Resumo: Esta monografia analisa elementos importantes sobre os conflitos armados internacionais e os reflexos atuais para o Direito Internacional, destacando o papel das forças armadas nesse contexto. Visando estabelecer um embasamento histórico, são relembrados os principais aspectos sobre a evolução do Direito Internacional relacionada aos conflitos bélicos, desde os primeiros acordos até o arcabouço normativo que vem compondo o jus in bello. Também é observado como os conflitos pós-Guerra Fria e o fenômeno da globalização se inter-relacionam com a mudança de paradigma no conceito de soberania, que passou a ser flexibilizado em circunstâncias mais abrangentes, como as intervenções humanitárias. Abordam-se em seguida os reflexos para a paz mundial e para o Direito Internacional, decorrentes dos ataques terroristas aos Estados Unidos em 2001, observando a tentativa de alguns países em ampliar o conceito de legítima defesa preventiva, enfatizando também as ameaças promovidas por outros ilícitos internacionais, cometidos por entidades fortemente organizadas. Também é comentada a tendência do Sistema Internacional em retornar a um relacionamento interestatal caótico, eivado de incertezas e pragramtismo, similar ao estado da natureza divulgado por Thomas Hobbes no século XVII. Por fim, é estudado o papel das forças armadas nesse novo contexto, constatando a necessidade de alterações estruturais no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas.
Palavras-chave: Direito Internacional; Conflitos Armados; Globalização e Soberania; Terrorismo; Novas ameaças à paz mundial; Forças Armadas.
INTRODUÇÃO
A humanidade ainda não possui um consenso sobre a definição de guerra no Direito Internacional (MELLO, 1997, p. 106). A Carta das Nações Unidas só adota este vocábulo em seu preâmbulo, empregando no restante de seu texto diversos outros termos. Diante de tal quadro, ao longo deste trabalho adotaremos indistintamente como sinônimos os termos "guerra", "conflitos armados", "uso da força", "ruptura da paz", "atos de agressão", etc.
Nas últimas décadas, o mundo sofreu duas marcantes reviravoltas em sua história:
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a queda do muro de Berlim (1989), quase simultaneamente com a desestruturação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em 1991, simbolizando o fim do comunismo e aparentemente trazendo uma esperança de fim dos conflitos, fatos apontados por alguns historiadores como sendo o efetivo marco do término da 2ª Guerra Mundial; e
o ataque terrorista ao território estadunidense (11/SET/2001), que fez ficar ultrapassado o conceito tradicional de guerra, pois passou-se a incluir como um dos pólos não um Estado, mas uma estratégia de combate: o terrorismo.
A queda do muro de Berlim e a fragmentação da URSS simbolizaram o início de uma nova era, marcada por uma onda de otimismo internacional no tocante à possibilidade de eliminação dos conflitos armados e dos flagelos por eles trazidos.
Porém, em apenas uma década a era otimista mostrava sua curta passagem. Os ataques terroristas sofridos pelos Estados Unidos da América (EUA) geraram um novo conceito de guerra, em que não mais Estados soberanos entram em combate, mas de Estados contra uma atividade sem rostos. A comoção mundial que se seguiu aos ataques "respaldou" o acirramento de uma postura internacional unilateralista por parte dos EUA e acabou por enterrar de vez a euforia surgida dez anos antes, vindo a exacerbar ainda mais as tensões diplomáticas e os conflitos armados no planeta. O pragmatismo unilateral estadunidense na questão da invasão do Iraque em 2003 mostrou ao mundo que a Organização das Nações Unidas (ONU) encontra-se em um período de fragilidade e desprestígio (ou indiferença) e, com ela, todo o Direito Internacional construído pela humanidade.
Desde a invasão do Iraque a ONU, entidade criada justamente para coibir a ocorrência dos conflitos armados no mundo, se viu ignorada ante uma polêmica coalizão de poucos países, que empregaram a força contra um Estado, se proclamando como executores das resoluções daquela organização, sem no entanto contarem com seu respaldo formal. Esse conflito colocou em dúvida a capacidade da ONU em manter a paz no mundo, sofrendo a ameaça de ver sua legitimidade perder efetividade, ou mesmo passar a ser acusada de atuar somente quando não contrariar os interesses das grandes potências.
