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Os direitos sociais na Constituição Federal de 1988.

Em busca de um modelo dogmático de tutela judicial dos direitos fundamentais de segunda dimensão

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Agenda 29/05/2008 às 00:00

Deficiências nos serviços de saúde pública, carência de vagas na rede escolar pública, déficit de moradias, crise na previdência, índice recorde de desemprego, eis a triste realidade do Estado Brasileiro.

Sumário:1. Introdução; 2. A justiciabilidade dos direitos sociais; 2.1 Pós-positivismo e a Nova Hermenêutica Constitucional, 2.1.1 A decadência do positivismo jurídico e o retorno da moral ao Direito, 2.1.2 Regras e princípios como categorias de normas jurídicas, 2.1.3 Ascensão dos princípios: pós-positivismo ou retorno ao jusnaturalismo?, 2.2 A teoria dos direitos fundamentais, 2.2.1 A classificação dogmática, 2.2.2 Críticas à classificação dogmática, 2.2.3 Caracteres dos direitos fundamentais, 2.2.3.1 A aplicabilidade imediata, 2.2.3.2 A vinculação dos poderes públicos e a proibição do retrocesso social, 2.3 Doutrinas de resistência à justiciabilidade dos direitos sociais, 2.3.1 O caráter programático das normas definidoras de direitos sociais, 2.3.2 A discricionariedade administrativa, 2.3.3 O princípio da separação dos poderes, 2.4 A reserva do possível e o mínimo existencial como cânone hermenêutico da justiciabilidade dos direitos sociais; 3. Conclusão.


1. INTRODUÇÃO

Gravíssimas deficiências nos serviços de saúde pública, carência de vagas nos ensinos fundamental e médio na rede escolar pública, déficit gritante de moradias, crise e reformas no sistema previdenciário, índice recorde de desemprego, eis a triste realidade do Estado Brasileiro. De outro lado, expressa previsão constitucional dos direitos à saúde, educação, moradia, trabalho, lazer, segurança, proteção à infância e aos idosos e elevação ao status de direitos fundamentais, a realidade normativa brasileira.

Mais de dezesseis anos da promulgação da Constituição Federal de 1988 se passaram e a tensão entre a realidade fática e o texto constitucional agrava-se progressivamente. Em face da inércia dos Poderes Executivo e Legislativo em concretizarem os mandamentos constitucionais, estaria o Poder Judiciário legitimado a implementar direitos sociais? Se legitimado, poderá fazê-lo indiscriminadamente ou há limites a serem observados?

A resposta a tais perguntas consiste no tema que tem centralizado os debates da teoria constitucional e que é objeto do presente trabalho: a justiciabilidade dos direitos sociais.

Sem qualquer intento inovador, o presente estudo objetiva a organização e sistematização das principais questões que envolvem a tutela judicial dos direitos econômicos, sociais e culturais, com ênfase nas principais construções doutrinárias e, sempre que conveniente, acompanhadas de decisões judiciais.

Investiga-se a justiciabilidade dos direitos fundamentais de dimensão social, colhendo as contribuições da Nova Hermenêutica Constitucional e da Teoria dos Direitos Fundamentais, apreciando as doutrinas de resistência até alcançar-se modelo de exigibilidade judicial dos direitos prestacionais com base no padrão do mínimo existencial.


2 A JUSTICIABILIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS

Tema que se tornou o centro gravitacional dos estudos e debates acerca dos direitos fundamentais – e não seria demasiado dizer também do próprio Direito Constitucional -, a análise da justiciabilidade dos direitos sociais é na mesma medida apaixonante e embaraçosa.

Apaixonante porque se relaciona diretamente com a possibilidade de saneamento dos mais graves problemas do mundo contemporâneo, como a fome, a miséria, a educação, a saúde e a habitação e faz o operador do Direito flertar com a filosofia, a sociologia, a história e outros ramos do conhecimento que muitas vezes são esquecidos pela prática jurídica e pelas Universidades.

De outra banda, é embaraçosa porque coloca barreiras quase que intransponíveis ao operador jurídico seduzido pela possibilidade de resolução dos problemas mais graves da humanidade através dos direitos sociais, como a limitação dos recursos, as doutrinas que buscam o esvaziamento do conteúdo dessa classe de direitos e que possuem numerosos simpatizantes no Poder Judiciário e nas Universidades, além das dificuldades dogmáticas. [01] Tais obstáculos na prática forense tendem a desestimular os militantes da causa e a provocar indignação no restante da sociedade, mas não devem afastar a comunidade jurídica da luta pela efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais, mormente em um país que apresenta problemas na prestação dos serviços públicos essenciais como o Brasil.

A abordagem inicia pela Nova Hermenêutica Constitucional instituída pelas Constituições do período pós-guerra que passaram a incorporar em seu texto valores de justiça material expressados através de princípios e exigiram a elaboração de nova metodologia pela Ciência Jurídica. A travessia prossegue examinando os subsídios oferecidos pela Teoria dos Direitos Fundamentais, passando pelas doutrinas de resistência à justiciabilidade dos direitos sociais e culmina com a apreciação da teoria do mínimo existencial.

2.1 PÓS-POSITIVISMO E A NOVA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL

O positivismo jurídico – ideologia que mesmo após os trágicos acontecimento do século passado ainda arregimenta em seus quadros grande parcela dos operadores jurídicos – que teve seu cerne no pensamento de Thomas Hobbes que, na época, revoltara-se contra o excesso de subjetivismo do jusnaturalismo [02], foi incorporado ao mundo jurídico através das codificações do século XIX e da elevada influência pela Escola Pandectista, atingindo seu ápice até as duas Grandes Guerras Mundiais do século XX.

Entretanto, as Guerras Mundiais não causaram espanto e perplexidade apenas na população em geral, na filosofia e nos meios de comunicação, vez que a Ciência Jurídica passou a questionar os postulados básicos do positivismo jurídico, como se era possível a redução da justiça ao texto da lei? Se ainda era viável a separação de Direito e Moral em dois compartimentos incomunicáveis?

A resposta a tais questões encontra-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, onde há evidente conciliação entre o Direito e a Moral através da previsão expressa em documento com eficácia normativa de valores de justiça material. Os efeitos que tal fato provocou sobre as Constituições promulgadas após 1948 e sobre o pensamento jurídico em geral serão retratados a seguir.

2.1.1 A decadência do positivismo jurídico e o retorno da moral ao direito

A ideologia positivista em momento algum se preocupou com o conteúdo das leis promulgadas ou outorgadas, desde que o fossem pelo Estado e obedecessem às regras de competência e de procedimento (regras secundárias na teoria de Hart). Assim, pouco importava o que a lei estabelecesse, pois se editada pelo Estado e observadas as regras procedimentais ela era válida e produzia todos os efeitos ainda que pudesse ser considerada injusta, pois justiça era um conceito amplo e subjetivo demais que havia sido expurgado do Direito.

Hans Kelsen, talvez o maior expoente do Positivismo Jurídico, em sua teoria normativa expôs de forma singular a separação de Direito e Justiça ao salientar que a última deveria ser objeto de estudo por parte da Ética e não da Ciência Jurídica.

Um Direito positivo pode ser justo ou injusto, ou seja, um Direito positivo sempre pode contrariar algum mandamento de justiça, e nem por isso deixa de ser válido. O Direito não precisa respeitar um mínimo moral para ser definido e aceito como tal, pois a natureza do Direito, para ser garantido em sua construção, não requer nada além do valor jurídico. Mais uma vez, deve-se afirmar que o que foi posto pelo legislador é norma jurídica, se consignado internamente no ordenamento jurídico dentro dos moldes procedimentais e hierárquicos suficientes para tanto. [03]

Sucede que a ausência de questionamento do conteúdo das leis elaboradas preconizada pelo Positivismo Jurídico, somadas à erosão dos alicerces éticos e morais, além de questões político econômicas foram os fatores responsáveis pela criação dos Estados Totalitários e das maiores catástrofes da civilização humana. [04] Ao final da Segunda Guerra Mundial restou claro que um modelo de Direito indiferente a valores éticos e morais não era mais possível e tampouco desejável, ao ponto de estampar-se expressamente na Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 diversos valores de justiça material, rompendo o dogma positivista da separação de Direito, Moral e Justiça.

