O Decreto nº 69.348, de 7 de fevereiro de 2025, institui o Comitê de Assessoramento Estratégico para Políticas de Segurança Pública (CAESP) no Estado de São Paulo. O comitê foi criado como um órgão consultivo vinculado ao Gabinete do Governador, com a finalidade de assessorar a formulação e implementação de políticas públicas de segurança no estado. Conforme disposto no artigo 1º, o CAESP não possui caráter deliberativo, mas tem a atribuição de sugerir estratégias e medidas para aprimorar a atuação das forças de segurança e dos órgãos responsáveis pela gestão da ordem pública. A criação desse comitê se insere em um contexto de desafios na segurança pública paulista, caracterizado pelo aumento da criminalidade, pela alta letalidade policial e por pressões institucionais e sociais para a adoção de medidas mais coordenadas e eficazes no setor. Dessa forma, o decreto formaliza a existência de um espaço institucional para debates estratégicos, com o objetivo de promover maior integração entre os órgãos envolvidos na segurança pública estadual.
O artigo 2º do decreto estabelece a composição do CAESP, que inclui representantes de diversas instituições do sistema de justiça e da segurança pública. Entre seus membros estão o Secretário da Segurança Pública, o Comandante-Geral da Polícia Militar, o Delegado-Geral da Polícia Civil, além de representantes do Ministério Público, da Defensoria Pública, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, da Controladoria Geral do Estado e da Procuradoria Geral do Estado. O decreto prevê ainda a possibilidade de convidados externos, como especialistas acadêmicos, representantes de organizações da sociedade civil e membros do setor privado, que poderão ser chamados a participar das reuniões quando necessário. Essa composição indica uma tentativa de coordenação entre os órgãos responsáveis pela segurança pública e o sistema de justiça criminal, ainda que a maior parte dos integrantes pertença a instituições diretamente ligadas à repressão e ao controle da criminalidade. A presença de convidados externos é mencionada no decreto, mas não está prevista de maneira institucionalizada ou sistemática, o que pode limitar a pluralidade de perspectivas na formulação das diretrizes debatidas pelo comitê.
As atribuições do CAESP estão delineadas no artigo 3º e incluem o assessoramento ao Governador na formulação de políticas de segurança pública, a análise de dados sobre criminalidade, a sugestão de medidas para o aprimoramento da atuação policial e a recomendação de estratégias para a redução da violência no estado. O comitê também deve acompanhar a implementação das políticas públicas na área da segurança, promovendo articulações entre diferentes órgãos do poder público e sugerindo ajustes para melhorar a eficiência das ações adotadas. Além disso, cabe ao CAESP fomentar a adoção de práticas inovadoras e embasadas em evidências para a gestão da segurança pública. O decreto não especifica, no entanto, quais serão os métodos e critérios utilizados pelo comitê para avaliar a eficácia das medidas propostas, nem prevê mecanismos de transparência ou participação social no monitoramento de suas recomendações.
A proposta metodológica para a política criminal de Claus Roxin (2000) se baseia na necessidade de integrar princípios político-criminais à estrutura do sistema jurídico-penal. Roxin critica a dicotomia tradicional entre política criminal e dogmática penal, argumentando que o direito penal deve ser concebido como um instrumento de controle social que se orienta por fins político-criminais, mas sempre dentro dos limites do Estado de Direito. Ele defende um modelo que equilibre prevenção geral e especial, sem comprometer as garantias individuais. Essa perspectiva é essencial para analisar modelos como o CAESP, pois permite avaliar em que medida um decreto como o nº 69.348/2025 reforça ou mitiga o controle estatal sobre a política de segurança pública.
Na mesma esteira, Cândido da Agra (2024) destaca a interdependência entre criminologia, direito penal e política criminal, ressaltando que esses campos não devem ser tratados de maneira isolada, mas como partes de um sistema unificado que ele denomina ciência criminal. Segundo Agra, essa abordagem integrada é essencial para compreender as interações entre os fenômenos criminais, a normatividade jurídica e a formulação de políticas públicas. A ausência dessa perspectiva sistêmica pode reforçar uma visão fragmentada da segurança pública, centrada exclusivamente na repressão penal, sem considerar fatores estruturais que influenciam a dinâmica da criminalidade.
A política criminal deve ser compreendida como um campo de formulação estratégica do controle do crime, baseado em evidências empíricas e orientado por uma abordagem interdisciplinar. Diferente do direito penal, que estabelece normas e sanções, e da criminologia, que estuda o fenômeno criminal em suas múltiplas dimensões, a política criminal tem o papel de integrar esses conhecimentos para a construção de diretrizes estatais voltadas à segurança pública (Siena, 2024). Essa distinção é fundamental para avaliar se o comitê opera como um espaço técnico de assessoramento ou se sua atuação reforça uma política de segurança baseada predominantemente na repressão penal. A ausência de mecanismos que garantam a participação da sociedade civil e de especialistas em criminologia pode indicar uma limitação estrutural na formulação das diretrizes de segurança pública, restringindo-as à visão das forças de repressão. Para que o CAESP efetivamente contribua para uma política criminal democrática, seria necessário que ele incorporasse uma perspectiva que transcenda a lógica punitiva e considere fatores estruturais da criminalidade.