Todos esses acontecimentos trouxeram significativas mudanças nas relações internacionais. Diversos doutrinadores do Direito Internacional (DI) vinham reconhecendo a limitação da soberania dos Estados em face do atual ordenamento jurídico internacional no tocante aos direitos humanos, além da crescente interdependência das relações comerciais. Entretanto, esse paradigma parece estar ameaçado de grave retrocesso, podendo vir a prevalecer o pragmatismo da soberania irredutível reinante séculos atrás, quando o Tratado de Westfalia (1648) estabeleceu uma ordem mundial que tinha nas guerras interestatais sua razão de ser.
Desta forma, é de suma importância refletir sobre as ameaças que pairam sobre o DI estabelecido e o Conselho de Segurança da ONU, cujos guardiões são as Forças Armadas dos países-membros daquela organização intergovernamental.
Este trabalho pretende levantar a situação atual do Direito Internacional frente às ameaças à paz mundial e qual o papel das Forças Armadas nesse novo contexto.
Partindo-se de uma descrição sumária da evolução do Direito Internacional nos conflitos armados, serão abordados aspectos relevantes do ordenamento jurídico internacional em vigor, atinentes aos conflitos bélicos. Em seguida, serão comentados os debates atuais sobre o conceito de soberania com a consolidação do mundo globalizado. Também será feita uma análise sobre o impacto do ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 sobre o Direito Internacional, sendo, por fim, estudada a necessidade de uma alteração estrutural no Conselho de Segurança da ONU e o papel das Forças Armadas no contexto atual.
1. EVOLUÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL NOS CONFLITOS ARMADOS
A ocorrência de guerras provavelmente se deu desde que os agrupamentos humanos se organizaram em tribos e povos, passando a ter interesses em conflitos. Há registros históricos da existência de cidades muradas, por conta de invasões nômades, já no período da dinastia chinesa Chou (1122-256 a.C.). A grande muralha da China, erguida na dinastia Qin (221-206 a.C.), é um marco vivo da remota existência das guerras.
No contexto europeu, as Guerras Médicas, dos espartanos contra os persas (480 a.C.) e depois daqueles contra os atenienses, nas guerras do Peloponeso (terminadas em 404 a.C.), as três guerras Púnicas, entre Cartago e Roma (264-241, 218-201 e 149-146 a.C., respectivamente), as incursões dos godos (séc. III a VI), hunos (séc IV a V ) e outros povos chamados "bárbaros" na pré-Idade Média, a desintegração do Império Romano (séc. V), são alguns outros exemplos de quão antigas são as ocorrências bélicas na humanidade.
Portanto, desde a antiguidade aparecem registros de conflitos bélicos ocorridos entre os povos, envolvendo razões políticas, culturais, econômicas, territoriais, sob diversas alegações, como recuperação de fronteiras históricas, destino manifesto, recuperação de espaço vital, interesse nacionais, purificação étnica, etc. Entretanto, na época das cidades-estado, ainda não se pode perceber algum tipo de regramento sobre a guerra, posto que a base cultural daqueles povos não admitia aos oponentes qualquer direito (COULANGES, 1998 apud CAMPANA, 2004, p. 13).
O historiador John Keegan tenta justificar a existência da guerra na humanidade:
A história escrita do mundo é, em larga medida, uma história de guerras, porque os Estados em que vivemos nasceram de conquistas, guerras civis ou lutas pela independência. Ademais, os grandes estadistas da história escrita foram, em geral, homens de violência, pois ainda que não fossem guerreiros - e muitos o foram -, compreendiam o uso da violência e não hesitavam em colocá-la em prática para seus fins (KEEGAN, 2006, p. 492).
Mesmo na Antiguidade, pode-se dizer que algumas linhas do Direito Internacional já iniciavam seu esboço. Na 1ª Guerra do Peloponeso, por exemplo, há registros de um acordo de paz com validade de 30 anos (446 a.C.), estabelecendo regras a serem seguidas durante o período sem atividade bélica, prevendo até a possibilidade do instituto da arbitragem (FUNARI, 2006, p. 29). Práticas costumeiras também aparecem nos conflitos do Peloponeso, como as alianças defensivas (FUNARI, 2006, p. 42), que poderíamos identificar como precursores dos atuais tratados de segurança coletiva.