Na esteira da Declaração de Direitos de 1948, conforme exposto alhures, as Constituições passaram a incorporar em seu texto valores morais diretamente relacionados à idéia de justiça material. No Brasil, a Carta Magna de 1988 é fortíssima nesse sentido, mencionando-se a título ilustrativo a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), erradicação da pobreza e marginalização e redução das desigualdades sociais (art. 3º, III), proibição de discriminação (arts. 3º, IV; 5º, caput e VIII), função social da propriedade (art. 5º, XXIII e 186), dentre outros. [05]

Com isso esfacelou-se o intento do Positivismo Jurídico de apartar definitivamente o Direito da Moral, vez que ainda que o retorno desta aos textos legais e à prática forense traga maior carga de subjetividade ao primeiro, é uma exigência de justiça que, afinal de contas, é o fim último de qualquer sistema jurídico.

2.1.2 Regras e princípios como categorias de normas jurídicas

A incorporação de valores morais e de justiça aos ordenamentos jurídicos trouxe conseqüências também ao campo da dogmática jurídica, uma vez que a teoria positivista das normas e da sua aplicabilidade mostrou-se inadequada ao "novo" modelo de norma jurídica criado pelo retorno da moral ao Direito. Isso porque os valores foram inseridos nos textos legais sob a forma de princípios, que possuem características diversas das regras e exigiram a elaboração de nova metodologia que tem sido denominada de "Nova Hermenêutica Constitucional".

A descoberta científica dessa nova espécie de norma jurídica, doravante denominada de princípio, deve-se ao jusfilósofo norte-americano Ronald Dworkin ao publicar em 1967 o artigo entitulado "The model of rules". Neste ensaio, Dworkin lançou um ataque geral ao positivismo jurídico a partir das lacunas do Direito verificadas especialmente nos casos difíceis, tomando a teoria de Hart como base para a crítica. [06]

O Professor de Oxford destacou que no Positivismo Jurídico, a solução dos hard cases em que não há regra que se enquadre na premissa menor- o que para o ideário positivista significa uma lacuna no ordenamento jurídico – deve ser encontrada pela autoridade pública (juiz) através do seu discernimento pessoal, ocasião em que deve ir além do Direito para resolver o caso. [07]

Todavia, Dworkin, a partir de alguns precedentes da jurisprudência norte-americana, demonstrou que a solução em tais casos passa pela aplicação dos princípios, espécies do gênero norma jurídica assim como as regras. [08] Pontuou que os princípios são padrões que devem ser observados porque são "uma exigência de justiça ou eqüidade ou alguma outra dimensão da moralidade" [09] e diferentemente das regras, encontram-se em uma dimensão de peso ou importância exigindo a ponderação. [10]

As regras são aplicadas ao modo tudo-ou-nada (all or nothing fashion), ou seja, se é possível subsumir o fato concreto (premissa menor) à regra (premissa maior), então ela é válida e deve ser aplicada. Agora se ocorrer hipótese em que há conflito entre duas regras, necessariamente uma delas deverá ser declarada inválida e a outra aplicada. De outra banda, tal conclusão não pode ser aplicada aos princípios jurídicos, uma vez que esta categoria de normas encontra-se na dimensão de peso ou importância e verificada a colisão entre dois ou mais princípios, deve-se proceder à ponderação definindo qual, no caso concreto, deve prevalecer – o que não acarreta a invalidação do princípio preterido, apenas que naquele caso prevalece o outro.

Desenvolvendo a teoria de Dworkin, o jusfilósofo alemão Robert Alexy acentuou que os princípios são mandados de otimização, ou seja, que devem ser realizados na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. [11] Na distinção entre as duas espécies de normas jurídicas foi além do critério qualitativo ao propor uma diferenciação prima facie, em que os princípios conteriam mandados preliminares, enquanto que as regras indicariam mandados definitivos. [12]

Essa dicotomização das normas jurídicas em regras e princípios [13] e a nova metodologia exigida pela segunda espécie foi acolhida pelos Tribunais pátrios, como observa-se no julgamento do HC nº 82.424-2 pelo pleno do Supremo Tribunal Federal [14], onde estava em discussão a prática de crime de racismo pelo paciente ao publicar obras com conteúdo anti-semita. No caso, a colisão da liberdade de imprensa (art.5º, IX, da Constituição Federal) e dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade levaram os Ministros, a partir da técnica de ponderação de bens, a decidirem que, no caso concreto, deveriam prevalecer os últimos, conforme resta evidenciado no trecho da ementa transcrito abaixo:

[...] As liberdades públicas não são incondicionadas por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, §2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação de racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica.

2.1.3 Ascensão dos princípios: pós-positivismo ou retorno ao jusnaturalismo?

A Constituição Federal de 1988 e a legislação promulgada após a vigência desta tem inserido em seus textos número significativo de princípios, o que ensejou uma mudança de paradigmas pela "Nova Hermenêutica Constitucional". Esse fenômeno provocado pela ascensão dos princípios e ruptura com o Positivismo Jurídico foi classificado por Luís Roberto Barroso como Pós-positivismo, que seria uma superação do legalismo a partir da reinserção de valores morais ao ordenamento jurídico através dos princípios. [15]

O retorno da ética e da moral às discussões jurídicas tem levado alguns a afirmar que a forma de argumentação nos casos que envolvem princípios constitucionais aproxima-se muito do modo de argumentar do jusnaturalismo, bem como que os princípios do Direito Natural foram incorporados pelo Ordenamento Jurídico. [16] Embora não se posicione acerca do possível retorno ao jusnaturalismo, Gustavo Zagrebelsky salienta que a Constituição não é Direito Natural, mas a manifestação suprema do positivismo [17], pelo que os princípios representariam a positivação dos valores até então tidos como prerrogativa exclusiva do jusnaturalismo.

Portanto, ainda que reconhecendo que a tarefa é deveras embaraçosa, parece-nos que a nova fase da Ciência Jurídica apesar de conter em seu bojo elementos do Direito Natural, caracteriza-se como uma nova forma de Positivismo Jurídico, um positivismo moderado ou híbrido, vez que as regras ainda consubstanciam a esmagadora maioria das normas jurídicas nos ordenamentos positivos de países de tradição romano-germânica e, por isso, a metodologia desenvolvida durante os séculos XIX e XX não deve ser abandonada. Por outro lado, os ordenamentos jurídicos agora possuem uma reserva de justiça representada pelos princípios a fim de evitar os catastróficos acontecimentos do último século, e com isso foi desenvolvida nova metodologia (Nova Hermenêutica Constitucional) que deve conviver pacificamente com a pretérita.

2.2 A TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Desde a consagração formal dos direitos fundamentais nas Declarações de Direitos Setecentistas – onde se poderia pensar que a luta pelos direitos humanos estava próxima de seu fim – tem-se evidenciado enormes dificuldades para transposição dos comandos esculpidos nos textos constitucionais e infraconstitucionais para o plano fático.

Atenta a tal problemática, a doutrina constitucionalista desenvolveu progressivamente durante o século anterior dogmática procurando garantir a máxima eficácia possível aos direitos fundamentais, a qual ficou conhecida como "Teoria dos Direitos Fundamentais".

