Desde a publicação da Lei n. 11.719/08, no bojo da mini-reforma do Código de Processo Penal - que acabou sendo realizada a retalhos, uma vez que, do previsto, resta ainda o Projeto de Lei n. 4.206/01, que impõe nova sistemática aos recursos e ações autônomas de impugnação, o Projeto de Lei n. 4.208/01, que modifica as medidas cautelares, e o Projeto de Lei n. 4.209, que trata do inquérito policial -, magistrados de todo o país têm buscado uma solução na operacionalização dos procedimentos para designação de audiências de interrogatório e instrução (anteriores à lei citada) e de interrogatório/instrução (posteriores à lei) durante o período de 60 (sessenta) dias de vacatio legis, já que, (i) aprazando-se audiência de interrogatório hoje para data posterior data da entrada em vigor da lei, a mesma terá que atender ao novo dispositivo legal que prevê audiência única de interrogatório e instrução (e possível julgamento) [1]; (ii) ao se pensar em aplicar, desde já, o novo regramento, depara-se com uma legislação ainda sem vigência.
Uma solução encontrada por muitos magistrados e que não me agrada é a de, nos processos onde os acusados respondem em liberdade, aguardar com o feito parado/suspenso até a entrada em vigor da nova lei. Não me parece que os acusados presos devam arcar com o ônus de uma legislação que não previu as particularidades desse período de transição.
Lembrando deste fato, acredito que os mentores intelectuais desta reforma, uma plêiade dos melhores processualistas, mais uma vez esqueceram de ouvir um dos principais atores do processo, o juiz. Infelizmente, essa tem sido uma prática constante nas reformas legislativas no nosso país. Raramente os juízes, que lidam diariamente com o processo, são consultados. Louvo nesse sentido a iniciativa recente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) de tentar incluir na Comissão de Reforma do Código de Processo Penal um representante da magistratura.
Enfrentamos atualmente o problema da transformação na sistemática processual das audiências com reflexo direto no direito de defesa do acusado. Nos revogados artigos do CPP que tratavam do interrogatório do réu e da audiência de instrução, ao ser recebida a denúncia ou queixa, era designado imediatamente o interrogatório do réu, ordenando-se a sua citação, a notificação do Ministério Público, e se fosse o caso, a do querelante e do assistente (art. 394). Ouvido, o réu teria o prazo de três dias para oferecer a sua defesa-prévia (art. 395), onde seriam apresentadas as testemunhas. Com a apresentação da defesa-prévia, era designada audiência de instrução para oitiva das testemunhas, sendo ouvido inicialmente as testemunhas arroladas pelo Ministério Público e em seguida as da defesa. Em regra, era designada uma primeira audiência para oitiva das testemunhas do Ministério Público e, uma segunda, na verdade, uma continuação da primeira, para oitiva das testemunhas de defesa. Esse era o procedimento adotado pelo Código de Processo Penal antes da reforma.
Agora, com a reforma, trazida pela Lei n. 11.719/08, oferecida a denúncia ou queixa, caso o juiz não a rejeite liminarmente, recebê-la-á [2] e determinará a citação [3] do acusado para responder à acusação no prazo de 10 dias. Após a análise da defesa, recebida a denúncia ou queixa, será designada audiência, no prazo máximo de 60 dias, onde serão ouvidos o ofendido (se houver), as testemunhas arroladas pela acusação e defesa, procedidos aos esclarecimentos dos peritos, as acareações, o reconhecimento de pessoas e, somente ao final, o interrogatório do acusado.
A alteração é substancial. Passamos de duas ou três audiências para uma audiência única, como já acontecia no caso dos crimes de tráfico de drogas, prevista na Lei n. 11.343/06. No entanto, com reforma, o legislador deu um passo a mais do que havia feito com a lei de drogas, concretizando o princípio constitucional da ampla defesa, ao prever o interrogatório do acusado como último ato da audiência [4].
