1. Introdução
A literatura jurídico-constitucional é extremamente escassa no que tange ao conteúdo jurídico do princípio do Estado Laico, que, quando muito, costuma ser citado vagamente, quando não ignorado. O enfoque que costuma ser dado no que tange às relações entre Estado e religiões costuma ser a liberdade religiosa (que sem dúvida é um dos aspectos da laicidade estatal). À exceção de artigos esparsos, não há uma literatura jurídica consolidada sobre o tema.
Ademais, no Brasil a questão do respeito ao Estado Laico costuma ser invocada pelos seus defensores unicamente em questões pontuais, como a presença de adornos religiosos em órgãos públicos, criação/existência de feriados religiosos e custeio de despesas de eventos religiosos. Contudo, ao se oporem (diga-se, corretamente) a tais questões, os defensores do Estado Laico costumam meramente invocar o respeito à laicidade estatal sem, contudo, trazerem uma conceituação abstrata do referido princípio. Limitam-se a dizer que tais posturas afrontam o caráter laico do Estado, mas não explicitam qual seria o conteúdo jurídico do princípio do Estado Laico a embasar suas colocações.
Assim, o presente trabalho serve como contribuição à delimitação do conteúdo jurídico do princípio da laicidade estatal, de forma abstrata, com o fim de se poder apurar, em casos concretos, se dito princípio foi ou não efetivamente afrontado.
Aponte-se, apenas, que deliberadamente não enfrentarei temas específicos – como a presença de crucifixos/símbolos religiosos em estabelecimentos públicos, custeio de despesas de Instituições Religiosas e mesmo do Chefe da Igreja Católica em visitas oficiais ao Brasil e das concordatas (tratados firmados com o Estado do Vaticano), embora adiante minha conclusão no sentido de que todas essas questões são inconstitucionais por afronta ao princípio da laicidade estatal, por caracterizarem inequívoca aliança do Estado Brasileiro com a religião em questão. Mas, como cada tema merece considerações próprias que tornariam este artigo demasiadamente grande, prefiro tratar deles em trabalho diverso.
2. O que significa "Estado Laico"?
Cumpre, inicialmente, indagar o que significa a laicidade para, em seguida, apurar-se o conteúdo jurídico do princípio do Estado Laico. Mas, primeiramente, vejamos a classificação dos Estados de acordo com a sua relação com as religiões.
Estado Teocrático é aquele em que há confusão entre o Estado e religião, no sentido em que a religião adotada decidirá os rumos da nação – o termo decidirá é proposital, pois nas teocracias não há mera influência da religião nos rumos políticos e jurídicos do Estado, mas efetiva determinação no sentido de que os dogmas religiosos efetivamente pautarão as políticas estatais e as relações privadas. É o caso dos Estados Islâmicos. São Estados totalitários no que tange à religião e à moralidade, visto que não admitem nada que não esteja em absoluta sintonia com os dogmas da religião que se confunde com o Estado.
Estado Confessional é aquele que, embora não se confunda com determinada religião, possui uma religião oficial que pode influir nos rumos políticos e jurídicos da nação, além de possuir privilégios não concedidos às demais. Foi o caso do Brasil Imperial, cuja Constituição definiu a religião católica apostólica romana como religião oficial do país.
Estado Laico é aquele que não se confunde com determinada religião, não adota uma religião oficial, permite a mais ampla liberdade de crença, descrença e religião, com igualdade de direitos entre as diversas crenças e descrenças e no qual fundamentações religiosas não podem influir nos rumos políticos e jurídicos da nação. É o que se defende ser o Brasil sob a égide da Constituição Federal de 1988, em razão de seu art. 19, inc. I, vedar relações de dependência ou aliança com quaisquer religiões.
Estado Ateu é aquele que adota a negação da existência de Deus como doutrina filosófica e, portanto, não aceita que seus cidadãos manifestem suas crenças religiosas. Trata-se de um totalitarismo que se encontra no extremo oposto do totalitarismo teocrático: enquanto neste exige-se que todos façam parte e respeitem os dogmas da religião da instituição religiosa que se confunde com o Estado, naquele exige-se que todos não tenham nem professem nenhuma crença teísta. É o caso da China.
Assim, tem-se que laicidade é a doutrina filosófica que defende e promove a separação entre Estado e religião ao não aceitar que haja confusão entre o Estado e uma instituição religiosa qualquer, assim como não aceitar que o Estado seja influenciado por determinada religião.