A seguir serão abordadas as principais construções da Teoria jusfundamental diretamente aplicáveis à justiciabilidade dos direitos sociais, a saber: a classificação dogmática e suas críticas, além dos caracteres inerentes aos direitos fundamentais.

2.2.1 Classificação dogmática

Distante de alcançar consenso na doutrina, a classificação dogmática desenvolvida a partir do critério funcional aqui proposta aproximar-se-á da formulada pelo constitucionalista lusitano José Carlos Vieira de Andrade que, por sua vez, sofre grande influência da teoria dos status de Jellinek. [18]

O professor da Universidade de Coimbra propõe uma classificação tripartida em direitos de defesa, direitos a prestações e direitos à participação. [19] Os direitos de defesa (negativos) caracterizar-se-iam pelo "dever de abstenção por parte do Estado que implicaria um dever de não interferência ou não-intromissão, no que toca às liberdades propriamente ditas, em que se resguarda um espaço de autodeterminação individual" e de outro lado um "dever de respeito, relativamente aos bens, designadamente pessoais (vida, honra, bom nome, intimidade), que são atributos da dignidade humana individual." [20] Nessa categoria inserem-se, de forma genérica, os direitos de matriz liberal, contidos em sua maioria no art.5° da Constituição Federal.

Já os direitos a prestações (positivos), impõem ao Estado um dever de agir, devendo "assegurar, aos titulares do direito, o provimento de prestações materiais ou jurídicas, destinadas a garantir a satisfação de condições econômicas, sociais e culturais necessárias para a fruição do direito social." [21] Ao contrário dos direitos de defesa, os direitos prestacionais exigem que o ente estatal saia da inércia abstencionista que o caracterizava até meados do século XX e adote posição ativa na luta pela redução das desigualdades sociais e econômicas através da prestação de direitos sociais. Vieira de Andrade ainda destaca que os direitos prestacionais podem exteriorizar-se como prestações materiais [22] – por exemplo, a intervenção policial ou os serviços de saúde -, ou prestações jurídicas – regulamentação das relações de trabalho, emissão de normas penais. [23]

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Na terceira categoria encontram-se os direitos de participação que se caracterizam como um misto de direitos de defesa e direitos a prestação [24] e "se manifestam principalmente nos direitos políticos: o direito ao voto, o direito de candidatar-se e de exercer cargos políticos eletivos." [25]

Um dos grandes problemas enfrentados na atividade de garantir máxima eficácia aos direitos sociais reside no argumento de que apenas os direitos de defesa (negativos) podem ser exigidos judicialmente, vez que não importam em custos ao Estado ao passo que os direitos a prestações (positivos) – aqui compreendidos como prestações materiais em sentido estrito – por exigirem dispêndio de verbas pelo Poder Público não são justiciáveis pois a destinação de verbas públicas depende de decisão política. Todavia, hodiernamente análises críticas à classificação dogmática dos direitos fudnamentais desfizeram tal falácia.

2.2.2 Críticas à classificação dogmática

Stephen Holmes e Cass Sunstein na obra "The Cost of Rights" sustentam que todos os direitos implicam custos por parte do Estado e que, portanto, todos são positivos. Dentre outros exemplos, ilustram tal assertiva a partir do exame do direito de liberdade, clássico direito de defesa (negativo), mostrando-se pertinente transcrever o comentário de Flávio Galdino:

Sunstein e Holmes argumentam que não existe a propriedade privada sem a ação pública, sem prestações estatais positivas. [...] O direito de propriedade depende de um arsenal normativo de viação contínua e perene por parte de agentes políticos, em especial juizes e legisladores (trata-se, portanto, a toda evidência de uma prestação fática). Ademais a proteção do direito de propriedade depende diariamente da ação de agentes governamentais, como sejam bombeiros e policiais. Todos os agentes antes referidos, de soldados – bombeiros a senadores, passando pelos magistrados são mantidos (e pagos!) pelo Erário Público, com recursos levantados a partir da tributação imposta pelo Estado, consubstanciando o seu trabalho em uma prestação manifestamente pública – positiva – indispensável à configuração e manutenção do direito de propriedade.

Assim, é possível concluir que o direito de propriedade – clássico direito da liberdade, tido como tipicamente negativo -, é estrondosamente positivo. Criado e mantido diuturnamente pela ação estatal. [26]

Portanto, os direitos de defesa que dantes exigiam apenas a omissão do Estado, também exigem dispêndio de recursos públicos para sua garantia. Reforçando os argumentos de Sunstein e Holmes, os constitucionalistas argentinos Cristian Courtis e Victor Abramovich destacam que além dos direitos negativos imporem custos ao Estado, os direitos a prestações (sociais) não se esgotam em obrigações positivas, uma vez que também exigem a abstenção estatal de realizar condutas que os afetem. [27]

Da mesma forma, Cláudio Ari Mello diante da complexidade funcional das espécies de direitos fundamentais, também destaca as múltiplas facetas dos direitos de defesa e dos direitos prestacionais:

Cada direito fundamental é constituído por um conjunto complexo e heterogêneo de poderes, pretensões, faculdades e interesses que transcende o critério operacional próprio do tipo jusfundamental e utiliza os critérios das outras espécies de direitos. Isso significa que os direitos liberais de defesa, que exigem primordialmente deveres de abstenção podem também exigir prestações positivas ou deveres de agir por parte do Estado para satisfazer os bens e valores protegidos pelas normas constitucionais correspondentes.

[...} Por outro lado, os direitos sociais podem demandar uma ação defensiva além das prestações positivas que os caracterizam. [28]

Assim, tendo-se em conta que os direitos de defesa por vezes também exigem a atuação positiva do estado para garanti-los e, consequentemente, o dispêndio de verbas públicas, resta deveras fragilizado o argumento contrário à justiciabilidade dos direitos fundamentais de segunda dimensão em razão do seu caráter prestacional (positivo). Se o Poder Legislativo, o Poder Executivo e o próprio Poder Judiciário dão prevalência aos direitos fundamentais de primeira dimensão, o fazem por escolha política, pois tais direitos também estão sujeitos à escassez de recursos econômicos públicos como os direitos sociais [29] – ainda que seja forçoso admitir que os últimos, na maioria dos casos, importam em custos mais elevados.

Não se quer com isso abandonar a classificação dogmática, porque os direitos fundamentais são inseridos numa ou noutra categoria de acordo com sua função preponderante, além do fato de que os planos de abordagem desta e da proposta por Holmes e Sunstein serem diferentes, vez que a última caracteriza-se pela visão econômica e a primeira encontra-se no estrito campo da Ciência Jurídica. [30]

2.2.3 Caracteres dos direitos fundamentais

Embora sujeita à contingencialidade da realidade de cada ordenamento jurídico e das condições sócio-econômicas de cada país, a doutrina jusfundamentalista tem apontado com freqüência algumas características intrínsecas dos direitos fundamentais, dentre as quais serão examinadas aquelas diretamente relacionadas com o tema proposto, quais sejam: a aplicabilidade imediata e a vinculação dos poderes públicos que traz consigo a proibição do retrocesso social.

2.2.3.1 A aplicabilidade imediata

Conforme lembra Ana Paula de Barcellos, as duas Guerras Mundiais do século XX trouxeram como subproduto a percepção do fracasso das constituições enquanto meros programas sem qualquer força normativa e ensejaram um novo discurso sobre a Constituição: o discurso normativo. [31] Essa nova concepção acerca da Lei Maior preconiza que as normas constitucionais são normas jurídicas e devem gozar do aspecto característico de tal espécie, qual seja a normatividade.