O interrogatório é o ato dentro do processo onde o juiz ouve o réu sobre as imputações contra ele formuladas na denúncia. É o momento onde o réu exercita, pessoalmente, a sua defesa, dirigindo-se diretamente ao juiz, por quem é ouvido sem intermediários, proclamando, em toda sua plenitude, a sua autodefesa. Pode o réu, por ocasião do seu interrogatório, contestar os fatos ou versões colhidas no inquérito policial, confessar, produzir provas ou mesmo permanecer calado. Não obstante, apesar do seu nítido caráter de defesa, o interrogatório foi visto inicialmente muito mais como um meio de prova à disposição do juiz. Mesmo adotando o sistema acusatório, a teoria processual penal brasileira, num vento de autoritarismo oriundo da Europa da época, incluiu o interrogatório no capítulo das provas.
É notória, no entanto, a evolução do interrogatório, de ato exclusivo de prova, característico do sistema inquisitório, para um misto de defesa e prova, do sistema acusatório, onde o réu passa a ser sujeito da relação processual. Neste sentido, Magalhães Noronha nos diz que
"O interrogatório é concomitantemente meio de prova e meio de defesa, pois enquanto o acusado se defende, não deixa de ministrar ao Juiz, elementos úteis à apuração da verdade, seja pelo confronto com provas existentes, seja por circunstâncias e particularidades das próprias declarações que presta" [5].
Hoje, por força da própria modificação legislativa, mas antes disso, por pressão da doutrina e jurisprudência, o interrogatório sobreleva-se como importante meio de defesa a garantir tanto o contraditório quanto à ampla defesa assegurados constitucionalmente. Lembremos que, antes da reforma legislativa advinda com a Lei nº 10.792/03, o Supremo Tribunal Federal, seguido pelo Superior Tribunal de Justiça, entendia que não era necessária a presença do advogado e de sua intimação para o interrogatório judicial, uma vez ser ato pessoal do juiz, não estando sujeito ao contraditório.
Com a reforma de 2003, o interrogatório passa a ser, sobretudo, meio de defesa, podendo o réu permanecer calado, sem que isto importe em confissão ou prejuízo da defesa. Após a realização das perguntas pelo juiz, poderão as partes, o Ministério Público e a defesa, realizar perguntas ao réu. A partir da reforma de 2003, não se tem mais dúvida sobre a natureza do interrogatório judicial, encerrando o seu ciclo dentro do sistema acusatório como meio de defesa.
Certo que o interrogatório consiste no ato processual onde melhor se auferem as diferenças entre o método inquisitório e o acusatório, Ferrajoli vai afirmar que:
"no modelo garantista do processo acusatório, informado pela presunção de inocência, o interrogatório é o principal meio de defesa, tendo a única função de dar vida materialmente ao contraditório e de permitir ao imputado contestar a acusação ou apresentar os argumentos para se justificar" [6].
Souza Nucci, após nomear alguns defensores das quatro tendências que se formaram na doutrina nacional e estrangeira em torno da natureza jurídica do interrogatório, ou seja: (i) como meio de prova, fundamentalmente; (ii) como meio de defesa, sendo, em segundo plano, fonte de prova; (iii) como meio de prova e de defesa; e (iv) como meio de defesa primordialmente e, em segundo plano, meio de prova; esclarece a sua posição aderindo a esta última corrente:
"Note-se que o interrogatório é, fundamentalmente, um meio de defesa, pois a Constituição assegura ao réu o direito ao silêncio. Logo, a primeira alternativa que se avizinha ao acusado é calar-se, daí não advindo conseqüência alguma. Defende-se apenas. No entanto, case opte falar, abrindo mão do direito ao silêncio, seja lá o que disser, constitui meio de prova inequívoco, pois o magistrado poderá levar em consideração suas declarações para condená-lo ou absolvê-lo." [7]
Já há quem diga, inclusive, que o interrogatório passou a ser, com o advento da lei 10.792/03, agora reforçada pela Lei 11.719/08, meio exclusivo de defesa. Rodrigo de Melo, comenta precisamente a passagem de Nucci acima citada:
"Tal argumentação é igualmente falaciosa, na medida em que o magistrado poderá levar em consideração não só as declarações do acusado no interrogatório, como também as lançadas na sua defesa prévia e nas alegações finais, para proferir a sentença. A prevalecer tal posicionamento, fazendo o mesmo raciocínio, seríamos forçados a reconhecer os dois últimos atos aqui apontados (nítidos meios defensivos) como meios de prova, o que nos parece absolutamente inconcebível" [8].