A estrutura do Comitê de Assessoramento Estratégico para Políticas de Segurança Pública (CAESP) pode ser analisada sob a ótica do modelo de política criminal desenvolvido por Mireille Delmas-Marty (2004), que classifica os sistemas de controle do crime a partir da centralização do poder estatal e da participação da sociedade civil. A composição e o funcionamento do CAESP evidenciam uma ênfase na expertise das forças de segurança e dos órgãos de justiça criminal, com participação limitada de setores sociais externos. A governança do comitê, centrada em representantes do Executivo, das forças policiais, do Ministério Público e do Judiciário, sem um mecanismo formal de consulta pública ou controle social, reforça a lógica de um modelo estatal centralizador. Segundo Delmas-Marty (2004), políticas criminais mais democráticas incorporam mecanismos institucionais de diálogo com a sociedade, garantindo que a formulação das estratégias de segurança pública contemple uma variedade de perspectivas e interesses, algo que não se observa na estrutura do CAESP.
A centralização das decisões e a ausência de um enfoque preventivo são características estruturais que, segundo Delmas-Marty (2004), aproximam o Estado de São Paulo do modelo de Estado Autoritário em matéria de política criminal. Esse modelo se caracteriza pelo predomínio da atuação repressiva do Estado e pela formulação de políticas de segurança pública com baixa participação da sociedade civil e limitada transparência nas decisões estratégicas. No CAESP, essa centralização pode ser observada na forte presença dos órgãos de repressão, como as polícias e o Ministério Público, e na ausência de um espaço institucionalizado para organizações de direitos humanos, centros de pesquisa e entidades comunitárias que possam oferecer diagnósticos alternativos à gestão da segurança pública. Delmas-Marty (2004) destaca que modelos mais democráticos de política criminal integram estratégias de prevenção social e promovem a descentralização das decisões sobre segurança pública, o que reduz a dependência de mecanismos puramente repressivos e possibilita um controle mais amplo da atuação estatal.
Embora o modelo adotado em São Paulo apresente um elevado grau de centralização e enfoque repressivo, ele ainda não atinge as características de um Estado Totalitário, pois mantém formalmente mecanismos constitucionais e garantias jurídicas que impedem a supressão total da participação social. No entanto, para que o CAESP se aproxime de um modelo mais democrático e pluralista, conforme sugerido por Delmas-Marty (2004), seria necessário implementar algumas mudanças estruturais. A inclusão sistemática e garantida de representantes da sociedade civil e de grupos vulneráveis poderia contribuir para um debate mais abrangente e menos centrado nos interesses das forças de repressão. Além disso, a incorporação de especialistas acadêmicos de diversas áreas, como criminologia, sociologia e direitos humanos, permitiria um olhar mais crítico sobre as práticas policiais e repressivas. O fortalecimento de políticas de prevenção ao crime, indo além da abordagem estritamente punitiva, e a criação de mecanismos de transparência e controle social, garantindo que a população tenha acesso às decisões do comitê e possa monitorar sua implementação, são mudanças fundamentais para que o CAESP avance na direção de um modelo mais democrático de política criminal e segurança pública.
Nilo Batista (2018) critica a adoção de políticas criminais que se baseiam em “ficções gastas” e carecem de evidências empíricas que atestem sua eficácia prática. Ele enfatiza a necessidade de uma abordagem crítica e fundamentada na elaboração de políticas de segurança pública, evitando a mera reprodução de modelos punitivistas tradicionais. As reflexões de Batista nos levam à importância de que as diretrizes formuladas pelo comitê sejam embasadas em dados concretos e em uma compreensão aprofundada das dinâmicas sociais que influenciam a criminalidade, promovendo assim uma política criminal embasada pelo saber criminológico.
Vera Malaguti Batista e Nilo Batista (2019) enfatizam que vivemos um tempo de regressão no campo da política criminal, caracterizado pelo avanço de políticas repressivas, pelo aumento da letalidade policial e pela consolidação de estratégias punitivistas que ignoram os direitos fundamentais. Segundo os autores, esse cenário reflete uma orientação política que naturaliza o uso da força como principal resposta à criminalidade, sem considerar a complexidade dos fenômenos sociais que a produzem. Essa lógica se insere em um movimento global de endurecimento penal e recrudescimento das estratégias de controle estatal, o que, no Brasil, se manifesta na militarização das forças de segurança, na expansão do encarceramento e na criminalização de setores sociais vulnerabilizados.