Isso implica no abandono da concepção das normas constitucionais como meros comandos morais ou diretrizes que reproduzem conselhos ao Legislativo, Executivo e Judiciário, pois a normatividade traz consigo a imperatividade dos efeitos propostos, ou pelo menos parcela deles. Diante dessa nova atmosfera constitucional, tem-se proclamado que todas as normas constitucionais, por menor que seja sua densidade normativa, são capazes de produzir efeitos no plano prático, ainda que não todos os que uma típica regra jurídica no ideário positivista produziria. [32]

Inserida nessa nova concepção constitucional, a Carta Política de 1988 estabeleceu no seu art.5°, §1° um plus de normatividade às normas definidoras de direitos fundamentais, ao asseverar que estas tem aplicabilidade imediata.

É bem verdade que leitura rápida e descompromissada do texto constitucional poderá sustentar que a norma contida no dispositivo em comento aplica-se somente aos direitos e garantias individuais descritos no art.5° da Constituição Federal. Entretanto, ao fazer constar expressamente a locução "direitos fundamentais", o constituinte acabou por estender os efeitos da norma constitucional a todos os direitos fundamentais consagrados pela Carta Magna, inclusive os previstos fora do catálogo.

O Professor Ingo Sarlet ressalta que nem mesmo interpretação gramatical à norma do art.5°, §1° pode restringir sua aplicação a qualquer das categorias específicas de direitos fundamentais, bem como que os métodos interpretativos sistemático e teleológico apontam a mesma conseqüência.

Em que pese a circunstância de que a situação topográfica do dispositivo poderia sugerir uma aplicação da norma contida no art.5°, §1°, da CF apenas aos direitos individuais e coletivos (a exemplo do que ocorre com o parágrafo segundo do mesmo artigo), o fato é que este argumento não corresponde à expressão literal do dispositivo, que utiliza a formulação genérica "direitos e garantias individuais" tal como consiganda na epígrafe do Título II da nossa Lex Suprema, revelando que, mesmo em se procedendo a uma interpretação meramente literal, não há como sustentar uma redução do âmbito de aplicação da norma a qualquer das categorias específicas de direitos fundamentais consagradas em nossa Constituição, nem mesmo aos – como já visto, equivocadamente designados – direitos individuais e coletivos do art.5°. Se, todavia, optarmos por não nos contentar com a argumentação embasada numa interpretação cingida à letra do texto constitucional, verificaremos também uma interpretação sistemática e teleológica conduzirá aos mesmos resultados. Neste sentido, percebe-se, desde logo, que o Constituinte não pretendeu, com certeza, excluir do âmbito do art.5°m §1°, de nossa Carta, os direitos políticos, de nacionalidade e os direitos sociais, cuja fundamentalidade – pelo menos no âmbito formal – parece inquestionável. [33]

Vencida a questão da abrangência do art.5°, §1°, surge outra problemática incidente sobre o dispositivo que reside nos efeitos da cláusula de aplicabilidade imediata sobre as diversas categorias de direitos fundamentais. Como no Brasil não se pode sustentar prima facie um regime diferenciado aos direitos fundamentais de primeira dimensão como ocorre em Portugal – isso porque a Constituição Portuguesa de 1976 estabeleceu expressamente sistema diferenciado -, o tema tem suscitado ampla divergência na doutrina, especialmente quando estão em pauta os direitos sociais.

Conforme sublinha Ingo Sarlet, observam-se duas posições antagônicas que se encontram nos extremos. A primeira defendida por Manoel Gonçalves Ferreira Filho sustenta que a norma contida no art.5°, §1° é desnecessária e supérflua, destituída de conteúdo, vez que não tem o condão de conferir eficácia às normas carentes de concretização. [34] Diversamente, os adeptos da segunda corrente, dentre os quais se destacam Ruy Ruben Ruschel e o atual Ministro Eros Roberto Grau, defendem que o dispositivo em questão outorga eficácia plena aos direitos fundamentais ainda quando carentes de conformação legislativa, casos em que o mandado de injunção, a ação de inconstitucionalidade por omissão e o art.4° da Lei de Introdução ao Código Civil e impõem o dever de concretização ao Poder Judiciário. [35]

Situando-se em posição intermediária, o ilustre Professor da PUC/RS preconiza que o art.5°, §1° deve ser tratado como uma norma-princípio que, como tal, exige que os órgãos estatais reconheçam a maior eficácia possível aos direitos fundamentais. Assim, o alcance da norma será definido analisando casos concretos, tendo em conta a densidade normativa e as limitações fáticas e jurídicas do direito fundamental em pauta. De qualquer forma, Ingo Sarlet propõe a presunção de aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos fundamentais, de sorte que a recusa da sua aplicação deve ser fundamentada [36], posição que nos parece a mais adequada e prudente e que será retomada adiante.

2.2.3.2 A vinculação dos poderes públicos e a proibição do retrocesso social

Embora não conste expressamente no texto constitucional, a vinculação dos poderes públicos aos direitos fundamentais deriva da cláusula de aplicabilidade imediata prevista no art.5°, §1°. [37] Essa faceta dos direitos fundamentais indica que, numa acepção negativa eles encontram-se fora da disponibilidade dos entes públicos e, compreendida na sua dimensão positiva, que estes estão obrigados a engajarem esforços para conferir máxima eficácia possível às normas definidoras de direitos fundamentais. [38]

Digno salientar que, da mesma forma que acentuado no tópico anterior sobre a aplicabilidade imediata, a vinculação dos poderes públicos não incide de forma uniforme, restando condicionada à densidade normativa do direito fundamental em pauta. A partir dessa estreita relação da densidade normativa com o grau de vinculação, parece-nos correto afirmar que quanto maior for aquela mais elevado será o nível de vinculação dos poderes públicos ao direito fundamental em questão. [39]

Aspecto polêmico da vinculação dos poderes públicos às normas consagradoras de direitos fundamentais reside na proibição do retrocesso social, que consiste na vedação do Poder Público, uma vez conferido certo grau de normatividade a direito fundamental pela legislação infraconstitucional, revogar tal diploma legal. Ainda que sem se posicionar de forma clara sobre a questão, pertinente recordar a definição de Paulo Gustavo Gonet Branco:

Quem admite tal vedação, sustenta que, no que pertine a direitos fundamentais que dependem do desenvolvimento legislativo para se concretizarem, uma vez obtido certo grau de sua realização, legislação posterior não pode reverter as conquistas obtidas. A realização de direito pelo legislador constituiria, ela própria, uma barreira para que a proteção atingida venha a ser desfeita sem compensações. [40]

Para os que defendem a tese da proibição do retrocesso, o contexto atual de desmantelamento dos direitos sociais, muitas vezes levado a cabo pelo próprio Estado, torna-a imprescindível para a garantia da máxima eficácia possível dessa dimensão dos direitos fundamentais. [41] Entretanto, encontra limites quando as restrições à sua aplicação mostram-se razoáveis, ou seja, "sem colocar as pessoas abaixo de um nível de vida digna, resultem indispensáveis (as limitações) para a expansão geral do sistema de direitos e respeitem, em todos os casos, os princípios de compensação adequada e prioridade dos sujeitos mais necessitados (favor debilis)." [42]

Em abordagem crítica à proibição do retrocesso social, o constitucionalista lusitano José Carlos Vieira de Andrade, adotando concepção moderada ao negar caráter de princípio jurídico-constitucional mas aceitando algumas consequências práticas, assevera que não há como conceber-se o postulado em questão como princípio geral jusfundamental, eis que destruiria a autonomia legislativa, transformando o Poder Legislativo em mero executor da Constituição. Todavia, também não propõe o esvaziamento do conteúdo da cláusula, sustentando que deve restar proibida a revogação de normas conformadoras de direitos sociais quando não se pretender a substituição por outras medidas que se revelem prioritárias em relação ao direito preterido, além da restrição imposta pela proteção da confiança que objetiva vedar o arbítrio e a desarrazoabilidade de eventuais retrocessos infundados. [43]