A doutrina laica surgiu ou se fortaleceu em virtude dos abusos estatais cometidos em nome de crenças religiosas, como ocorrido na Idade Média, quando a Igreja Católica Apostólica Romana impunha seus dogmas a todos, sob pena inclusive de fogueira em casos que julgasse mais graves (através de julgamentos canônicos realizados pelo Tribunal da "Santa" Inquisição, o que fez com que se denomine este período histórico como "Idade das Trevas").
Deve-se ter em mente, contudo, que o Estado Laico não é um Estado Ateu, pois este proíbe toda e qualquer crença teísta, exigindo que todos sejam descrentes (que não acreditem em nenhuma crença teísta), ao passo que aquele permite que as pessoas escolham a crença teísta que lhes faça melhor sentido ou então que não adotem crença teísta nenhuma, sendo, portanto, descrentes, ateus.
Assim, pensado abstratamente, sem análise da forma de sua positivação pela ordem constitucional concreta (tema da maior relevância, como se mencionará no próximo tópico), o princípio da laicidade estatal impõe que o Estado: (i) não se confunda com nenhuma instituição religiosa, (ii) não institua nenhuma religião oficial; (iii) trate igualmente as diversas crenças e descrenças e, especialmente, (iv) não aceite fundamentações religiosas para definir os rumos políticos e jurídicos da nação.
3. Teoria constitucional constitucionalmente adequada
Cada ordenamento jurídico-constitucional possui particularidades oriundas das características de seus povos e, portanto, Constituições com características diversas entre si. Nesse sentido, cumpre lembrar da advertência de Canotilho no sentido de que a teoria da constitucional constitucionalmente adequada é aquela que leve em conta o Direito Constitucional Positivo do ordenamento jurídico examinado [01]. Isso significa que de nada adianta se partir de uma teoria constitucional abstrata que não se enquadre no ordenamento jurídico-constitucional criado pelo Poder Constituinte Originário, que é juridicamente ilimitado para criar uma nova ordem.
Isso porque, como é basilar, a Constituição não está subordinada a nenhuma teoria pura/absoluta, pré-jurídica – em termos de normatividade jurídica, as teorias existem no âmbito normativo-constitucional de acordo com a forma como foram recepcionadas pela Constituição. É o caso, por exemplo, da livre iniciativa e da livre concorrência, que são expressamente condicionadas pela Constituição de 1988 pelos ditames da valorização do trabalho humano e da justiça social, o que é incompatível com a teoria liberal pura (do laissez-faire) sobre as mesmas. Isso significa que a livre iniciativa e a livre concorrência juridicamente válidas são distintas daquelas pensadas pelo liberalismo clássico.
Assim, além das considerações feitas genericamente no tópico anterior sobre a laicidade estatal, deve-se ver a forma como o princípio do Estado Laico foi positivado pela Constituição Federal para se apurar o real conteúdo jurídico do princípio da laicidade no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro. Isso é o que se empreenderá no próximo item.
4. O Princípio do Estado Laico na Constituição de 1988
Estabelece o artigo 19, incisos I e III da Constituição Federal:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvenciona-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
(...)
III – criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si. (grifos e destaques nossos)
Primeiramente, deve ser mencionado que a palavra "igrejas" deve ser lida no sentido de "instituições religiosas", através de interpretação extensiva, pois é evidente que o valor que o Constituinte Originário pretendeu preservar foi o da laicidade estatal como um todo – ou, para a teoria subjetiva, que o Constituinte Originário disse menos do que queria. Afinal, não há o menor sentido em se proibir o estabelecimento de "igrejas" mas se permitir o estabelecimento de "mesquitas" (judaicas), "salões" (testemunhas de Jeová), "templos" (budistas) ou outros similares. A interpretação teleológica do referido dispositivo constitucional deixa claro que a vedação se refere a instituições religiosas em geral, dada a ausência de lógica e racionalidade no pensamento em sentido contrário.
Com isso em mente, deve-se saber que esse é o dispositivo constitucional que consagra a laicidade estatal no Brasil. Para melhor compreendê-lo, é preciso que se busque o significado de aliança e dependência. Aliança significa uma união de esforços para se atingir determinada finalidade [02]. Dependência significa o estado de sujeição de uma pessoa (física ou jurídica) a outra [03].
