Até onde a história das democracias liberais nos tem ensinado, toda comunidade que se propõe a abrigar pessoas portadoras das mais diversas raízes culturais não pode ter entre suas crenças e desejos comuns mais do que um mínimo capaz de, ao mesmo tempo, ser compatível com as concepções plurais de vida e possibilitar a constituição da coletividade. As guerras religiosas européias ocorridas na Idade Moderna e a pluralidade cultural das sociedades atuais sugerem que seria uma péssima idéia ter entre esse mínimo comum qualquer opinião religiosa. São esses, segundo penso e em apertada síntese, os motivos pelos quais o Estado brasileiro, fortemente influenciado pelas democracias do além-mar, escolheu na Constituição de 1988 trilhar o caminho da laicidade.
Entretanto, uma cultura não muda por decreto e nem mesmo através de uma Constituição. Mudanças sociais solidamente construídas, ou seja, aquelas que passam a compor a identidade coletiva dos cidadãos e cidadãs, exigem longo processo educativo. Não é, portanto, nem um pouco estranho a força do lobby da Igreja Católica, religião professada pela maior parte da população brasileira, contra a aprovação da pesquisa e uso terapêutico de células-tronco (considerando que tais experimentos são descritos pelos religiosos como violando o dogma da vida). Certamente existem católicos que se manifestaram a favor da pesquisa com células-tronco, mostrando que não há unidade entre os fiéis, mas a posição a que me referi acima é da cúpula da Igreja. Entretanto, essa observação foge à questão que gostaria de discutir nesse artigo. O que me interessa, como jurista e cidadão de uma democracia que ainda está engatinhando, é discutir os limites da apreciação do tema "células-tronco" pelo STF (Supremo Tribunal Federal) – ADIN (Ação Direta de Inconstitucionalidade) nº 3.510 –, notadamente no que toca a uma questão bastante específica: quando começa a vida. Meu intento é argumentar que o exame dessa questão não pode de forma alguma ser compatível com a laicidade do Estado brasileiro e, portanto, não poderia ser examinada pelo Tribunal, e que tal postura é imprescindível para o desenvolvimento da nossa democracia e para o respeito à pluralidade constitutiva da sociedade brasileira.
A religião cuida de satisfazer desejos que a humanidade vem cultivando ao longo de sua história (tais como dar razão para vidas individuais, transcender a existência terrena etc.) e que, só recentemente, começou a aprender a viver sem. Essa novidade, entretanto, atingiu primordialmente os países cujos(as) cidadãos(ãs) têm tanto tempo suficiente pra cuidar de outras coisas além do próprio sustento quanto dinheiro bastante para investir em pessoas que vivem apenas de discutir crenças socialmente compartilhadas e propor mudanças. Para um país como o Brasil, no entanto, esses ainda são "luxos" acessíveis apenas a uma pequena parcela da população. Ao contrário, por essas terras, nas quais miséria e pobreza só encontram adversários à altura na fé religiosa, e nas quais a precariedade da educação pública priva a maioria dos jovens do aprendizado de como viver numa democracia constitucional laica, as crenças herdadas de tempos imemoriáveis ainda predominam largamente, deixando pouquíssimo espaço para a paulatina, mas produtiva, construção de uma cultura social condizente com as novas concepções constitucionais. Mas a formação precária não é martírio que atinge apenas as classes menos abastadas. Muitos dentre os que tiveram o "privilégio" de terminar um curso universitário ainda não sabem separar suas crenças e desejos privados dos que caracterizam e constituem o espaço público.
Essa digressão cultural, unindo religiosidade e ausência de educação democrática, laica e plural, torna fácil construir um quadro no qual a opinião pública pensa ser inevitável ao STF, para decidir a questão sobre as células-tronco, iniciar por discutir quando começa a vida. No entanto, desde quando o Estado brasileiro (leia-se: as instituições públicas) não tem religião, essa seria uma questão que não poderia, em hipótese alguma, entrar em discussão.