Diversamente, advogando a inviabilidade da proibição do retrocesso social Roger Stifellmann Leal alega que em face do pluralismo democrático, valor consagrado pela Constituição Federal de 1988, não seria adequado extrair tal eficácia das normas definidoras de direitos fundamentais, inclusive porque a tarefa de concretização de tais normas encontra-se na esfera política e envolve a disponibilidade de recursos financeiros e a fixação de prioridade políticas. [44]

Em que pese a existência de argumentos contrários à eficácia da proibição do retrocesso social, não há como desconsiderar a importância de tal cláusula à garantia da máxima eficácia dos direitos sociais, principalmente no atual contexto dos países subdesenvolvidos. Deve-se ponderar que o postulado não pode ter efeitos absolutos, o que fulminaria a liberdade de conformação legislativa e o próprio princípio do pluralismo democrático, mas deve acenar com a blindagem prima facie às maiorias legislativas, exigindo que para a revogação de concretização de direitos fundamentais pela legislação infraconstitucional (especialmente os direitos de segunda dimensão) o legislador proponha a substituição por outra norma diversa, a concreção do mesmo ou de outro direito fundamental, ou que o retrocesso reste legitimado pela prevalência de outra norma jusfundamental que apresente maior peso ou relevância.

2.3 DOUTRINAS DE RESISTÊNCIA À JUSTICIABILIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS

Com a elevação dos direitos sociais, econômicos e culturais ao status de direitos fundamentais, poder-se-ia pensar que a sua justiciabilidade restaria evidente, vez que colocados no topo do ordenamento jurídico. Entretanto, breve mirada sobre a literatura jurídica e a jurisprudência pátria permite concluir que o tema ainda é alvo de acentuadas discussões, além do fato de que, à exceção do direito à saúde, há clara predominância na jurisprudência pátria da posição que entende que os direitos sociais são injusticiáveis.

Essa resistência à eficácia das normas definidoras dos direitos fundamentais de segunda dimensão exterioriza-se de diversas formas que refletem o conservadorismo liberal construído na Europa ainda no século XIX e que ainda seduz grande parcela dos operadores jurídicos. Inserem-se nas doutrinas de resistência a discricionariedade administrativa, o caráter programático das normas consagradoras de direitos sociais e o princípio da separação dos poderes, temas que serão abordados individualmente a seguir.

2.3.1 O caráter programático das normas definidoras de direitos sociais

Não raro ouve-se em Congressos Jurídicos, nas Universidades e até mesmo em decisões judiciais que o texto constitucional aprovado pela Assembléia Constituinte contém grande conteúdo utópico, irrealizável ou que houve excessos que não deveriam constar na Constituição. Talvez o exemplo mais citado seja o inciso IV do art.7° que traça as condições e despesas que o salário mínimo deve suportar, as quais diante da atual indexação restam integralmente descumpridas, o que não significa que a norma é inútil, vez que além de produzir determinados efeitos – ainda que distante da plenitude -, estabelece meta a ser alcançada.

A inclusão de normas constitucionais que impõem a adoção de uma gama complexa e plural de ações e que passam a nortear a atividade estatal sofreu forte influência da concepção de "Constituição Dirigente" formulada por Gomes Canotilho e especialmente, da idéia de "força normativa da Constituição" concebida por Konrad Hesse. Esse último, atacando a visão minimalista da função da Lei Maior externada por Lassale, ressaltou que a Constituição não deve reduzir-se a mera conformação da realidade, tendo uma importante função transformadora do contexto sócio-econômico do país, função essa expressada pela força normativa do texto constitucional. [45]

Em meio a essa nova realidade constitucional, desenvolveram-se inúmeras teorias acerca da aplicabilidade das normas constitucionais, destacando-se a desenvolvida pela doutrina norte-americana e transplantada ao Direito brasileiro por Ruy Brabosa, a clássica – e talvez mais aceita – tese de José Afonso da Silva e, por fim, a preconizada por Luís Roberto Barroso.

A doutrina norte-americana desenvolveu a classificação dúplice das normas constitucionais quanto à sua eficácia, estabelecendo as categorias self-executing e not self-executing ou auto-aplicáveis e não auto-aplicáveis. No primeiro grupo encontram-se as normas "desde logo aplicáveis porque revestidas de plena eficácia jurídica, por regularem diretamente as matérias, situações ou comportamentos que cogitam" [46], enquanto que as não auto-aplicáveis dependem de legislação infra-constitucional para serem aplicadas.

Tomando por base a teoria desenvolvida pelo constitucionalismo italiano, José Afonso da Silva propõe uma classificação tripartida composta pelas normas de eficácia plena, eficácia contida e de eficácia limitada, as quais se subdividiriam em normas constitucionais de princípio institutivo e de princípio programático. Esta última subespécie de norma de eficácia limitada em que se encontrariam os direitos sociais, configurar-se-ia quando o constituinte limitou-se a traçar princípios para serem cumpridos pelos órgãos públicos como programas, objetivando a realização da finalidade social do Estado. [47] O Professor da USP, quando aborda a questão dos efeitos das normas constitucionais programáticas, destaca que não produzem direitos subjetivos no sentido positivo, podendo ser extraído apenas a eficácia negativa – vinculação da discricionariedade, limitação ao legislador e função interpretativa. [48]

Advogando tese semelhante à de José Afonso da Silva, o Professor Luís Roberto Barroso apresenta classificação tricotômica constituída pelas normas constitucionais de organização, normas constitucionais definidoras de direitos e normas constitucionais programáticas, sendo que, diversamente do publicista paulista, insere os direitos fundamentais de segunda dimensão na segunda espécie. Cabe ressaltar que as normas constitucionais definidoras de direitos são subdivididas em normas que geram situações prontamente desfrutáveis, dependendo apenas de uma abstenção; normas que ensejam a exigibilidade de prestações positivas do Estado, dentre as quais se encontram alguns direitos sociais como o direito à saúde e à educação e que conferem direitos subjetivos aos titulares, ainda que sujeitos a algumas limitações; e normas que contemplam interesses cuja realização depende da edição de norma infraconstitucional integradora, onde se encontram os demais direitos sociais, econômicos e culturais. [49]

Aproximando-se das conclusões do Professor da UERJ, a moderna teoria constitucional tem destacado a possibilidade de extração de núcleo justiciável das normas definidoras de direitos sociais com baixa densidade normativa, inclusive porque se caracterizam, na sua maioria, como princípios e que, no dizer de Robert Alexy, devem ser concretizados na maior medida possível. Nesse sentido, O Supremo Tribunal Federal analisando postulação de condenação do Poder Público ao fornecimento de medicamentos, asseverou que "a interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional inconseqüente", sob pena de fraude às "justas expectativas nele (Poder Público) depositadas pela coletividade", o que levou a Corte Suprema a conferir eficácia ao direito à saúde, na esteira da maciça jurisprudência sedimentada pelo Superior Tribunal de Justiça e pelos Tribunais Estaduais. [50]

Da mesma forma, a 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em caso onde se examinava a legalidade da condenação do Estado do Rio Grande do Sul ao custeio de transporte e intervenção cirúrgica em menor enfermo, afastou explicitamente a barreira da programaticidade das normas definidoras de direitos sociais, destacando a sua auto-aplicabilidade prima facie. [51] Em face da relevância da decisão, convém transcrever parcialmente o voto do Relator:

O Poder Judiciário tem negado sistematicamente o argumento de que o caráter programático da norma que consagra o direito à saúde (art. 196 da Constituição Federal) esvazia-o a ponto de inviabilizar a postulação judicial de tratamentos, transporte, medicamentos e cirurgia, seja porque tal conclusão carece de idoneidade jurídica, seja em razão de estar divorciada dos preceitos éticos positivados pela Carta Magna.