Na Roma antiga surgiram as primeiras idéias sobre o conceito de guerra justa, invocada para promover a manutenção da chamada pax romana.
No mundo oriental, a filosofia de Confúcio também trazia alguma menção ao conceito de guerra justa.
Esse conceito de guerra justa, também defendido por Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.), veio a ser posteriormente retomado por Santo Agostinho (354-430 d.C.), que a admitia caso o conflito fosse conduzido em prol da paz. Este entendimento da guerra justa (pública) foi reforçado para combater as guerras privadas, que eram vistas com debilitantes do Sacro Império Romano Germânico (MELLO, 1997, p. 106).
Francisco de Vitória (1483-1546) e Algerico Gentili (1552-1608) [01] também utilizaram o conceito de justiça, ao questionarem a legitimidade da guerra (CERQUEIRA, 2005).
Deixando a dicotomia filosófica de Santo Agostinho entre fé e razão, mas seguindo ainda sua concepção sobre a guerra, Hugo Grotius [02] defendeu o conceito da legitimidade da guerra, dividindo-as em "justas" ou "injustas", conforme contribuíssem ou não para a paz internacional. Ele defendeu a liberdade dos mares como princípio das relações internacionais, visando à liberdade do comércio (CARNEIRO, 2006, p. 175). Grotius entendia a guerra como um status jurídico e um procedimento, pensamento que fomentou a doutrina clássica. A legitimação de um estado de guerra tinha diversos efeitos e, sobretudo, evitava prejuízos ao comércio internacional dos neutros (MELLO, 1997, p. 107).
Celso D. Mello nos ensina que estes conceitos preliminares da guerra e o costume internacional acabaram por converter o jus ad bellum (direito à guerra [03]) no jus in bello (direito na guerra), este entendido como o corpo de regras da guerra, ou seja, "as normas que regulam a conduta dos beligerantes na guerra" (MELLO, 1997, p. 118-119).
No contexto atual do direito internacional afeto aos conflitos armados, além do costume, citamos alguns tratados importantes, como a Declaração de Paris de 1856 (sobre a guerra marítima) [04], as Convenções e Protocolos de Genebra (1864 [05], 1929 [06], 1949 [07], 1977 [08], 1996 [09]), Declaração de São Petesburgo (1868, proibindo o uso de projéteis explosivos ou inflamáveis) [10], as diversas Convenções e Declarações de Haia (1899 [11], 1907 [12], 1954 [13]), as Convenções e Protocolos de Nova Iorque (1980 [14], 1992 [15]) e o Protocolo de Londres (1936 [16]). Finalmente, cabe também um destaque particular ao Pacto da Sociedade das Nações (1919) e à Carta das Nações Unidas (1945).
Uma forte tendência dos tratados relacionados aos conflitos e seus efeitos é não apenas definir regras básicas adotadas pelas partes em conflitos, mas também em humanizar as contendas. Até algumas décadas atrás, o Direito na Guerra era dividido por alguns doutrinadores em Direito de Haia (tratando dos meios e métodos de combate) e em Direito de Genebra (abordando as vítimas dos conflitos armados), que mais tarde viriam a ser incorporados pelo chamado Direito de Nova Iorque (segmento que trataria do desarmamento e limitação da proliferação de armas).
Esta divisão, além de inadequada, é também irrelevante. Celso Mello e Cançado Trindade, dois importantes estudiosos brasileiros do DI, observam ser uma tendência nos três segmentos citados acima uma corrente integracionista no tocante ao Direito Humanitário (MELLO, 1997, p. 141). Estruturalmente, podemos considerar as Convenções de 1949 e os Protocolos de 1977 como o corpo jurídico que compõe o Direito Internacional Humanitário. Celso Mello considera que os protocolos de Genebra de 1977 foram importantíssimos institutos, pois acabaram com a distinção entre Direito de Haia e Direito de Genebra (MELLO, 1997, p. 138).
