4. Visão crítico-metodológica
Em linhas gerais, com relação à exegese de qualquer delito, é natural que haja desencontros, muitos desencontros. O art. 132, que acabamos de analisar, também não escapa dessas características.
Esse tipo de constatação nos remete à consciência crítica de uma realidade normativa a ser construída e completada pelo intérprete com poder decisório. No correto ensinamento de J.J. Calmon de Passos não há um direito "dissociado do ato de sua criação, dissociado do processo que o materializa como um prescrever dotado de coercitividade inelutável" ("Reforma do Poder Judiciário", Revista Brasileira de Ciências Criminais nº 71, 2008, p. 361).
De modo semelhante, Paulo de Souza Queiroz: o direito não está previamente dado, pois "é parte da construção social da realidade" e, portanto, não é desvelado pela interpretação. A interpretação, esta sim, é que produz o próprio direito ("O que é o direito penal?", Boletim IBCCrim nº 178, set. 2007, p. 4).
Conforme registrado em Curso crítico de direito penal, 2ª edição, Florianópolis: Conceito Editorial, 2008, as leis jurídicas retratam as virtudes e vícios da linguagem natural, linguagem essa que reveste, com os mesmos vícios e virtudes, as inúmeras e inconciliáveis tentativas de harmonização hermenêutico-dogmática.
Nem sempre a clareza de uma norma acalma e satisfaz o jurista igualmente comprometido com outros valores. De seu cardápio de argumentações constam alguns tópicos de natureza multifacetada: analogia, bom senso, eqüidade, razão, preconceito, cultura, bem comum, política social, tradição, progresso, espírito da lei, interesse comunitário, segurança jurídica. Além disso, como lembra Gladston Mamede, o tema também envolve a questão da luta por poder, legítimo ou ilegítimo: "Não se pode sequer afastar as hipóteses em que se utiliza da exegese para forjar sentidos inexistentes para a norma" (Semiologia do direito: tópicos para um debate referenciado pela animalidade e pela cultura, 2000, p. 131).
Os intérpretes acabam projetando e refletindo as limitações e contradições inerentes a todo e qualquer ser humano, limitações e contradições divididas, portanto, com alguma parcela do grupo social. O direito, por isso, não se resolve através da lei ou dos argumentos expendidos, mas do grau de vontade e liberdade de quem dispõe concretamente, no contexto das circunstâncias históricas, do poder de mando e decisão.
Na vida real, e sobretudo na vida forense, o jurista é convocado a manifestar-se concretamente através e a partir de si mesmo, de sua maneira pessoal e intransferível de ver e raciocinar. A subjetividade do intérprete completa e corporifica um direito ainda em formação, sem embargo de eventual clareza do texto normativo preexistente.
Mal posicionado em campo, um árbitro de futebol pode inverter o significado dos fatos. Mal informado, o juiz de direito pode, também, modificar normativamente a realidade. Pouco importa. Ambos se encontram no exercício do poder, e sua decisão, à semelhança de Midas, a tudo transforma em fato jurídico.
De seu turno, os doutrinadores e jurisconsultos, com o prestígio e magia de seus discursos, servem de consolo e apoio retórico – argumento de autoridade – para o desempenho desse poder normativo.
A verdade é que esses discursos e teorizações dogmáticas já não mais escondem sua função decorativa no contexto de um direito intrinsecamente confuso e contraditório, porque atrelado ao efetivo desabrochar de forças igualmente confusas e contraditórias, em busca, se possível, de legitimação e sedimentação históricas.
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