[...] Tal postura compromissada com a realização do texto constitucional é chancelada por construções doutrinárias recentes que admitem a extração de núcleo justiciável das normas constitucionais programáticas, evitando o esvaziamento do seu conteúdo.

Não bastasse isso, embora topograficamente mal situada no texto constitucional, a norma-princípio contida no art.5º, §1º, da Carta Política de 1988 aplica-se aos direitos sociais, econômicos e culturais arrolados no art. 6º, pelo que se pode afirmar que o direito fundamental à saúde tem aplicabilidade imediata - embora tal assertiva sofra alguns temperamentos em relação à totalidade dos direitos sociais.

Portanto, o obstáculo imposto pela classificação das normas constitucionais também deixou de ser intransponível, a ponto da jurisprudência pátria tê-lo afastado expressamente em relação a alguns direitos sociais.

2.3.2 A discricionariedade administrativa

Seabra Fagundes, um dos mais influentes publicistas da história jurídica do Brasil, com base em teoria desenvolvida principalmente pela doutrina administrativista francesa, difundiu tese de que restaria vedado ao Poder Judiciário examinar o mérito dos atos administrativos discricionários, cabendo apenas nesta hipótese apreciar estritamente a legalidade do ato. Assim, o julgamento de conveniência e oportunidade levado a cabo pelo administrador restaria imune ao controle exercido pelo Judiciário, sob pena de adentrar em campo atribuído exclusivamente ao Poder Executivo.

Breve análise da jurisprudência permite apontar que tal doutrina ainda é majoritária no Superior Tribunal de Justiça, embora atualmente verifique-se alguns indícios de superação da vedação do controle judicial sobre o mérito administrativo. Pertinente transcrever ementa que ilustra o pensamento predominante da Corte, onde estava em questão a possibilidade de impor condenação ao Município de Cambará/PR de instalar abrigo para menores carentes:

RECURSO ESPECIAL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PRECEITOS COMINATÓRIOS DE OBRIGAÇÃO DE FAZER – DISCRICIONARIEDADE DA MUNICIPALIDADE – NÃO CABIMENTO DE INTERFERÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO NAS PRIORIDADES ORÇAMENTÁRIOS DO MUNICÍPIO – CONCLUSÃO DA CORTE DE ORIGEM DE AUSÊNCIA DE CONDIÇÕES ORÇAMENTÁRIAS DE REALIZAÇÃO DA OBRA – INCIDÊNCIA DA SÚMULA N.07 STJ – DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL AFASTADA – AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO DE DISPOSITIVO DO ECA APONTADOS COMO VIOLADOS.

[...] Na lição de Hly Lopes Meirelles, " só o administrador, em contato com a realidade, está em condições de bem apreciar os motivos ocorrentes de oportunidade e conveniência na prática de certos atos, que seria impossível ao legislador, dispondo na regra jurídica – lei – e maneira geral e abstrata, prover com justiça e acerto. Só os órgãos executivos é que estão, em muitos casos, em condição de sentir e decidir administrativamente o que convém e o que não convém ao interesse coletivo."

Dessa forma, com fulcro no princípio da discricionariedade, a Municipalidade tem liberdade para, com a finalidade de assegurar o interesse público, escolher onde devem ser aplicadas as verbas orçamentárias e em quais obras deve investir. Não cabe, assim, ao Poder Judiciário interferir nas prioridades orçamentárias do Município e determinar a construção de obra especificada. [52]

Cumpre destacar que o objetivo deste tópico não é de aniquilamento da discricionariedade administrativa, vez que, como bem ponderou Celso Antônio Bandeira de Mello, ela decorre da imprecisão com que a norma descreve seu suporte fático, da fluidez do comando da norma jurídica e quando a finalidade desta é expressada através de conceitos jurídicos indeterminados. [53] O fato é que não há como o legislador prever todas as hipóteses possíveis e indicar em todas elas a conduta a ser adotada pelo Executivo, o que justifica a instituição de relativa liberdade da Administração Pública em determinados casos.

Com isso não se quer dizer que há liberdade total ao administrador ou que a norma jurídica que confere esse espaço não indica qualquer conduta a ser adotada, porque conforme acentuou Celso Antônio Bandeira de Mello, a discricionariedade conferida pelo legislador implica no dever de adotar a melhor solução no caso concreto. [54] O ilustre Professor da PUC/SP prossegue destacando que a motivação do ato administrativo discricionário pode e deve ser objeto de análise pelo Poder Judiciário, o qual deve pautar seu julgamento nos princípios da razoabilidade, proporcionalidade, lealdade, boa-fé e igualdade. [55]

Juarez Freitas propôs uma revisão das definições da clássica divisão dos atos administrativos em face dos novos paradigmas impostos pela Nova Hermenêutica Constitucional. Assevera que os atos administrativos discricionários estão vinculados aos princípios jurídicos não podendo deles se afastar, sob pena de nulidade, de sorte que não se falaria mais em discricionariedade pura, mas discricionariedade vinculada aos princípios. [56] Essa nova concepção proposta pelo Professor da UFRGS traz como corolário o alargamento do controle judicial sobre os atos administrativos discricionários, onde, apesar de sustentar que a forma de apreciação deve ser a do administrador negativo – a exemplo da fórmula do legislador negativo aplicada à jurisdição constitucional -, acentua a maior rigidez do exame pelo Poder Judiciário quanto maior for a liberdade conferida ao Executivo. [57]

Defendendo posição um tanto mais ousada mas na mesma medida mais adequada ao espírito da Constituição Federal de 1988, o Professor Cláudio Ari Mello salienta que a doutrina da auto-restrição judicial da discricionariedade administrativa foi desenvolvida tendo como alicerce o modelo estatal liberal, restando inadequada ao Estado Social que trouxe consigo crescimento das atividades do Poder Executivo em níveis outrora inimagináveis. [58] Destaca que a constitucionalização do Direito Administrativo, a vinculação da discricionariedade aos princípios e aos direitos fundamentais trouxe aquele espaço nebuloso e intocável de liberdade do administrador ao governo de critérios objetivos e rastreáveis, amplamente sujeitos ao controle judicial, e provocaram refluxo da tese de injusticiabilidade da discricionariedade administrativa. [59]

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em verdadeiros leading cases, já havia proferido condenação ao Estado à implantação e manutenção de programas para internação de menores infratores, afastando expressamente a tese da vedação ao controle do mérito administrativo ao asseverar que "a conveniência e oportunidade não permitem ao administrador se afaste dos parâmetros principiológicos e normativos da Constituição Federal e de todo o sistema legal." [60] Noutro caso, a 4ª Câmara Cível daquela corte impôs condenação ao Município de Porto Alegre à construção de estações de tratamento de esgoto de toda a cidade, ocasião em que o eminente relator do acórdão salientou que se estava procedendo à adequação do mérito administrativo às necessidades da população. [61]

Mas a demonstração da progressiva superação da barreira imposta pela doutrina da discricionariedade administrativa mais significativa consubstancia-se na recente posição da 2ª Turma do Superior Tribunal de Jusitça, capitaneada pela Min. Eliana Calmon, que tem afirmado uma nova visão dos atos administrativos discricionários ao sujeitar a conveniência e a oportunidade ao controle judicial. Exemplo paradigmático dessa posição é o julgamento do Recurso Especial n° 429.570/GO, onde estava em pauta ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Goiano objetivando a condenação do Município de Goiânia a proceder a recuperação do solo de área degradada.

ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – OBRAS DE RECUPERAÇÃO EM PROL DO MEIO AMBIENTE – ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO.

1. Na atualidade, a Administração pública está submetida ao império da lei, inclusive quanto à conveniência e oportunidade do ato administrativo.

2. Comprovado tecnicamente ser imprescindível, para o meio ambiente, a realização de obras de recuperação do solo, tem o Ministério Público legitimidade para exigi-la.