Com esta compreensão, é preciso, assim, indagar se há compatibilidade entre dito dispositivo constitucional e a concepção abstrata de laicidade exposta no item 2 deste artigo, no sentido de que Estado Laico é aquele que não se confunde com determinada religião, não adota uma religião oficial, permite a mais ampla liberdade de crença, descrença e religião, com igualdade de direitos entre as diversas crenças e descrenças e no qual fundamentações religiosas não podem influir nos rumos políticos e jurídicos da nação.
A resposta a tal indagação é, inequivocamente, positiva. Com efeito:
(a) ao vedar a todos os entes federativos (ou seja, ao Estado) a manutenção de relações de "dependência" com instituições religiosas, proibiu-se a confusão oriunda entre Estado e Religião dos Estados Teocráticos (pois dita confusão supõe a dependência da administração estatal à religião da instituição com a qual o Estado se confunde). Ou seja, proibiu-se a teocracia;
(b) ao vedar ao Estado a manutenção de relações de aliança com instituições religiosas, proibiu-se a influência de fundamentações religiosas nos rumos políticos e jurídicos da nação, visto que se a religião for aceita como paradigma político e/ou jurídico a fundar decisões estatais, de qualquer dos Três Poderes, então ter-se-á uma relação de aliança com a religião respectiva. Ou seja, proibiu-se tanto o caráter teocrático quanto confessional de Estado;
(c) ao vedar o estabelecimento e a subvenção de cultos ou instituições religiosas pelo Estado, proibiu-se a adoção de uma religião oficial – pois, se isso fosse permitido, o Estado teria total liberdade para instituir os cultos ou instituições relacionados à religião tida como oficial. Ou seja, proibiu-se o caráter confessional e, portanto, também o teocrático de Estado (pois, segundo célebre princípio geral de Direito, proibido o menos também está proibido o mais);
(d) ao vedar o embaraço a cultos e instituições religiosas, o dispositivo constitucional ao mesmo tempo vedou o estabelecimento de privilégios a qualquer religião e, ainda, deixou claro que não se trata de um Estado Ateu, pois a ideologia deste último é a de proibir qualquer manifestação teísta (ao menos pública) por parte da comunidade (que, no máximo, pode ser tolerada). Ou seja, vedou-se tanto o caráter ateu, confessional e teocrático de Estado;
(e) ao vedar a criação de distinções ou preferências de brasileiros entre si, proibiu-se o estabelecimento de privilégios (ou seja, vantagens abusivas, arbitrárias) entre as diversas religiões entre si – pois, do contrário, os brasileiros pertencentes à religião privilegiada terão tido a si atribuída preferência em relação àqueles que professam as demais religiões, o que inequivocamente afrontará a isonomia [04].
Como se percebe da análise pormenorizada do citado dispositivo constitucional, restaram vedados os conceitos teocrático, confessional e ateísta de Estado, só tendo sobrado o conceito laico a reger o país, conclusão a que se chega também e especialmente pela interpretação sistemática deste dispositivo com aquele que consagra a liberdade de consciência, a liberdade de crença, o livre exercício de cultos religiosos, a proteção, na forma da lei, dos locais destes e suas liturgias [05]; e a proibição de privação de direitos por motivo de crença religiosa (ressalvado o caso de negativa tanto de cumprimento de obrigação legal quanto de prestação alternativa fornecida justamente em respeito à sua crença religiosa) [06].
Da mesma forma, ao restarem vedadas relações de dependência ou aliança entre Estado e instituições religiosas, isso também significa que o Estado está proibido de determinar a forma de gerenciamento interno de ditas instituições, que possuem total liberdade para se auto-organizarem estruturalmente e, igualmente, de se auto-determinarem dogmaticamente – o que significa que têm elas a liberdade para interpretarem sua fé da forma que mais sentido lhes faça. Ditas questões de gerenciamento interno são de exclusiva alçada das instituições religiosas, não podendo ser alvo de ingerência estatal.
As considerações feitas até aqui já seriam suficientes para encerrar o tópico, contudo é necessário enfatizar a proibição da utilização de fundamentações religiosas para pautar as posições políticas e/ou jurídicas da nação. Essa questão é a que considero da maior relevância, mas que não tem recebido a devida atenção da doutrina em geral.
Com efeito, a utilização de fundamentações religiosas para embasar discriminações jurídicas ou então para determinar os rumos políticos da nação institui relação de inequívoca aliança com a religião utilizada como fundamentação, na medida em que estabelece uma união entre Estado e Religião para a consecução de determinada finalidade – a saber: a prevalência da fé religiosa em questão no tema objeto de decisão, o que inequivocamente afronta o princípio da laicidade estatal constitucionalmente consagrado, por instituir a vedada relação de aliança com a religião usada como paradigma (além de também afrontar, por óbvio, a concepção abstrata de laicidade estatal, pelos mesmos motivos).
