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O alcance do conceito de ordem pública para fins de decretação de prisão preventiva

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Agenda 01/09/2008 às 00:00

O clamor social, o resguardo da credibilidade da Justiça, a gravidade do delito e a periculosidade presumida do agente não ensejam o decreto de prisão preventiva para garantia da ordem pública.

Fazer todo bem que se possa, amar sobretudo a liberdade e, mesmo que seja por um trono, jamais renegar a verdade.

Ludwig van Beethoven


RESUMO

A presente monografia aborda tema processual penal controvertido, qual seja, os limites do conceito de ordem pública para decretação de prisão preventiva. Será visto como a doutrina e, especialmente, a jurisprudência, sobretudo no que se refere aos Tribunais Superiores, se posicionam acerca das diversas interpretações do conceito de ordem pública. Desta análise, concluir-se-á que o clamor social, o resguardo da credibilidade da Justiça, a gravidade do delito e a periculosidade presumida do agente não ensejam o decreto de prisão preventiva para garantia da ordem pública, pois tais interpretações ofendem direitos fundamentais e princípios estabelecidos na Constituição Federal (CF), como, por exemplo, o princípio do estado de inocência, entre outros. O presente trabalho defende uma interpretação restritiva quando da decretação da dita custódia, devendo ter caráter cautelar e estar fundamentada em fatos concretos, com a estrita observância dos direitos fundamentais preceituados na Constituição.

Palavras-chave: Prisão preventiva – Ordem pública – Princípio do estado de inocência – Interpretação Restritiva.


RESUMEN

El actual monografía aborda tema procesal penal controvertido, cual sea, los límites del concepto de orden pública para la decretación de la prisión preventiva. Será visto como la doctrina y, especialmiente, la jurisprudéncia se posicionan sobre las diversas interpretaciones del concepto de orden pública. De esta análisis, va a se concluir que el alarma social, el resguardo de la credibilidad de la Justicia, la gravidad del crimen e la peligrosidad del agente no Dan oportunidad a el decreto de prisión prebentiva para la garantia de la orden pública, pues estas interpretaciones ofenden derechos fundamentales y principios estabelecidos em la Constituición Federal (CF), como, por ejemplo, el principio del estado de inocencia, dentre otros. Este trabajo defende una interpretación restrictiva cuando de la decretación de la dicha custódia, debendo tener carácter cautelar y estar fundamentada em hechos concretos, con estricta observancia de los derechos fundamentales preceptuados en la Constituición.

Palabras-llave: Prisión preventiva - Orden pública – Principio del estado de inocencia – Interpretación restritiba.


SUMÁRIO:

Questão tormentosa na disciplina processual penal é a de delimitação do conceito de garantia da ordem pública, um dos fundamentos da decretação da prisão preventiva, constante do rol do art. 312 do Código de Processo Penal (CPP).

A garantia da ordem pública constitui uma cláusula aberta e, por carecer de uma melhor e mais precisa delimitação conceitual, vem sendo interpretada pelos Tribunais e pela doutrina de diversas formas. Deste modo, por exemplo, é comum confundir ordem pública com o clamor social ou ser decretada a prisão preventiva para garantia da ordem pública para resguardar a credibilidade da Justiça ou em virtude da gravidade do delito ou periculosidade do agente.

Conforme será analisado no presente trabalho, estas interpretações esbarram frontalmente em princípios basilares instituídos na Constituição Federal de 1988, principalmente aqueles vinculados às liberdades individuais que buscam preservar direitos e garantias do réu, como o do estado de inocência, além de ferir o direito fundamental da liberdade.

Convém salientar que, apesar de os diversos Juízes Monocráticos e Tribunais Estaduais do país se posicionarem de forma um tanto discricionária a respeito da prisão preventiva para garantia da ordem pública, conferindo uma interpretação bastante elástica quanto ao sentido e alcance de tal termo – o que vulnera o direito do réu de acompanhar o processo em liberdade –, os Tribunais Superiores souberam frear estas interpretações, conferindo uma delimitação mais estrita do conceito de ordem pública em alguns casos.

Nessa perspectiva, o tema "Os limites da interpretação de ordem pública para fins de prisão preventiva", é de essencial importância para a comunidade acadêmica, bem como para toda a sociedade, haja vista que a amplitude desta expressão causa insegurança jurídica. Ademais, esta modalidade de prisão, do jeito que está sendo operacionalizada hoje, constitui expressa antecipação de pena, o que não pode prosperar, pois a CF assegura a proteção e resguardo da liberdade de locomoção do indivíduo e reconhece seu estado de inocência até que se prove o contrário através de um devido processo legal, autorizando a prisão cautelar apenas em casos excepcionais.

O presente estudo propõe uma delimitação do conceito de ordem pública, apresentando interpretações excludentes e parâmetros a serem seguidos quando da decretação da custódia.