3. O Poder Judiciário não mais se limita a examinar os aspectos extrínsecos da administração, pois pode analisar, ainda, as razões de conveniência e oportunidade, uma vez que essas razões devem observar critérios de moralidade e razoabilidade.

4. Outorga de tutela específica para que a Administração destine do orçamento verba própria para cumpri-la.

5. Recurso especial provido. [62]

Em seu voto, a Min. Eliana Calmon bem expressa as razões dessa nova concepção do controle judicial dos atos administrativos discricionários, tornando imperiosa parcial transcrição:

A pergunta que se faz é a seguinte: pode o Judiciário, diante da omissão do Poder Executivo, interferir nos critérios da conveniência e oportunidade da Administração para dispor sobre a prioridade da realização de obra pública voltada para a reparação do meio ambiente, no assim chamado mérito administrativo, impondo-lhe a imediata obrigação de fazer? Em caso negativo, estaria deixando de dar cumprimento à determinação imposta pelo art.3º, da lei da ação civil pública?

[...] O primeiro aspecto a considerar diz respeito à atuação do Poder Judiciário, em relação à Administração. No passado, estava o Judiciário atrelado ao princípio da legalidade, expressão maior do Estado do direito, entendendo-se como tal a submissão de todos os poderes à lei. A visão exarcebada e literal do princípio transformou o Legislativo em um super poder, com supremacia absoluta, fazendo-o bom parceiro do Executivo, que dele merecia conteúdo abrangente e vazio de comando, deixando-se por conta da Administração o facere ou non facere, ao que se chamou de mérito administrativo, longe do alcance do Judiciário. A partir da última década do Século XX, o Brasil com grande atraso, promoveu a sua revisão crítica do Direito, que consistiu em retirar do Legislador a supremacia de super poder, ao dar nova interpretação ao princípio da legalidade. Em verdade, é inconcebível que se submeta a Administração, de forma absoluta e total à lei. Muitas vezes, o vínculo de legalidade significa só a atribuição de competência, deixando zonas de ampla liberdade ao administrador, com o cuidado de não fomentar o arbítrio. Para tanto, deu-se ao Poder Judiciário maior atribuição para imiscuir-se no âmago do ato administrativo, a fim de, mesmo nesse íntimo campo, exercer juízo de legalidade, coibindo abusos ou vulneração de princípios constitucionais, na dimensão globalizada do orçamento.

A tendência, portanto, é a de manter fiscalizado o espaço livre de entendimento da Administração, espaço este gerado pela discricionariedade, chamado de "Cavalo de Tróia" pelo alemão Huber, transcrito em "Direito Administrativo em Evolução", de Odete Medauar. Dentro desse novo paradigma, não se pode simplesmente dizer que, em matéria de conveniência e oportunidade, não pode o Judiciário examiná-las. Aos poucos, o caráter de liberdade total do administrador vai se apagando da cultura brasileira e, no lugar, coloca-se na análise da motivação do ato administrativo a área de controle. E, diga-se, porque pertinente, não apenas o controle em sua acepção mais ampla, mas também o político e a opinião pública.

Portanto, além da vinculação aos princípios, a ligação indissociável da discricionariedade administrativa à realização dos direitos fundamentais como corolário da cláusula da vinculação dos poderes públicos, apontam para uma superação da insindicabilidade do mérito administrativo, entendimento esse que vem progressivamente manifestando-se em decisões judiciais.

2.3.3 O princípio da separação dos poderes

Ainda sob o eco da teoria tripartida dos poderes desenvolvida por Montesquieu em meio a um contexto deveras diverso e influenciados pela concepção liberal do princípio difundida pelo ideário burguês, criou-se mais uma barreira à justiciabilidade dos direitos fundamentais de segunda dimensão, segundo a qual a sua concretização pelo Judiciário afrontaria o princípio da separação dos poderes.

Todavia, com já referido alhures, as funções do Estado após as duas Guerras Mundiais do século XX, com ampla difusão e incorporação nas Constituições Ocidentais do modelo estatal social, aumentaram significativamente, de forma que não há mais como falar em rígida separação entre os poderes, mas harmonização com sistema de freios e contrapesos como meio de controle dos abusos eventualmente praticados.

Em face dessa nova realidade implantada pelo constitucionalismo do período pós-guerra, Andreas J. Krell convoca os operadores jurídicos a uma releitura do princípio da separação dos poderes, vez que a vetusta concepção de Montesquieu tem paralisado as reivindicações de cunho social, o que se mostra incompatível com as aspirações do Estado Social. Nessa nova visão do dogma liberal, os juízes devem assumir posição ativa na tarefa de concretizar as diretrizes materiais da Constituição e abandonar a atitude conservadora preconizada pela doutrina constitucional tradicional. [63]

Sensível à alteração de paradigmas trazida pela evolução do Estado Liberal ao modelo Social, em algumas decisões importantes o Poder Judiciário tem afastado o princípio da separação dos poderes como empecilho à justiciabilidade dos direitos sociais, econômicos e culturais e imposto ao Poder Executivo obrigações de executar políticas públicas. [64] Modelo exemplar dessa nova postura do Terceiro Poder é o julgamento da ADPF n° 045 MC/DF, em que o Min. Celso de Mello examinou brilhantemente a problemática proposta neste trabalho e sublinhou a legitimidade do Poder Judiciário de conferir eficácia aos direitos sociais diante da omissão dos demais poderes.

Em face da importância da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal e suas conseqüências sobre o cenário jurídico, cabe transcrever parcialmente o trecho em que o relator aborda a separação dos poderes como limite à eficácia dos direitos fundamentais de segunda dimensão:

[...] É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário – e nas desta Suprema Corte, em especial – a atribuição de formular e implementar políticas públicas, pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Executivo e Legislativo. Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático.

Seguindo a trilha esboçada pela Corte Suprema, a 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em recente julgamento onde se examinava a viabilidade de condenação do Município de Igrejinha e do Estado do Rio Grande do Sul ao fornecimento de medicação importada, asseverou que "as doutrinas de resistência à justiciabilidade dos direitos sociais da afronta ao princípio da separação dos poderes, inexistência de previsão orçamentária e reserva do possível não têm lugar quando em pauta direito fundamental que se relaciona intimamente com o princípio da dignidade da pessoa humana e insere-se no padrão hermenêutico do mínimo existencial, como o direito à saúde, salvo situação excepcional não verificada no caso concreto." [65] Na ocasião, o Des. José Carlos Teixeira Giorgis destacou:

O exame da suposta violação ao princípio da separação dos poderes não pode mais ser colocado nas bases sugeridas pelo Município de Igrejinha, vez que fundado na vetusta concepção de Montesquieu e desatento à evolução da organização e estrutura do Estado Moderno e das construções doutrinárias incorporadas pela legislação pátria - principalmente, pela Constituição Federal de 1988. Convém recordar que o constituinte originário buscou inspiração no sistema de freios e contrapesos preconizado pelo constitucionalismo norte-americano, disponibilizando mecanismos de controle e fiscalização aos três poderes, de sorte que a vedação de ingerência entre eles não deve mais ser visualizada de forma absoluta.

Assim, colocada em pauta possível afronta ao princípio da separação dos poderes decorrente da imposição de condenação pelo Poder Judiciário à Administração Pública de fornecer medicação de que necessita menor com moléstia rara, indubitável que não resta configurada a violação ao art. 2º da Carta Magna. Isso porque o direito à saúde, típico direito fundamental de segunda dimensão, insere-se no mínimo existencial - vez que indisputável que a garantia de saúde básica à população necessitada consubstancia condição mínima para a sua dignidade -, pelo que a omissão dos demais poderes autoriza posição ativa do Poder Judiciário [...].