Note-se, ainda, que a parte final do próprio inc. I do art. 19 da CF/88, referente à colaboração de interesse público, na forma da lei, não tem o condão de afastar a proibição da utilização de argumentos religiosos para pautar fundamentações jurídicas. Isso porque a colaboração de interesse público somente se dará se a instituição religiosa estiver, coincidentemente, desenvolvendo uma atividade beneficente útil à sociedade, como no caso de projetos de alfabetização, de profissionalização etc. Essa colaboração não significa em momento nenhum que o Estado concorda, depende ou se alia com a fé religiosa respectiva. O que importa para a referida colaboração é o interesse público consistente no desenvolvimento, pela instituição religiosa, de uma atividade considerada útil pelo Estado para atingir um fim pretendido pela coletividade, sem nenhuma relação com a crença religiosa esposada por dita instituição, que não resta referendada pelo Estado. Nada mais.
Poder-se-ia indagar se o interesse da maioria da população na utilização de sua religião como paradigma jurídico poderia ensejar tal conseqüência. Contudo, a resposta é inequivocamente negativa. Com efeito, mesmo a maioria está sujeita aos ditames constitucionais. Afinal, a Constituição é a Lei Suprema do país, o documento jurídico que regulamenta e restringe a conduta de todos. A teoria constitucional, no seu atual entendimento, pauta-se justamente na imposição de textos normativos a toda a população, inclusive à maioria.
Em que pese a obviedade dessas colocações em atenção à teoria constitucional, o tema é inacreditavelmente polêmico. Com efeito, há quem entenda que a teoria constitucional assim entendida traria uma afronta à democracia caso seja entendida como limitadora da vontade das maiorias sociais através de suas cláusulas pétreas. Apontam que a maioria não poderia ser limitada pela Constituição sob pena de afronta ao princípio democrático. Contudo, tal posição é completamente descabida e falaciosa. É descabida porque a democracia existe na forma como foi constitucionalmente consagrada. É a Constituição Federal que define o conteúdo jurídico dos princípios nela consagrados, não o contrário, donde, repita-se, a democracia existe na forma como foi constitucionalmente consagrada e deve, portanto, ser compatibilizada com os demais valores constitucionais – como a laicidade. Por outro lado, é falaciosa porque a maioria não está nem um pouco impedida a fazer com que o país passe a vigorar de forma diversa daquela instituída pelas cláusulas pétreas. Basta que, para tanto, convoque uma nova Assembléia Nacional Constituinte e elabore uma nova Constituição Federal, sem as cláusulas pétreas que impedem a vontade majoritária (ou, no caso de cláusulas que não sejam pétreas, que consiga a maioria qualificada necessária para a alteração pretendida).
É de se notar, ainda, que plebiscitos não são formas de consulta ao Poder Constituinte Originário, aptas a superar as cláusulas pétreas, porque, nos termos da Constituição, plebiscitos são formas de elaboração de leis e, mesmo com interpretação teleológica extremamente benevolente, no máximo de emendas constitucionais que, contudo, devem respeitar as cláusulas pétreas da Constituição (afinal, o chamado Poder Constituinte Reformador é uma mera competência criada pelo Constituinte Originário, que resta, à evidência, limitado pelas cláusulas pétreas). Ou seja, na forma como foi concebido pela Constituição, o plebiscito não tem o condão de levar à superação das cláusulas pétreas, dentre as quais os direitos fundamentais.
Muito embora haja quem alegue que essa noção de cláusulas pétreas traria insegurança jurídica na medida em que não é possível prever os exatos resultados de uma nova Constituinte, acabar com essa compreensão de cláusulas pétreas e, portanto, com o núcleo material intangível da Constituição trará a mesma insegurança jurídica, na medida em que também é incerto o que as deliberações de maiorias ocasionais podem trazer a um sistema jurídico. O nazismo que o diga (visto que pautado em um regime de prevalência absoluta do legislador democrático, sem limitações materiais oriundas da Constituição). Portanto, para que não se permita uma verdadeira fraude constitucional, é preciso respeito às cláusulas pétreas da Constituição mesmo que contra a vontade da maioria, que, se quiser, deverá convocar uma nova Constituinte para elaborar uma nova Constituição sem a cláusula pétrea que proibia o que ela, maioria, desejava. O mesmo vale para as cláusulas constitucionais passíveis de emenda: são elas obrigatórias até que sejam alteradas pelo processo previsto pelo Constituinte Originário. Essa é a lógica do constitucionalismo: conclusão em sentido contrário implica na negação da própria noção de supremacia constitucional [07].