2. QUEDA DO MURO DE BERLIM E A GLOBALIZAÇÃO: SOBERANIA LIMITADA?
A dinâmica do comércio internacional do mundo atual é caracterizada por uma complexa interdependência, fruto do fenômeno da globalização. Celso Mello avalia como definição mais completa desse fenômeno a emitida por Helmut Hesse, que considera ocorrer uma perda de importância nas fronteiras dos países, tendo em vista o entrelaçamento econômico a que estão submetidos, quer por conta da integração dos mercados, quer pela própria dinâmica da composição dos produtos finais, cujas cadeias de insumos são oriundas de diferentes partes do planeta (HESSE, 1997 apud MELLO, 1999, p. 21).
No passado, na era do escambo, as trocas comerciais eram bastante limitadas entre os povos. Com o surgimento da moeda, houve um incremento da atividade comercial, mas sua esfera de abrangência ainda ficou limitada, em função das dificuldades logísticas de então (produtos perecíveis, longas e custosas caravanas, ação de bandidos, etc.). Mas um capitalismo incipiente se instalava na cultura dos povos.
Com as inovações tecnológicas que possibilitaram a era das Grandes Navegações (bússola, astrolábio, naus, etc.), já no final da Idade Média, o planeta sofreu uma mudança no paradigma do comércio internacional, cujas trocas de produtos passaram a ser mais rápidas e a abrangência, a cada descobrimento, foi se tornando verdadeiramente global. Aqueles feitos marítimos criaram os pilares da globalização. No campo do Direito Internacional, um importante marco foi o Tratado das Tordesilhas (1494), firmado entre as duas potências marítimas da época (Portugal e Espanha), mas que tinha reflexos também para outras nações que se aventurassem pelas águas oceânicas. A ascensão das outras nações européias à condição de potencias marítimas e a dependência acarretada nas cortes européias com a nova dinâmica internacional protagonizaram algumas guerras entre esses Estados. Entrava em vigor o colonialismo, caracterizado pela tendência quase geral ao exclusivismo comercial entre metrópoles e colônias. A sociedade feudal do cenário europeu ia dando lugar à sociedade capitalista.
A Guerra dos Trinta Anos cessou com o Tratado de Westfalia (1648), que estabeleceu o Estado moderno, laico, baseado nos interesses dos soberanos e sem interferência da Igreja (MAGNOLI, 2006, p. 12) [17]. Passavam a imperar as razões de Estado e os interesses nacionais. No campo do Direito Internacional, um sistema de relações interestatais foi estabelecido por diversos acordos e tratados, sobretudo visando a livre navegação nos mares e buscando poupar o comércio internacional nas guerras, em um pressuposto de reciprocidades (CARNEIRO, 2006, p. 184).
A Revolução Industrial, com novas tecnologias de produção, tornou-se outro grande marco no comércio internacional. Entretanto, as especiarias e produtos primários trazidos da Ásia e do Novo Mundo passaram a compor uma ampla cadeia de produção, aumentando a acumulação de riqueza por parte dos empresários, contribuindo para o fortalecimento político da classe burguesa. Surgiam as primeiras teorias do liberalismo econômico e do livre mercado.
O Iluminismo antecedeu a Revolução Francesa e, com ela, vieram as Guerras Napoleônicas. Estas, por sua vez, fizeram ruir o sistema internacional estabelecido pelo Tratado de Westfalia. Porém, o equilíbrio de poder firmado pelo Congresso de Viena de 1815 promoveu um período de quase cem anos de relativa paz entre os principais Estados europeus (Inglaterra, França, Rússia, Prússia e Itália), que tiveram contendas por apenas cerca de 18 meses (MONDAINI, 2006, p. 215).
Já em meados do século XIX consolidavam-se grandes conglomerados econômicos. A dependência dos insumos estrangeiros fazia aumentar os anseios pelo monopólio dos meios de produção ou mesmo dos mercados consumidores. O colonialismo se transformara em imperialismo, incrementando os grandes conflitos de interesses entre diversos Estados.
As causas econômicas estão na origem de praticamente todas as guerras do século XIX e XX (e até mesmo do século XXI). A história registra que a tardia transformação dos povos germânicos e italianos em Estados unificados e seu conseqüente posicionamento como potências imperialistas acirrou as contendas territoriais, culminando na I Guerra Mundial (I GM). O desequilíbrio de poder provocado pela derrota da França na Guerra Franco-Prussiana (1870-71), com a ascensão da Alemanha como potência hegemônica, levou o planeta à primeira guerra de proporções globais, com as relações internacionais sendo dominadas por ameaças de violência pela realpolitik de Bismark, que considerava a guerra um aparelho da política estatal, como aliás observara o estrategista Karl von Clausewitz (VIDIGAL, 2006, p. 314). Na visão de Clausewitz, a guerra não seria um artifício a ser usado quando findados as esforços políticos, mas sim, um mais um instrumento a ser empregado pela política.