O interrogatório, seja como meio primordial ou exclusivo de defesa, insere-se dentro do princípio da ampla defesa, trazendo, inclusive, para dentro de si, a possibilidade do contraditório. O princípio da ampla defesa encontra seu matiz ontológico no nosso sistema jurídico dentro da carta constitucional de 88 em seu artigo 5º, LV, que trata conjuntamente do contraditório: "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes". Antes mesmo, outras Constituições já haviam contemplado o princípio: 1824, art. 179, VIII; 1891, art. 72§ 16; 1934, art. 113, n. 24; 1937, art. 122, n. 11, segunda parte; 1946, art. 141, § 25; 1967, art. 150, § 15.
Insere-se a ampla defesa dentro daquelas garantias asseguradas ao acusado de um processo justo, como corolário do devido processo legal. Assim, mais que um direito, trata-se de verdadeira garantia ao acusado de se valer de todos os meios necessários à plenitude de sua defesa. Não é simplesmente o acesso a todos os meios legais, senão a criação destes meios de acordo com a necessidade de defesa real. Somente assegurar ao acusado que disponha de todos os meios previstos em lei para a sua defesa não é suficiente. Faz-se imprescindível que a legislação infra-constitucional possibilite ao agente todos os mecanismos necessários para a sua defesa. Mesmo a falta de previsão legal não deve ser empecilho à materialização da ampla defesa, daí porque a necessidade de uma interpretação da legislação processual penal conforme a Constituição.
Dentro do processo penal, a ampla defesa adquire uma conotação de ainda maior relevo, uma vez que a impossibilidade de refutação plena das provas produzidas pela acusação poderá redundar na responsabilidade penal do indigitado com o provável cerceamento de sua liberdade. Se no processo civil a defesa é considerada de suma relevância, dentro do processo penal torna-se a pedra de torque das garantias do cidadão. Neste sentido, Greco Filho nos afirma a importância da defesa no processo penal:
"o desenvolvimento e estrutura do processo penal, a garantia mais importante e ao redor do qual gravita é a ampla defesa, com os recursos a ela inerentes, sobre a qual convém insistir e ampliar" [9].
No processo penal, a ampla defesa constitucional é interpretada tanto como direito à defesa técnica, quanto à autodefesa. Precisamente dentro deste marco teórico é que se deu a reforma do Código de Processo Penal introduzida inicialmente pela Lei n. 10.792/03, adequando-o às exigências do princípio constitucional em comento. A defesa técnica é imprescindível à substancialização das garantias do acusado na medida em que lhe permite lutar em condições de igualdade com a parte adversa, na maioria dos casos um Ministério Público altamente qualificado. Esta defesa, além de necessária e indeclinável, não podendo o acusado a ela renunciar, deve ser efetiva, ou seja, não pode ser uma defesa apenas de faz de conta [10]. Ao acusado é assegurado o direito de escolha de seu defensor, não obstante, caibe ao juiz a fiscalização da defesa realizada. Se em algum momento o magistrado perceber que o agente se encontra com uma defesa deficiente, que lhe possa trazer prejuízo, cabe-lhe, de ofício, destituir o advogado da defesa do acusado, intimando-o para que indique outro defensor, ou no seu silêncio, nomear um dativo.