É de se notar, portanto, que a vontade da maioria não pode se sobrepor ao texto normativo constitucional, donde a proibição da utilização de argumentações religiosas para fundamentar validamente posições jurídicas não pode ser afastada pela vontade da maioria, especialmente porque a laicidade estatal é cláusula pétrea, por constituir direito individual dos cidadãos à não-influência por religiões alheias, direito este contido tanto na laicidade estatal quanto na liberdade religiosa, que também veda que as pessoas sejam influenciadas pela religião alheia. Vale lembrar aqui a lição de Canotilho e Vital Moreira no sentido de que a liberdade de religião garante, entre outros, o direito "de não ser prejudicado por qualquer posição ou atitude religiosa ou anti-religiosa" [08]. Ou seja, a liberdade religiosa veda peremptoriamente que se prejudique e/ou influencie uma pessoa com base na fé alheia.
Nesse sentido, cabe lembrar a advertência do Tribunal Constitucional Alemão, no julgamento do BVERFGE 93,1 (KRUZIFIX – 1BvR 1087/91), de 16/05/1995, de que a liberdade religiosa é um direito criado em benefício das minorias, para resguardar seu direito à crença e descrença, razão pela qual o fato da maioria da população ser de determinada religião não justifica a adoção de postura tendente a privilegiar uma fé religiosa em detrimento de outras (como a colocação de crucifixos em órgãos estatais o faz em benefício da fé cristã). Ou seja, o núcleo essencial do direito fundamental à liberdade religiosa abrange tão-somente o direito de seguir a crença teísta ou ateísta que melhor lhe convenha, sem, contudo, garantir um direito absoluto de externar tais convicções religiosas, que poderá ser restrito com base no princípio da proporcionalidade (e, portanto, seus sub-princípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito).
Tanto a laicidade quanto a liberdade religiosa constituem direitos individuais de todos os cidadãos, constituindo, portanto, cláusulas pétreas invioláveis, ao menos em seu núcleo essencial, sendo evidente restar afrontado o núcleo essencial do princípio da laicidade estatal no caso de utilização de fundamentações religiosas para pautar os rumos políticos e/ou jurídicos da nação, em virtude da inequívoca aliança decorrente de tal postura.
No mesmo sentido do aqui defendido, embora com desenvolvimentos próprios, é esclarecedora a lição de Daniel Sarmento [09] sobre a laicidade estatal, razão pela qual pede-se vênia para transcrevê-la:
A Constituição Federal de 88 não se limitou a proclamar, como direito fundamental, a liberdade de religião (artigo 5º, inciso VI). Ela foi além, consagrando, no seu art. 19, inciso I, o princípio da laicidade do Estado, que impõe aos poderes públicos uma posição de absoluta neutralidade em relação às diversas concepções religiosas. Este princípio não indica nenhuma má-vontade do constituinte em relação ao fenômeno religioso, mas antes exprime ‘a radical hostilidade constitucional para com a coerção e discriminação em matéria religiosa, ao tempo em que afirma o princípio da igual dignidade e liberdade de todos os cidadãos’ [Jónatas Eduardo Mendes Machado. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 347]
A laicidade do Estado, levada a sério, não se esgota na vedação de adoção explícita pelo governo de determinada religião, nem tampouco na proibição de apoio ou privilégio público a qualquer confissão. Ela vai além, e envolve a pretensão republicana de delimitar espaços próprios e inconfundíveis para o poder político e para a fé. No Estado laico, a fé é questão privada. Já o poder político, exercido pelo Estado na esfera pública, deve basear-se em razões igualmente públicas – ou seja, em razões cuja possibilidade de aceitação pelo público em geral independa de convicções religiosas ou metafísicas particulares. A laicidade do Estado não se compadece com o exercício de autoridade pública com fundamento em dogmas de fé – ainda que professados pela religião majoritária –, pois ela impõe aos poderes estatais uma postura de imparcialidade e eqüidistância em relação às diferentes crenças religiosas, cosmovisões e concepções morais que lhes são subjacentes.