Após a I GM, apesar dos esforços defendidos pelo presidente estadunidense Woodrow Wilson na Conferência de Paris de 1919, pregando a criação da Liga das Nações, os líderes europeus pareciam estar mais interessados nos mapas de fronteiras e nas indenizações a serem estabelecidas (MOGNOLI, 2006, p. 10). O Tratado de Versalhes impôs pesadas perdas aos vencidos. A tradição belicosa dos Estados europeus, instituída pelas disputas territoriais das monarquias e embasada nos conceitos realistas de Maquiavel, imprimiu os europeus ao estabelecimento de uma situação de desequilíbrio entre vencedores e vencidos, mantendo acesos focos de conflitos iminentes, que vieram a promover a II Guerra Mundial (II GM).
A II GM, portanto, pode ser encarada como uma continuação da primeira, cujas principais contendas não ficaram resolvidas de forma equilibrada, sendo inevitável o recrudescimento das tensões [18].
Os horrores de uma guerra de proporções mundiais como a I GM trouxeram uma importante contribuição ao Direito Internacional, com o Pacto de Briand-Kellog [19], condenando a guerra como ação política na solução de conflitos (embora tenha se mostrado ineficaz, posto que quase todos os signatários desse tratado acabaram por se envolver na II GM).
A capitulação das potências do Eixo encerrou a belicosidade do conflito, havendo o estabelecimento de uma divisão do mundo em áreas de influências dominadas pelas duas superpotências que emergiram da II GM. Houve também um grande avanço no Direito Internacional, com a repulsa ainda mais veemente à guerra e o resgate do conceito da Sociedade das Nações, defendido por Franklin D. Roosevelt após a I GM. Nascia a Organização das Nações Unidas, cujo ordenamento jurídico estabeleceu que o monopólio do uso da força no âmbito externo seria exclusivo do Conselho de Segurança.
No contexto pós II GM reinou um ambiente bipolarizado nos aspectos político-ideológicos, militares e econômicos. Era a chamada Guerra Fria que, embora de abrangência global, experimentou apenas conflitos bélicos localizados, ditos "de baixa intensidade".
Entretanto, quase 50 anos depois do fim da II GM, um fato inusitado marcou história: a queda do muro de Berlim (1989), simbolizando o fim da Guerra Fria. Os Estados Unidos se posicionaram como vitoriosos naquela Guerra, onde o capitalismo e a democracia teriam sido a chave do sucesso. De fato, ao longo do ano de 1991, a então União Soviética, se desmantelaria. Hoje a Rússia, integrada no bloco da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), já vem adotando algumas políticas capitalistas e mostrando sinais fortes de recuperação econômica, assim como também de reestruturação militar. O outro gigante mundial comunista, a China, que contabiliza atualmente cerca de 20% da população do planeta, com a criação das regiões econômicas especiais (com regime capitalista), também vem apresentando consistentes e elevados índices de crescimento econômico, já ocupando a sexta colocação dentre os maiores produtos internos brutos (PIB) mundiais (PUGA, 2004 apud ARENTZ, 2004, p. 5).
Essa nova ordem mundial, que demonstrou a existência de uma única superpotência militar, também evidenciou um mundo multipolar no campo político e econômico. A globalização traz como conseqüência uma forte interdependência entre os Estados; em que incertezas políticas ou econômicas podem afetar até os mercados das economias mais robustas, como pudemos verificar no caso da crise dos mercados asiáticos em 1997, por exemplo.