Voltemos ao interrogatório e sua inclusão, agora como elemento assentado não mais somente na doutrina e na jurisprudência, mas na própria legislação, como meio de defesa dentro da audiência. Tratando-se de matéria defesa, era de se esperar que o mesmo fosse realizado somente após a apresentação das provas da acusação como se dá nos juizados especiais. Na verdade, a localização temporal do interrogatório nos processos ordinários e especiais antes da produção da prova da acusação, sempre me pareceu contrária aos princípios norteadores da ampla defesa esculpidos nas Constituições Federais. Tanto é assim, que agora se corrige o equívoco. Mais do que isso, vale lembrar que desde a reforma do interrogatório em 2003, através da Lei n. 10.792/03, havia a previsão no projeto de lei da realização do interrogatório como último ato defesa. Infelizmente, o artigo que continha esta previsão foi excluído nas discussões do projeto.
"Uma ressalva importante: o projeto da Comissão de Reforma peneiro previa, no sentido da natureza jurídica de meio de defesa, que o ato do interrogatório deveria ser realizado após a prova oral colhida (testemunhas, vítimas, informantes, etc.), ou seja, o réu conhecia primeiro de toda prova oral e, após, prestaria seu interrogatório. Todavia, esta mudança não ocorreu, permanecendo o interrogatório onde sempre esteve no CPP: primeiro ato instrutório nos crimes apenados com reclusão (rito ordinário) e detenção (rito sumário)" [11]
A ampla defesa, assegurada através da realização do interrogatório do acusado após a colheita das provas orais, materializa-se na oportunidade de conhecimento de todos os fatos que lhe são imputados e, não somente, aqueles trazidos com a denúncia. É certo que a judicialização da prova inquisitorial trás elementos de suma importância à solução da lide penal e que, muitas vezes, não estão explicitamente contidos na denúncia. A ampla defesa, assim, somente é assegurada primeiro, com a completa transparência da imputação que lhe é feita, não somente com a denúncia, mas com as provas judiciais colhidas em audiência; e, segundo, com a possibilidade de refutação das provas até então apresentadas. Se o interrogatório é, como vimos, a principal forma de defesa do acusado, é mister que o mesmo se realize após o conhecimento das provas contra si existentes.
O contraditório que se forma com o interrogatório (e não no interrogatório, com as reperguntas – agora perguntas) é essencial à dialeticidade do processo. Primeiro, ouve-se a acusação e, depois, se oportuniza ao acusado momento para a sua defesa. A ampla defesa consiste, no caso, não somente na possibilidade do acusado produzir todos os meios permitidos em lei para a sua defesa, proporcionando, como vimos, a defesa técnica efetiva, mas também na autodefesa, que deverá dar-se sempre após a produção de provas da acusação.
Pensar na realização da defesa antes de esgotada as provas da acusação, ou seja, antes do conhecimento pleno do que se imputa ao acusado, representa uma ofensa direta ao princípio da ampla defesa. Neste sentido, comentando especificamente sobre o tribunal do júri:
"Ressalte-se que é imprescindível para o perfeito exercício da ampla defesa que o acusado manifeste-se sempre depois da acusação e, especificamente, no rito do Tribunal do Júri poderá o juiz nomear novo defensor ao réu, quando o considerar indefeso (art. 497, incico V, CPP" [12]
Assim, parte da reforma do CPP trazida pela lei 11.719/08 veio a corrigir esta flagrante inconstitucionalidade, ou seja, a produção da prova de defesa anterior à de acusação, maculando o princípio da ampla defesa esculpido no art. 5º LV da Constituição Federal. Ocorre que, infelizmente, o legislador, acreditando ser necessário um certo tempo para o conhecimento e adaptação da nova legislação, optou por um período de vacatio legis de 60 dias, prolongando, dessa forma, a ofensa ao direito a ampla defesa do acusado.