Dizer que o Estado é laico não é o mesmo que dizer que o povo não tem religião, ou que qualquer funcionário(a) público(a) não possa tê-la. É tão simplesmente considerar que, no exercício das suas funções públicas, como agente do Estado, ninguém pode manifestar qualquer crença religiosa. Mas essa é uma lição que até mesmo o Poder Judiciário precisa aprender; basta ir aos auditórios do Tribunal Regional Eleitoral e do Tribunal de Justiça do Piauí para ver as imagens do Jesus crucificado (talvez até compradas, para aumentar o absurdo, com dinheiro público).
Questões em torno de crenças religiosas, filosóficas (tais como "qual a natureza humana"), artísticas ou científicas, por dizerem respeito à individualidade das pessoas e por serem absolutamente irrelevantes para o espaço da convivência pública (as crenças e desejos comuns), não podem ser objeto de deliberação pelo Estado em nenhuma ocasião (a não ser, claro, quando direitos de outras pessoas ou coletividades são violados por meio delas). A discussão sobre quando começa a vida está compreendida nessa proibição, e isso não é algo ruim. Não é porque, desde quando temos aprendido que uma das formas de humilhar e degradar pessoas é afirmando a inferioridade das suas identidades (nas quais se incluiu a religião) em relação a algum modelo pré-fixado – em geral pelo Estado com base nas convicções da maioria da sociedade –, então deveríamos ter por certo que questões desse tipo não interessam a mais ninguém, a não ser aos indivíduos e aos grupos que eles formam voluntariamente.
Então, como poderiam os ministros do STF julgar a constitucionalidade (adequação à Constituição) das pesquisas com células-tronco sem questionar-se sobre quando começa a vida (considerando que o direito à vida é o parâmetro constitucional)? Não sei bem qual seria a melhor resposta para essa questão, por isso gostaria de colocar meu artigo como primordialmente afirmando o que não poderia ser discutido. Entretanto, tenho uma sugestão a fazer. Os ministros poderiam arbitrar se células-tronco são vida (e, portanto, invioláveis) tanto quanto uma criança recém-nascida ou uma pessoa adulta o são. Isso não é o mesmo que estabelecer quando começa a vida, o que, como venho dizendo, é uma questão para a qual a Igreja Católica, a Ubanda e os Presbiterianos podem ter respostas diferentes, sem que nenhuma delas seja a "melhor" (no sentido da que deva conduzir a ação das instituições públicas). É tão simplesmente comparar e disctuir, algo que não requer nenhuma "grande compreensão filosófica ou religiosa", mas tão somente capacidade de argumentar e demover opiniões. Dessa forma é que, numa democracia, os assuntos de relevância pública são resolvidos, e não através do apelo a nenhuma entidade transcendental ou mística.
Mas afirmar ser apenas o diálogo livre e aberto a dar corpo, em cada período histórico, ao que a Constituição expressa em termos vagos (como o "direito à vida" – art. 5º), é o mesmo que considerar que, daqui a – quem sabe – 10, 20 anos, talvez as células-tronco sejam consideradas vida e, portanto, seja determinada a cessação das pesquisas. Sejam como forem as coisas nesse tempo hipotético, se conseguirmos manter e desenvolver nossa democracia, a decisão que o STF tomou recentemente liberando as pesquisas (dentro dos limites da Lei de Biossegurança) seria modificada, suspeito, não porque alguém "descobriu" quando "verdadeiramente" começa a vida, mas por algo bem mais palpável como a falta de ética científica ou o fracasso das experimentações. De toda forma, não estaremos delegando o poder de decisão sobre o futuro do nosso país senão a nós mesmos e a nossa capacidade de convencimento através do diálogo plural, tanto embora, quem ainda for católico nesse tempo, possa dirigir-nos o dedo enriste ao tempo em que impreca nossa "blasfêmia". Blasfemos sim, mas, espero, felizes por termos decidido de forma livre e plural, sem ter nenhuma obrigação senão com as opiniões dos(as) nossos(as) concidadãos(ãs).