Logo, se parece correto afirmar que ao Poder Judiciário é vedado assumir indiscriminadamente as funções de legislador e administrador, sob pena de violação do princípio da separação dos poderes, não menos acertado asseverar-se que também não pode ficar alheio à tarefa de concretização dos mandamentos constitucionais, de sorte que a omissão dos demais poderes legitima a adotar posição ativa, como aliás já tem feito em inúmeras oportunidades.

2.4 A RESERVA DO POSSÍVEL E O MÍNIMO EXISTENCIAL COMO CÂNONE HERMENÊUTICO DA JUSTICIABILIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS

Hodiernamente tem-se destacado outra barreira à tutela judicial dos direitos sociais que reside na limitação dos recursos públicos e que se convencionou denominar de princípio da "reserva do possível". Tal construção leva em conta que os recursos orçamentários são limitados e, especialmente nos países de desenvolvimento, escassos, o que traria impossibilidade fática de implementar políticas públicas exigidas pelos direitos fundamentais de segunda dimensão e de cumprir eventuais decisões judiciais que impusessem obrigações incompatíveis com as disponibilidades orçamentárias.

Isento de dúvida que a escassez de recursos financeiros do Estado estabelece limitação fática à concreção de muitos direitos sociais, econômicos e culturais, pois conforme salienta Giovani Bigolin "não se pode negar que apenas se pode buscar algo onde algo existe." [66] Entretanto, também não se pode aceitar a posição situada no outro extremo de que a reserva do possível consubstancia óbice intransponível à eficácia de todo e qualquer direito social, vez que há forte tendência da doutrina jusfundamental, que vem encontrando respaldo de decisões judiciais, de que há conteúdo mínimo que pode ser exigido judicialmente em caso de descumprimento, ainda que existam limitações orçamentárias.

No paradigmático julgamento da ADPF n° 045 MC/DF, o Min. Celso de Mello – filiando-se à tese explicitada no parágrafo anterior -, ponderando a reserva do possível e o núcleo dos direitos fundamentais de segunda dimensão, sublinhou a exigibilidade judicial do mínimo existencial nos seguintes termos:

É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais - além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização - depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese - mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa - criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível" - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.

Tal pronunciamento vem encontrando eco na jurisprudência pátria, conforme se vislumbra em recentes julgamentos da 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, como a Apelação e Reexame Necessário nº 70010981355, Rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis, julgado em 15/06/2005 e Apelação e Reexame Necessário nº 70010996478, Rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis, julgado em 15/06/2005. Neste último precedente, a Corte Gaúcha destacou que "a reserva do possível, doutrina de resistência à justiciabilidade dos direitos sociais, não pode ser argüida quando em pauta direito fundamental intimamente relacionado com o princípio da dignidade da pessoa humana e inserido no padrão hermenêutico do mínimo existencial, como o direito à saúde, salvo situação excepcional não verificada no caso concreto."

Posicionando-se de forma acentuadamente crítica à reserva do possível, a qual seria fruto de um direito constitucional comparado equivocado, Andreas J. Krell defende a justiciabilidade do mínimo existencial que teria "a função de atribuir ao indivíduo um direito subjetivo contra o Poder Público em casos de diminuição da prestação de serviços sociais básicos que garantem a sua existência digna." [67] O ilustre Professor da Universidade de Alagoas, a par da salientar a contingencialidade que envolve a definição do mínimo existencial, pontua que se inserem dentro do seu âmago o atendimento básico de saúde, moradia, educação fundamental e acesso à alimentação e vestimentas. [68]

Em construção teórica que se tornou referência sobre o tema, o jusfilósofo alemão Robert Alexy propõe um modelo dogmatico para aferir quando e em que condições que os direitos sociais podem ser tutelados pelo Poder Judiciário sob a forma de direitos subjetivos. Parte sua formulação de um escalonamento progressivo dos direitos a prestações quanto à sua eficácia e, após examinar os argumentos pró e contra a exigibilidade judicial dessa categoria de direitos fundamentais, sugere fórmula com base em sua teoria principiológica assim esquematizada:

Habrá que considerar que una posición de prestación jurídica está definitivamente garantizada iusfundamentalmente si (1) la exige muy urgentemente el principio de la libertad fáctica y (2) el principio de la división de poderes y el de la democracia (que incluye la competencia presupuestaria del parlamento) al igual que (3) principios materiales opuestos (especialmente aquellos que apuntam a la libertad jurídica de otros) son afectados en una medida relativamente reducida a través de la garantia iusfundamental de la posición de prestación jurídica y las decisiones del Tribunal Constitucional que la toman en cuenta. [69]

Portanto, determinado direito social será justiciável se, no caso concreto, a sua ponderação com os princípios da separação dos poderes, da reserva de parlamento e dos demais direitos fundamentais atingidos indicar que deva prevalecer. Releva ainda que tais condições restam preenchidas quando em pauta os direitos sociais, econômicos e culturais compreendidos no mínimo existencial, o qual abarcaria a moradia, educação e formação profissional, bem como um padrão mínimo de assistência médica. [70]

Das construções efetuadas pelo constitucionalismo pátrio, sobressai-se a arquitetada por Ingo Sarlet, onde analisando abordagens realizadas pela doutrina germânica, sublinha que a demarcação do padrão mínimo exigível dos direitos sociais é realizada pelo princípio da dignidade da pessoa humana, além de adotar substancialmente o modelo ponderativo de Alexy. [71] O posicionamento do Professor da PUC/RS pode ser sintetizado pela passagem abaixo transcrita:

Assim, em todas as situações em que o argumento da reserva de competência do Legislativo (assim como o da separação dos poderes e as demais objeções aos direitos sociais na condição de direitos subjetivos a prestações) esbarrar no valor maior da vida e da dignidade da pessoa humana, ou nas hipóteses em que, da análise dos bens constitucionais colidentes (fundamentais ou não) resultar a prevalência do direito social prestacional, poder-se-á sustentar na esteira de Alexy e Canotilho, que, na esfera de um padrão mínimo existencial, haverá como reconhecer um direito subjetivo definitivo a prestações, admitindo-se, onde tal mínimo é ultrapassado, tão-somente um direito subjetivo prima facie, já que – nesta seara – não há como resolver a problemática em termos de um tudo ou nada. [72]

Nesse diapasão, resulta que embora a limitação de recursos financeiros públicos estabeleça obstáculo fático à concretização judicial dos direitos fundamentais de segunda dimensão, aqueles que se encontrarem no mínimo existencial, ou seja, no núcleo indispensável à dignidade humana, são justiciáveis sob a forma de direitos subjetivos, o que caracteriza o padrão mínimo vital como cânone hermenêutico da tutela jurisdicional.

A resposta aos questionamentos de quais direitos sociais que são elevados a direitos subjetivos definitivos de prestação é deveras complexa e exigiria digressão incompatível com a natureza da pesquisa. Entretanto, como também não restaria recomendável a omissão, adota-se a sugestão de Ana Paula de Barcellos que insere no mínimo existencial a educação fundamental, saúde básica e assistência aos desamparados, salientando-se que de forma alguma se objetiva aqui traçar conclusão definitiva em face da aguçada controvérsia intrínseca ao tema.

Quanto aos demais direitos prestacionais, embora não possam ser tutelados judicialmente sob a forma de direitos subjetivos, há quem sustente que poderiam ser objeto de apreciação judicial como aspirações à implantação de políticas públicas na sua dimensão coletiva. [73]

Sobre o autor
Daniel Bofill Vanoni

Advogado. Especialista em Direito Público. Pós-graduando em Direito e Processo do Trabalho.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VANONI, Daniel Bofill. Os direitos sociais na Constituição Federal de 1988.: Em busca de um modelo dogmático de tutela judicial dos direitos fundamentais de segunda dimensão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1793, 29 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11318. Acesso em: 23 dez. 2024.

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