer, é a ação ou omissão que não corresponde ao comportamento diligente 43 e adequado na vida de relação 44.

Segundo Vincenzo Manzini 45: "O delito culposo é uma conduta voluntária, genérica ou especificamente contrária às leis que deriva como relação de causa e efeito um evento lesivo ou perigoso, previsto pela lei como delito, produzido involuntariamente".

Em outras palavras, essa espécie de delito ocorre pela quebra de um dever de atenção que Bettiol dizia: "determinar um erro vencível a respeito da licitude do fato praticado, vinculado pelo nexo causal de uma conduta voluntária que produz um evento lesivo 46 previsto ou não previsto desde que previsível e que de qualquer modo devia e podia ser evitado" 47.

A culpa 48 é um elemento psicológico-normativo 49, 50. Isto ocorre porque os tipos penais culposos, em sua maioria, são descritos sem definição pormenorizada do comportamento, caracterizando-se como tipos abertos 51 (quando o legislador diz ou dá a entender 52 que se a conduta for culposa haverá infração penal).

Todo tipo aberto deve ser fechado pelo juiz ao apreciar o caso concreto que recorrerá a uma disposição ou norma de caráter geral que se encontra fora do tipo. Assim deve ser feito em virtude da impossibilidade de reconhecimento imediato da infração sem o socorro de outra norma que indique qual era o cuidado devido na circunstância analisada 53.

Como o fato típico culposo pode envolver indeterminadas circunstâncias, o legislador, ciente disso, deixa sua análise a prudente exegese judicial. Se assim não o fizesse e rotulasse apenas condutas corriqueiras, transmutando-as em tipos fechados, o órgão legiferante deixaria impunes os comportamentos olvidados, tornando, estes, atípicos, por ausência de previsão legal.

1.1. DEVER DE CUIDADO

O tipo culposo proíbe uma conduta que é tão final como qualquer outra e assim o faz limitando o comportamento proibido pela violação de um dever de cuidado 54.

Essa violação se apresenta como o componente normativo do tipo objetivo culposo 55. Como diz Zaffaroni: "Não há um dever de cuidado geral, mas a cada conduta corresponde um dever de cuidado" 56.

Quando a doutrina menciona a expressão "elemento normativo", ela quer dizer que esse requisito não é demonstrável em abstrato pelo legislador, dada a impossibilidade 57 de fazê-lo. Por isso que o exame desse elemento está ligado ao caso concreto.

O tipo culposo não se circunscreve, especificamente, na finalidade da conduta, que é dirigida a um objetivo lícito, mas nas conseqüências ilícitas advindas de comportamentos imperitos, imprudentes e negligentes. Necessário, contudo, o destaque de Zaffaroni que observa: "Não é a falta de finalidade de obtenção de um resultado típico o que caracteriza a culpa, e sim que o tipo culposo prescinde totalmente da consideração do fim em si mesmo e apenas o toma em conta para a determinação do dever de cuidado que incumbia ao autor da conduta" 58.

Como preleciona Nélson Hungria: "Culpa é a inconsiderada omissão da diligência comum, de modo a fazer derivar de uma conduta voluntária uma involuntária conseqüência lesiva. Culpa é a imprevidência inescusável, tendo-se em vista o que geralmente acontece" 59.

É no modo que o agente seleciona mentalmente 60 os meios para atingir dada finalidade que se encontra o elemento decisivo para aferição desse delito. O objetivo do agente é permitido e amparado pela lei, porém, por escolher não empregar os deveres elencados pelo ordenamento para que atinja tal desiderato, o direito penal o reprovará, impondo seu caráter repressor 61.

Esclarece Heleno Cláudio Fragoso: "A inobservância do cuidado objetivo exigível conduz à antijuridicidade da ação, à semelhança do que ocorre quando, nos tipos fechados, a tipicidade é indício da antijuridicidade" 62. Não obstante, Zaffaroni se opõe a essa assertiva, pois para ele: "A análise de qual era o dever de cuidado que tinha a seu cargo o agente nada tem a ver com a antijuridicidade da conduta, ainda que, em nível de mero indício ou presunção, como no tipo doloso, em que a tipicidade é um indício ou presunção da antijuridicidade".

Essa construção teórica, formulada por Engisch, é ensinada por Claus Roxin da seguinte maneira: "A ação culposa é aquela realizada sem o cuidado devido, sem aquelas precauções que o homem prudente e consciencioso toma a cada passo de seu dia" 63.