Uma das melhores soluções que me apresenta para a correção desta distorção é a aplicação imediata da nova lei, naquilo que for mais benéfico ao acusado, e que corrija qualquer ofensa às garantias constitucionais. Com isto se estará reforçando a idéia de um processo penal constitucional sem máculas.
No Direito Penal, ainda que o princípio seja o do tempus regit actum, a final de contas a lei rege, em geral, os fatos praticados durante a sua vigência, há no próprio diploma legal, para harmonizar-se com o princípio da reserva legal, a previsão da possibilidade da norma jurídica atingir fatos ocorridos antes do início de sua vigência (retroatividade), ou posteriores à sua revogação (ultratividade). Não nos cabe aqui discorrer sobre todos os aspectos da lei penal no tempo, senão destacar que tanto a retroatividade, quanto a ultratividade se estabelecem apenas para a lei nova mais benigna (lex mitior), o que se depreende em parte, de comando constitucional (art. 5º XL).
A aplicação imediata de novas leis penais mais benéficas ao réu, ainda que durante o período de vacatio legis, é uma realidade na nossa doutrina e jurisprudência. Silva Franco, citando Raggi, já citado por Nelson Hungria diz que "a lei em período de vacatio não deixa de ser lei posterior, devendo, pois, ser aplicada desde logo, se mais favorável ao réu" [13]. Continua, ainda, desta vez citando artigo de sua autoria:
"Entendimento contrário conduziria a uma situação de flagrante iniqüidade e daria azo a atos judiciais de puro arbítrio. Apenas porque a lei posterior foi deferida na sua vigência por deliberação do legislador ordinário, como possa admitir eu uma pessoa possa permanecer presa por fato que, após a sua prática, deixou de ser havido como criminoso, ou deixe de receber favor legal que minimize a pena imposta ou, de qualquer modo a beneficie?" [14]
Da mesma forma tem se posicionado a nossa jurisprudência:
"Dado o caráter de garantia constitucional do cidadão, o princípio de aplicação aos réus criminais da lex mitior não pode sofrer protraimento, que ocorreria se aguardasse o vencimento da vacatio legis para a sua incidência" TACRIM – SPVCP – Rel. Adauto Suannes – RT 589/329).
Será então possível utilizar o mesmo raciocínio para a aplicação da nova lei 11.719/08, que ainda se encontra em período de vacatio legis? Acredito que a resposta deva ser positiva para todas as situações em que se tem um favorecimento do acusado e afrontamento a suas garantias constitucionais.
Todos nós sabemos que a regra que rege os atos processuais penais é aquela esculpida no art. 2º do Código de Processo Penal: "A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior". Adotamos o princípio do tempus regit actum, da mesma forma que as leis penais, ou seja, de aplicação imediata das normas processuais penais sem, no entanto, terem o efeito retroativo comum àquelas, do contrário, ter-se-ia que anular os atos anteriores o que acarretaria ao processo muito mais transtornos que soluções. Destarte, como conseqüência imediata deste princípio, o fato de que os atos processuais realizados sob a égide da lei anterior serão considerados válidos, aplicando-se a lei nova somente após a sua vigência e para os atos a partir de então, respeitando, obviamente, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Esta é a regra geral dentro da processualística penal que, no entanto, encontra particularidades, no direito material.
A regra, portanto, é a da aplicação imediata da lei processual, impossibilitada a sua retroatividade, até para salvaguardar os atos processuais findos que não devem ser atingidos por modificações posteriores. Ocorre, no entanto, que esta regra geral como, de sorte, quase todas as regras e princípios, sofre exceções. Principalmente quando a impossibilidade de retroação da lei nova vem a causar sérios prejuízos ao acusado.
Precisamente por conta da limitação temporal da atividade normativa processual, a doutrina começou a estudar a natureza das normas processuais e a identificar dentro daquelas essencialmente processuais, normas com natureza híbrida ou mista, ou seja, aquelas com natureza processual, mas com forte conteúdo de Direito Penal. Nucci, nos reporta que este conteúdo
"é extraído da sua inter-relação com as normas de direito material, isto é, são normalmente institutos mistos, previstos no código de Processo Penal, mas também no código Penal, como ocorre com a perempção, o perdão, a renúncia, a decadência, entre outros" [15].