As observações acima nos levam a questionar se a soberania estatal plena ainda estaria vigorando no mundo atual. A soberania dos Estados é um conceito enfatizado no Sistema Internacional desde 1648. Na verdade, esse conceito teria surgido na Idade Média, tendo o vocábulo "soberania" origem latina (superanus), significando " o grau supremo da hierarquia política" e estaria sempre ligado a aspectos econômicos (MELLO, 1999, p. 10-11). Segundo Celso Mello, o maior teórico da soberania teria sido Jean Bodin, para quem ela só seria limitada pelo direito natural e pelo jus gentium, mas seria ao mesmo tempo absoluta, exemplificando que o soberano impõe a lei a seus súditos, mas a ela pode não se auto-obrigar (BODIN, 1993 apud MELLO, 1999, p. 11) [20].
Um claro exemplo da limitação da soberania nacional é constatado nos blocos econômicos regionais formados nas últimas décadas, que possuem tribunais supranacionais para decidir pacificamente as controvérsias entre seus membros.
A Carta da ONU consagra a soberania estatal no princípio da igualdade de direitos, da autodeterminação dos povos e da não intervenção na jurisdição interna dos países. Entretanto, esta mesma norma internacional já aponta para a possibilidade de quebra da soberania, mesmo em relação a Estados que não sejam membros, quando for necessário à manutenção da paz e segurança internacionais [21].
Em 1991, o massacre promovido pelo Iraque ao povo curdo residente no norte de sua fronteira impeliu a França a defender um direito de ingerência pela ONU alegando uma "internacionalização dos direitos humanos" (MELLO, 1999, p. 17).
No ano seguinte, a guerra civil e a fome incontrolável em curso na Somália foram consideradas ameaças à paz e seguranças internacionais, autorizando uma desastrada operação da ONU. Em 1994, mais uma vez houve o consentimento do Conselho de Segurança para o emprego da força na Somália, por ocasião da intensificação dos conflitos internos em que milhares de tutsis foram massacrados pelos hutus, (BYERS, 2007, p. 40-43).
Ainda em 1994, o Conselho de Segurança autorizou novamente o uso da força em questões puramente nacionais. Tratava-se de restituir ao poder no Haiti Jean Aristide, presidente eleito derrubado por um golpe em 1990. O deslocamento em massa de refugiados (embora com pouca influência internacional prática) foi um aspecto levantado pela China em favor da atuação bélica da ONU. Com essa postura, o Conselho de Segurança confirmou sua tendência atual em autorizar sanções e o emprego da força contra crises humanitárias internas, mesmo representando pouca ameaça a outros Estados. Este posicionamento seria confirmado em 2004, no Painel de Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudança (BYERS, 2007, p. 44-46).
Outro questionamento afeto à plenitude da soberania é colocado por Celso Mello, observando o incremento do quantitativo dos chamados "micro-Estados", com o fenômeno da descolonização. Tais países, embora formalmente soberanos, em geral não gozam, de fato, de suas soberanias de forma autônoma, quer pelo baixo número de habitantes ou pequeno território, quer pela economia inconsistente (MELLO, 1999, p. 19).
A ONU, criada em 1948 com apenas 51 membros, já contava com 159 em 1990. Hoje são 192 Estados-membros. O desmantelamento da URSS e sua área de influência nos trouxe também Andorra, Armênia, Azerbaijão, República Checa, Estônia, Cazaquistão, Quirguistão, Letônia, Lituânia, Eslováquia, Tadjiquistão, Turcomenistão e Uzbequistão. A guerra nos Bálcãs desintegrou a Iugoslávia, trazendo-nos a nova Sérvia, Montenegro, Bósnia-Herzegovina, Croácia, Eslovênia e Macedônia. Outras incorporações recentes foram Kiribati (ex-Ilhas Gilbert), Ilhas Marshall, Micronésia, Moldávia, Mônaco, Nauru, Palau, Coréia do Sul, Coréia do Norte, Eritréia, São Marino, Suíça, Tonga, Timor-Leste e Tuvalu. Cabe observar que a Santa Sé, Estado que representa o Vaticano, figura apenas como membro observador convidado.
As relações comerciais também apresentam aspectos que inibem a plena soberania estatal, quer de forma implícita (pressões de grandes potências ou conglomerados), quer legalmente (como determinados dispositivos preconizados pela Organização Mundial do Comércio – OMC). Segundo nos observa a Professora Ana Cristina Pereira, sob o aspecto formal, a OMC enfatiza o respeito à soberania estatal, mas, fruto de uma auto-limitação voluntária dos Estados, visando maiores vantagens econômicas, ao verificarmos o conteúdo de suas normas (aspecto material), podemos observar que a política comercial externa dos países não possui uma boa margem de manobra (PEREIRA, 1999, p. 111).