Mostra-nos, assim, que a ilicitude do fato culposo reside no desvalor da ação que praticou o agente 64 e não especificamente no resultado produzido 65. Daí porque, para os finalistas 66, no delito culposo, o desvalor da ação prepondera sobre o desvalor do resultado 67, residindo aquele no modo de realização da conduta que desrespeita as exigências básicas de cuidado formuladas pelo cotidiano 68.

Por seu turno, temos que o princípio geral de direito trazido do direito romano 69 que dizia "não cause dano a outrem" 70 é perfeitamente aplicável ao delito culposo. Isto porque a vida em sociedade exige que seus integrantes atuem em observância aos preceitos regulamentares e costumes a fim de evitar lesões às demais pessoas 71.

Para tanto, são necessárias cautelas e observâncias destacadas tanto do ordenamento jurídico positivo quanto das regras socialmente aceitas. É dizer, se o agente não observa esses comandos e por isso causa ou expõe a dano bem jurídico alheio, incumbe ao Estado repreendê-lo, restabelecendo a paz social.

O contrário, retratado pela ausência de preceitos comportamentais, acarretaria o embargo da vida em comunidade.

Por isso o legislador procura regular as condutas sociais, impondo regras, visando evitar lesões ou exposição a elas. Contudo, é impossível regulamentar todas as possíveis violações de cuidados nas mais diversas atividades humanas, além do que, por vezes, a transgressão aparente de uma norma não significa 72 que o agente tenha agido sem observar a regra aplicável 73.

Essas quebras de cautela são aquelas que derivam da proibição de ações de risco que vão além daquilo que a comunidade organizada está disposta a tolerar 74.

Quando não for possível concluir com base nas regras jurídicas se, em determinado evento, foram observados os cuidados exigíveis, restará a verificação no âmbito do caso concreto, isto é, quais eram os cuidados impostos na circunstância em que ocorreu o fato. Deve-se comparar a conduta do agente com aquela que teria um homem razoável na mesma ocasião 75. Após verifica-se se o agente não acatou alguma regra, faltando com o dever de cuidado objetivo (a todos imposto) o que revelará uma possível conduta imprudente, negligente ou imperita.

A ilicitude se revela na desvalia que se faz da conduta demonstrada no caso concreto para a que teria outro ser humano prudente na mesma ocasião 76. Dessa desvaloração de comportamentos se extrai o dever de cuidado.

1.2. PREVISIBILIDADE

A possibilidade de conhecimento de que um dano ou exposição a ele possa nascer de dado comportamento, recebe o nome de previsibilidade 77, 78.

Previsível é o conhecimento do perigo que a conduta descuidada do sujeito pode criar aos bens jurídicos alheios e a possibilidade de antevê-lo conforme o conhecimento do agente 79.

Consoante Basileu Garcia: "O resultado não é previsto pelo agente 80 – aí está um esclarecimento próprio à generalidade dos casos e útil à compreensão da culpa. Era, contudo, previsível – eis uma essencial condição" 81. Na seqüência assenta: "O que faz com que o agente não preveja aquilo que é previsível é a sua negligência 82, a sua falta de cautela 83.

Para Nélson Hungria: "Existe previsibilidade quando o agente, nas circunstâncias em que se encontrou, podia, segundo a experiência geral, ter-se representado, como possíveis, as conseqüências lesivas do seu ato. Previsível é o fato cuja possível superveniência não escapa à perspicácia comum" 84.

O que se exige é uma previsibilidade comum, uma antevisão alcançável por qualquer ser humano normal 85. Ausente a previsibilidade, será afastada a culpa, pois não se exige da pessoa uma atenção extraordinária e fora do razoável 86.

Até porque se o agente desenvolve a atenção necessária, mas mesmo assim produz um evento lesivo, tal acontecimento não lhe poderá ser imputado diante da ausência de previsibilidade (elemento estruturante do delito) 87.

De maneira que, é a previsibilidade que une o psíquico do indivíduo e ao evento. Pelo resultado previsível responderá o agente. Fora dele, penetra-se nos domínios do fortuito, onde a responsabilidade penal perde sentido 88.

A previsibilidade objetiva consiste em apurar se o agente podia se comportar de modo distinto daquele que efetivamente realizou. Se podia e o fato era previsível, presentes os demais requisitos, houve infração. Já a previsibilidade pessoal (subjetiva) do agente, segundo suas características íntimas, condiciona a reprovabilidade da conduta, restando limitada ao exame da culpabilidade 89.

Sobre o autor
Leonardo D'Angelo Vargas Pereira

Advogado, especialista em Direito Administrativo (PUC-Camp), especialista em Direito Civil, Processual Civil, Penal e Processual Penal (UCDB).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Leonardo D'Angelo Vargas. A função do resultado no delito culposo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1790, 26 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11307. Acesso em: 17 nov. 2024.

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