Sholz, por seu turno, afirma que ainda que sobre a roupagem de normas processuais, muitas apresentam verdadeiro caráter material:
"As normas que repercutem, direta ou indiretamente sobre a liberdade do cidadão, contemplando medidas que tratem, originariamente ou não, da sua privação antes do transito em julgado da decisão, são normas apenas formalmente processuais, mas essencialmente materiais, independente do caráter da legislação que contenha" [16]
Assim, com as normas processuais de natureza jurídica híbrida, ou seja, processual e material, não ocorre a limitação do art. 2º do CPP. Estas normas, exatamente por sua relação com o Direito Penal, excetuam o princípio do tempus regit actum e podem vir atingir fatos ocorridos mesmo antes de sua vigência, em conformidade com o parágrafo único do artigo 2º do Código Penal, recepcionado pelo art. 5º XL, da Constituição Federal.
O maior problema reside em se saber exatamente quais são estes tipos de normas como lembrou Fernando Capez:
"Tarefa difícil é, entretanto, fazer essa identificação. A norma terá caráter penal material quando versar sobre o direito de punir do Estado (tanto em sua forma abstrata quanto em seu aspecto concreto, isto é, como pretensão punitiva), criando-o, extinguindo-o, modificando-o. Assim, normas relativas ao direito de representação, à prescrição, à decadência e à perempção serão, concomitantemente, penais e processuais penais (PC, art. 107, IV). Vê isso nas discussões em torno da Lei n. 9.099, que transformou as infrações de lesões corporais leves e de lesões culposas em crimes de ação penal pública condicionada à representação (art. 88). Do mesmo modo, normas que dizem respeito à progressão de regime, por ampliarem ou restringirem a satisfação do direito de punir do Estado, implicando maior ou menor rigor no cumprimento da pena, têm natureza preponderantemente penal, devendo submeter-se ao princípio constitucional da retroatividade in mellius." [17]
Nucci, tentando clarificar esta distinção, afirma que:
"além dos institutos dupla previsão (penal e processual), existem aqueles vinculados à prisão do réu, merecedores de serem consideradas normas processuais penais materiais, uma vez que se referem à liberdade do indivíduo" [18]
Na verdade, não se tem, e obviamente não se poderia ter, uma delimitação perfeita dos contornos materiais de uma norma processual penal, impossibilitando uma certeza quanto à carga penal necessária à configuração da natureza híbrida de tais normas. Por tal razão, acredito que todas as normas que se referem ao direito de defesa assegurado constitucionalmente, por trazerem repercussão direta no status libertatis do cidadão, tenham um conteúdo substancial. Se eu limito, por exemplo, a possibilidade de prova da inocência de um cidadão, eu estou, claramente, atentando contra a sua liberdade.
No entanto, mais do que saber se a norma processual possui ou não uma carga material, o importante é reconhecer se a aplicação desta norma, ainda que de caráter processual, vai trazer benefícios impostergáveis ao acusado. Somente assim, se estará aplicando em toda a sua largueza o princípio da dignidade da pessoa humana. Recusar a qualquer pessoa que responde um processo criminal a aplicação imediata das vantagens de uma nova lei mais benéfica é atentar contra a sua dignidade por mero apego à letra da lei. Não estou falando aqui em retroatividade de lei processual mais benéfica, senão em aplicação imediata de uma lei que garante ao acusado o melhor exercício de sua defesa.