Alguns doutrinadores apontam ainda a continuidade da soberania plena, considerando que tais flexibilizações só existem porque os Estados, exatamente no exercício soberano de suas ações, consentiram em assinar tais tratados. Entretanto, na prática o que se constata é que pressões e cenário internacionais não propiciam o pleno exercício da soberania (CRUZ, 2005).
A opção ou não em ratificar determinado tratado internacional pode ser encarada como uma expressão clara da soberania estatal. Mas, em que pese o forte relevo dada à soberania dos Estados nos tratados internacionais, diversos aspectos tem sido levantados justamente no caminho da limitação a esse conceito. Uma vez ratificado um tratado, o Estado abre mão de parcela de sua soberania.
Interessante notar também a percepção que Celso Mello faz a respeito do primeiro Tratado de Utrecht (1713) [22], que não visaria à paz, mas sim a evitar que uma única potência viesse a dominar a Europa, "o que conduziria a uma diminuição ou desaparecimento da soberania dos demais Estados (MELLO, 1999, p. 13). Nesse sentido, observando os fatos que vêm ocorrendo no mundo atual, talvez identifiquemos que a hegemonia e o unilateralismo de uma superpotência pode realmente corromper o conceito de soberania, como pode ser constatado no Iraque a partir de 2003.
Comparando as mazelas promovidas pelos conflitos dos séculos XIX e XX, houve um grande avanço no Direito Internacional com a criação da ONU, embora as tentativas de frear a ocorrência de ações bélicas ainda estejam em um lento processo construção. Em 1992, o sexto Secretário-Geral da ONU Boutros Boutros-Ghali contabilizava mais de cem conflitos importantes no mundo, que ceifaram a vida de cerca de 20 milhões de pessoas e em muitos deles a ONU ficou impotente, por conta do sistema de vetos do Conselho de Segurança [23]. Em 2006, o professor Afonso Celso contabilizou mais de 170 conflitos armados internacionais travados desde 1945, apesar das restrições impostas ao uso da força pela Carta da ONU (PEREIRA, 2006, p. 9), o que nos dá pelo menos mais 70 novos conflitos em cerca de 15 anos. Além disso, a depuração dos dados apresentados no apêndice A permite verificar que 46 missões de paz da ONU constam como finalizadas, num período de cerca de 50 anos, empregando aproximadamente 200.000 militares e consumindo por volta de US$ 12,8 bilhões. Nestas operações, foram registradas as mortes de 1335 pessoas. Destas 46 missões, apenas 12 se deram antes da queda do muro de Berlim [24].
Ainda estão em curso outras 17 missões de paz, com previsão de consumo de cerca de US$ 4,6 bilhões. Até novembro de 2007, já foram registradas outras 328 mortes [25]. Do total destas missões, 10 foram iniciadas nos últimos oito anos.
Os dados acima evidenciam contrastes marcantes, ante uma inevitável comparação com o evento atualmente em curso no Iraque: em apenas quatro anos, desde a invasão pelos EUA (e alguns aliados), já perderam a vida 3855 soldados norte-americanos e foram gastos mais de US$ 500 bilhões (BAÑALES, 2007).
Um levantamento das baixas ocorridas nas missões de paz da ONU nos mostra que o número de mortos anualmente sempre ficou abaixo de 50 até 1991 [26]. Coincidentemente, após o desmantelamento da URSS e a afirmação do unilateralismo dos EUA, as missões de paz da ONU passaram a enfrentar ambientes mais violentos, com o número de mortos ultrapassando uma centena a partir de 2003 [27].
Estas constatações nos permitem a seguinte ilação: após a queda do muro de Berlim e o desmantelamento da URSS, ao contrário das previsões otimistas, o mundo se tornou muito mais inseguro e violento, ficando a paz mundial defendida pela ONU e seus membros decididamente mais longe de ser alcançada. Os conflitos bélicos com reflexos para a segurança internacional não apresentaram, até o presente, um prognóstico efetivo de término ou diminuição.