Com efeito, uma das características essências das sociedades contemporânea é o pluralismo. Dentro de um mesmo Estado, existem pessoas que abraçam religiões diferentes – ou que não adotam nenhuma –; que professem ideologias distintas; que têm concepções morais e filosóficas díspares ou até antagônicas. E, hoje, entende-se que o Estado deve respeitar estas escolhas e orientações de vida, não lhe sendo permitido usar do seu aparato repressivo, nem mesmo do seu poder simbólico, para coagir o cidadão a adequar sua conduta às concepções hegemônicas na sociedade, nem tampouco para estigmatizar outsiders. Como expressou a Corte Constitucional alemã, na decisão que considerou inconstitucional a colocação de crucifixos em salas de aula de escolas públicas, ‘um Estado no qual membros de várias ou até conflituosas convicções religiosas ou ideológicas devam viver juntos só pode garantir a coexistência pacífica se se mantiver neutro em matéria de crença religiosa (...). A força numérica ou importância social da comunidade religiosa não tem qualquer relevância’ [cf. 93 BverfGE (1995)]
Esta afirmação pode parecer estar em contradição com a idéia fundamental nas democracias de que, inviável o consenso, as normas jurídicas devem expressar as convicções das maiorias. Mas a contradição é apenas aparente. Isto porque, o princípio básico subjacente à democracia é o de que as pessoas devem ser tratadas com igualdade. O princípio majoritário, pelo qual, diante da impossibilidade de consenso, deve-se recorrer ao voto, atribuindo-se peso igual à manifestação de cada cidadão (one man, one vote), não e outra coisa senão a transplantação para o cenário político-institucional da idéia de intrínseca igualdade entre os indivíduos. Mas as pessoas só são tratadas como iguais quando o Estado demonstra por elas o mesmo respeito e consideração. E não há respeito e consideração quando se busca impingir determinado comportamento ao cidadão não por razões públicas, que ele possa aceitar através de um juízo racional, mas por motivações ligadas a alguma doutrina religiosa ou filosófica com a qual ele não comungue nem tenha de comungar.
Na verdade, há muito tempo a idéia de democracia não se circunscreve à existência de eleições periódicas com respeito do princípio majoritário. Afirma-se, hoje, que a democracia pressupõe a existência de um espaço público aberto, em que as pessoas e grupos possam discutir sobre os temas polêmicos, prontas ao diálogo, reconhecendo-se reciprocamente como seres livres e iguais. A democracia exige deliberação pública e o seu objetivo não é – ou pelo menos não é exclusivamente – o de solucionar divergências contando votos. Presume-se, pelo contrário, que no processo deliberativo as pessoas manifestem-se buscando o entendimento e não a derrota do adversário. Pretende-se que, no espaço público, os cidadãos orientem-se pela busca do bem comum, e não pela defesa incondicional dos seus interesses pessoais ou de grupo. Almeja-se, enfim, que no debate franco de idéias inerentes a este processo, as pessoas eventualmente revejam suas posições originais, convencidas pelas razões invocadas pelo outro. Em suma, a democracia deve ser mais diálogo do que disputa; mais comunicação do que embate.
Ocorre que, neste ambiente, as decisões adotadas pelo Estado, como já se disse, devem ser justificadas em termos de razões públicas. Imposições que se baseiem não em razões públicas, mas em compreensões religiosas, ideológicas ou cosmovisivas particulares de um grupo social, ainda que hegemônico, jamais conquistarão a necessária legitimidade numa sociedade pluralista, pois os segmentos cujas posições não prevalecerem sentir-se-ão não só vencidos, mas pior, desrespeitados. A divergência tornar-se-á conflito e as bases de legitimação do Estado restarão comprometidas. E o pluralismo, não é demais recordar, mais que num indiscutível fato social, é também um dos fundamentos expressos da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso IV, CF).
Portanto, é imperativo, não só sob o prisma ético, como também sob a perspectiva jurídico-constitucional, que os atos estatais, como as leis, medidas administrativas e decisões judiciais, baseiem-se em argumentos que possam ser aceitos por todos os que se disponham a um debate franco e nacional – mesmo pelos que não concordarem com o resultado substantivo alcançado. Caso contrário, haverá tirania – eventualmente tirania da maioria sobre a minoria – mas jamais autêntica democracia.
Assim, é inequívoco que o Brasil é um Estado Laico que veda: (i) a confusão de Estado e qualquer instituição religiosa; (ii) a instituição de uma religião oficial; (iii) o estabelecimento de privilégios a determinada religião em detrimento das demais e, especialmente, (iv) a utilização de fundamentações religiosas para definir os rumos políticos e jurídicos da nação.