Conforme já restou demonstrado, o direito à ampla defesa, assegurado constitucionalmente, garante a todo cidadão um processo justo, onde haja paridade de forças e onde ele possa exercer em plenitude a sua defesa. O interrogatório, como elemento essencial dessa defesa, deve ser oportunizado ao fim da produção de provas da acusação, consagrando a dialeticidade do processo, assegurando um verdadeiro contraditório. Assim também a apresentação da defesa-prévia anterior ao interrogatório ao acusado. Sobre o contraditório e a igualdade processual o STJ assim se pronunciou:
"o princípio do contraditório, com assento constitucional, vincula-se diretamente ao princípio maior da igualdade substancial, sendo certo que essa igualdade, tão essencial ao processo dialético, não ocorre quando uma das partes se vê ceceada em seu direito de produzir prova ou debater a que se produziu (STJ – 4ª T – Resp. n. 998-A – Rel. Ministro Sávio de Figueiredo – Ementário STJ n. 1/378)
As inovações, como vimos, foram trazidas pela nova reforma do Código de Processo Penal que, no entanto, encontram-se, dentro da ótica deste magistrado, equivocadamente engessadas em razão de uma vacatio.
Vicente Cernicchiaro, comentando a aplicação da lei penal durante o período de vacatio legis, vaticina:
"Também aqui deve ser atendida a teleologia da norma. Cumpre sacrificar o aspecto meramente formal. Sem dúvida, a vigência é indispensável para gerar a obrigação ao destinatário para conduzir-se de acordo com o imposto pela lei. A Vacatio legis é estabelecida para favorecer as pessoas. Instituo desta natureza não pode gerar efeito oposto, ou seja, gerar prejuízo, gerar ônus." [19]
O mesmo pode se dizer da vacatio legis em relação ao direito processual. Não é o objetivo da vacatio causar qualquer prejuízo às partes. Ao contrario, o seu fim, como dito, é assegurar pleno conhecimento da lei e assim sua melhor aplicação. Em sendo vantajoso para o acusado, não há porque não se aplicá-la desde logo, apegando-se a mero formalismo legal. Principalmente, no caso sobre o qual nos debruçamos, onde as normas a serem modificadas apresentam-se disformes aos mandamentos constitucionais. Para que adiar ainda mais a agonia de uma norma que afronta a Constituição Federal? Porque estender os seus efeitos deletérios sobre os cidadãos se sua morte já é anunciada? Assim, o mero apego a um formalismo legal, causando lesão às garantias do acusado de um processo justo, entra em choque com a própria Constituição, uma vez que posterga direitos fundamentais do acusado.
"Já não se pode dizer que os direitos fundamentais só têm real existência jurídica por força da lei, ou que valem apenas com o conteúdo que por esta lhes é dado, porque a Constituição vincula positivamente o legislador e uma lei não terá valor jurídico se atentar contra norma constitucional que consagra um direito." [20]
Comentando essa passagem Silva Franco arremata que:
"Tal postura significa uma substancial mudança de enfoque no relacionamento entre Constituição e a lei, pois na medida em que os princípios consagradas na Constituição dispensam a mediação legislativa é obvio que não são mais (agora citando Canotilho) ‘os direitos fundamentais que se movem no âmbito da lei, mas é alei que se deve manter no âmbito dos direito fundamentais (José Joaquim Gomes Canotilho, direito Constitucional, Coimbra, 1983, p. 489" [21].
Devemos, pois, realizar uma interpretação do instituto da vacatio legis, em conformidade com a Constituição Federal. Se o direito à ampla defesa é um direito fundamental do cidadão, que lhe garante um processo justo, não devemos aguardar a entrada em vigor de uma lei que assegura um mandamento constitucional simplesmente para atender a uma mera formalidade que criada para trazer benefícios, no caso concreto, acaba por gerar um ônus absurdo. Nem se diga, o fato de que as denúncias-crime que hoje chegam aos juízes aguardam nas prateleiras a entrada em vigor da nova lei para serem despachadas, ou estão sendo ordenadas utilizando-se de uma norma que, em poucas semanas, já não mais existirá, e que, além de contrária a Constituição Federal, terá de ser renovada em face da nova legislação, causando ainda mais retardo na prestação jurisdicional. Assim que entendo que a única forma de obedecer o mandamento constitucional que garante um processo justo, dentro das balizas do contraditório e da ampla-defesa, é a aplicação imediata da Lei n. 11.719/08 no que diz respeito à designação de audiência única de interrogatório e instrução.