Em paralelo, Dieter (2015) analisa a emergência de um modelo de política criminal que se estrutura na lógica atuarial, baseada em cálculos estatísticos e na gestão de riscos para prever e neutralizar indivíduos considerados perigosos. Diferente das abordagens clássicas, que se fundamentam na retribuição ou na prevenção especial e geral, a política criminal atuarial desloca o foco para a incapacitação seletiva, priorizando a identificação de perfis de risco e a contenção de grupos sociais específicos, sem necessariamente considerar a culpabilidade individual ou o devido processo penal. Esse modelo opera por meio de um deslocamento da racionalidade penal, onde o crime deixa de ser visto como um ato individual a ser punido para ser tratado como um fenômeno a ser gerenciado estatisticamente, dentro de uma lógica de administração de populações e da contenção preventiva da periculosidade.
A partir dessa perspectiva, a política criminal atuarial se insere dentro de um contexto de gerencialismo penal, no qual o sistema de justiça criminal passa a ser orientado por estratégias de cálculo do risco, influenciadas pela economia neoliberal e pelo princípio da eficiência. Dieter (2015) argumenta que essa abordagem leva a uma progressiva desumanização da política criminal, pois a decisão sobre a punição não se dá mais pela análise individualizada do caso concreto, mas sim pela inserção do sujeito em um grupo estatisticamente identificado como de alta periculosidade. Esse fenômeno tem impacto direto sobre as políticas de segurança pública, pois desloca o foco da ressocialização para a segregação e o controle preventivo, reforçando um modelo de Estado que prioriza a neutralização de grupos vulneráveis e a manutenção da ordem social através do encarceramento massivo e do policiamento ostensivo.
Dentro dessa lógica, a criação de órgãos como o CAESP pode ser analisada como um reflexo da política criminal atuarial, na medida em que reforça uma abordagem gerencialista da segurança pública, focada no controle estatístico da criminalidade e na repressão preventiva. O CAESP, ao reunir exclusivamente agentes do Estado e excluir uma participação efetiva da sociedade civil, reforça a centralização das decisões de segurança pública em uma elite burocrática que opera segundo critérios de eficiência e cálculo de riscos, sem necessariamente incorporar um olhar crítico sobre os impactos sociais dessa abordagem. Como Dieter (2015) aponta, a política criminal atuarial não busca compreender as causas estruturais da criminalidade, mas apenas otimizar a gestão repressiva do crime, o que pode resultar na ampliação das desigualdades e na criminalização de determinados setores da população.
Diante da análise do Decreto nº 69.348/2025, verifica-se que a criação do Comitê de Assessoramento Estratégico para Políticas de Segurança Pública (CAESP) representa um avanço institucional na tentativa de coordenar a formulação de diretrizes para a segurança pública paulista. No entanto, sua estrutura organizacional e funcionamento demonstram uma ênfase excessiva na participação de órgãos repressivos do Estado, sem a devida incorporação de mecanismos formais de transparência e participação social. A ausência de uma representação sistemática de especialistas acadêmicos, organizações da sociedade civil e grupos vulnerabilizados limita a pluralidade de perspectivas no processo decisório, reforçando um modelo de governança centralizador e punitivista, alinhado a paradigmas de política criminal que historicamente negligenciam abordagens preventivas e estruturais.
Para que o CAESP possa efetivamente contribuir para a construção de uma política de segurança pública mais democrática e baseada em evidências, seria necessário aprimorar sua composição e metodologias de trabalho. A incorporação de critérios objetivos para avaliação de suas recomendações, mecanismos de consulta pública e garantia de participação institucionalizada de setores sociais diversos poderia ampliar sua legitimidade e efetividade. Além disso, uma abordagem menos centrada na gestão do crime sob a lógica atuarial e mais voltada à análise das causas estruturais da criminalidade permitiria que o comitê desempenhasse um papel estratégico na formulação de políticas que transcendam a repressão penal e promovam maior equilíbrio entre controle social, prevenção e garantia de direitos fundamentais.
Referências
AGRA, Cândido da. Criminologia, Direito Criminal e Política Criminal: Ciências Criminais ou Ciência Criminal? Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Macau, v. 47, p. 12-27, 2024. Disponível em: https://fll.um.edu.mo/wp-content/uploads/2024/03/47P_15_Candido-da-Agra_Criminologia-Direito-Criminal-e-Politica-criminal-Ciencias-criminais-ou-Ciencia-criminal_pg12.pdf. Acesso em: 11 fev. 2025.
BATISTA, Nilo. Capítulos de Política Criminal. Rio de Janeiro: Revan, 2018.
BATISTA, Vera Malaguti; BATISTA, Nilo. Política criminal, polícias e segurança dos direitos em tempos de regressão: entrevista especial. Revista de Políticas Públicas, v. 23, n. 1, p. 287-295, 2019. Disponível em: https://periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rppublica/article/view/11919/6661. Acesso em: 11 fev. 2025.
DELMAS-MARTY, Mireille. Os grandes sistemas de política criminal. Tradução de Denise Radanovic Vieira. São Paulo: Manole, 2004.
DIETER, Maurício Stegemann. Política Criminal Atuarial: A Criminologia do Fim da História. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2015.
ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
SIENA, David Pimentel Barbosa de. Criminologia. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024.