Notas
- Uma variante deste problema ocorrerá se já tiver havido o interrogatório do réu. Da mesma forma, será aprazada audiência de instrução, seguindo a legislação vigente, para data posterior ao dia 20 de agosto, quando a audiência já será única.
- Esse recebimento toma por base o disposto no novo art. 395 que prevê a rejeição da denuncia quando for: (i) manifestamente inepta; (ii) faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou (iii) faltar justa causa para o exercício da ação penal. O recebimento do art. 397, leva em consideração, a reposta do acusado delineada no art. 396, onde o acusado poderá argüir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa. difere do recebimento que ocorrerá posteriormente à apresentação da defesa-previa. O juiz deverá, ainda, por ocasião desse segundo recebimento, verificar se não é o caso de absolvição sumária do acusado (art. 397).
- Leia-se, no caso, notificação, como o faz a Lei n. 11.343/06, em seu art. 55, caput e o Código de Processo Penal, em seu art. 514. A citação deverá ocorrer somente após o recebimento da denúncia, passando a integrar a relação processual.
- Na verdade, não se trata de nenhuma novidade dentro da nossa sistemática processual penal. A lei dos juizados criminais, uma das mais inovadoras e garantistas do nosso ordenamento jurídico já determinava a realização do interrogatório como ultimo ato da audiência.
- NORONHA, E. Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 1971, p. 105.
- FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. Trads. Ana Paula Zomer Sica e outros. 2ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2006, p. 560.
- NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 3ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 372.
- CABRAL, Rodrigo de Melo. A Lei n. 10.792/03 e o novo modelo de interrogatório como meio de defesa no processo penal: uma abordabem doutrinária. Cfr.. em http://www.juspodivm.com.br/novo/arquivos/artigos/processo_penal/rodrigo-melo-cabral-modelo-interrogatorio-meio-defesa-proc-penal.pdf., acessado em 27.07.08
- GRECO FILHO, Vicente. Tutela Constitucional das Liberdades. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 110, apud. FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. 3ª ed. rev. atual. e ampl. 2002, p. 266.
- Idem. p. 272
- GOMES, Luiz Flávio e VANZOLINI, Maria Patrícia (coords). Reforma Criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 261.
- SOARES, Cristiane. Princípios Gerais do Direito Processual Penal. Cfr. em http://www.praetorium.com.br/?section=artigos&id=126, acessado em 26.07.08
- FRANCO, Alberto Silva e outros. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. 5ª ed. rev. e ampl. 2ª tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 48.
- FRANCO, Alberto Silva e outros. op. cit. p. 48
- NUCCI, Guilherme. Código de Processo Penal Comentado. 3ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p.62
- SHOLZ, Leônidas ribeiro. A eficiência temporal das normas sobre prisão e liberdade. Revista Brasileira de Ciências Criminais, Nº 14, p. 20, apud. MIRABETE, Julio Fabbrini e FABBRINI, Renato N., Manual de Direito Penal. Parte Geral. Arts. 1º a 120 do CP. Vol. 1. 24ª ed. ver. e atual. São Paulo: Editora Atlas, 2007, p. 54.
- CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 8ª ed. rev. e atualiz. São Paulo: Editora Saraiva, 2002.p. 49.
- NUCCI, Guilherme. op. cit., p. 62.
- CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Direito Penal na Constituição. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p. 70.
- VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os Direitos Fundamentais. Coimbra, 1983, p. 255, apud, FRANCO, Alberto Silva e outros. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. 5ª ed. rev. e ampl. 2ª tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 47
- FRANCO, Alberto Silva e outros. op. cit. pp. 47-48.