Trata-se de pesquisa de natureza bibliográfica e documental, em que se buscou o emprego do método de procedimento dedutivo e o método de abordagem monográfico, servindo de fonte para o referencial teórico que serviu de substrato na defesa da hipótese desse trabalho, livros, artigos, monografias, jurisprudência, a qual se reveste de caráter meramente exemplificativo, e outros. Vários autores foram consultados, dando especial ênfase a Rogério Lauria Tucci, Ada Pelegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho, Júlio Fabrini Mirabete, Fernando da Costa Tourinho Filho, Frederico Marques e Gabriel Bertín de Almeida.

Para a elaboração do estudo foi utilizado o método dedutivo, em que se partiu de uma análise do instituto da prisão e das medidas de natureza cautelar com suas características, princípios e requisitos até chegar ao estudo da prisão fundamentada na preservação da ordem pública.

Este trabalho encontra-se dividido em cinco capítulos. Inicialmente, será abordado o surgimento do direito de punir do Estado e sua legitimação, tecendo considerações acerca do contrato social. Em seguida, analisa-se o conflito entre o direito de punir do Estado e o direito de liberdade o indivíduo, para, posteriormente serem abordados também os modelos de sistemas processuais penais e os princípios que norteiam o processo penal brasileiro. No terceiro capítulo promove-se uma análise minuciosa acerca da prisão preventiva, seus pressupostos, fundamentos e natureza jurídica. No capítulo seguinte serão abordadas as interpretações dadas pelos Tribunais sobre a garantia da ordem pública, sendo enfocadas quatro interpretações, quais sejam: ordem pública e clamor social, ordem pública e gravidade do delito, ordem pública e descrédito da Justiça e ordem pública e periculosidade do agente. Por fim, no último capítulo será oferecida uma proposta de delimitação do conceito de ordem pública.


2. Sociedade, Estado e Controle Social

2.1. Contrato Social e Regulação Estatal

A grande dicotomia sobre a qual se debruçam grandes estudiosos das ciências criminais consiste no conflito entre o direito de punir ou ius puniendi e o direito de liberdade ou ius libertatis. O primado do direito de liberdade como um dos direitos mais importantes do ser humano, do qual decorrem outros direitos fundamentais, realçou seu caráter de inalienabilidade, pois, é sabido que este é inerente a todo ser humano, só podendo ser restringido em casos excepcionais.

Já o surgimento do direito de punir perpassa pela idéia de contrato social e estado civil, haja vista que decorre destes, pois, a princípio, o homem vivia em fase de liberdade plena, e só após surgiu a necessidade de regras para o convívio social, que se deu através do contrato social, surgindo, desta forma, a sociedade civil, que se opõe à fase de estado de natureza, onde a liberdade é limitada para o alcance do bem comum.

Afirma Jean Jacques Rosseau que "o homem nasceu livre, e por toda a parte geme agrilhardo" (ROSSEAU, 2002, p. 23). Esta frase inaugura a obra-prima "Do Contrato Social" escrita por este filósofo contratualista, obra que tem por escopo explicar a origem da vida em sociedade e a legitimação do poder estatal. No entanto, para uma melhor compreensão acerca do surgimento do Estado, é necessário a análise de três temas, quais sejam: o estado de natureza, o contrato social e o estado civil.

O estado de natureza é a fase de liberdade plena do ser humano. De acordo com Thomas Hobbes (apud FERNANDES, 2005, p. 02), o direito natural corresponde à opção que cada indivíduo possui de usar seu próprio poder da maneira que quiser, de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem, como meios adequados para a preservação de sua própria existência. Nesta condição, todo homem teria direito a todas as coisas.

No estado de natureza a liberdade era quase absoluta, tendo em vista que o homem a utilizava ao seu alvedrio, não se responsabilizando por seus atos, sendo esta limitada somente pela força. Foi justamente em virtude deste obstáculo que se fez necessário o abandono da liberdade primitiva, pois esta situação gerou um estado de insegurança generalizado, onde o mais forte impunha sua vontade em detrimento da do mais fraco, causando desequilíbrio nas relações sociais. Sendo assim, conclui-se que o surgimento da vida em sociedade não se deu por uma tendência natural do ser humano, mas sim pela necessidade de sobrevivência de cada um.

A transição do estado natural para o civil se deu através do contrato social e este se apresenta sob dois aspectos: sendo o primeiro o associativo, através do qual os indivíduos se reúnem para constituir a vida em sociedade, e o segundo referente à submissão caracterizado pela subordinação dos indivíduos ao Estado. É desta forma que se justifica o poder estatal, que nada mais é que um poder-dever, haja vista que tal poder decorre do dever do soberano de perseguir o interesse da coletividade. (FERNANDES, 2005, p. 03)

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De acordo com a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello (2005, p. 37-38):

O poder, no direito público atual, só aparece, só tem lugar, como algo ancilar, rigorosamente instrumental e na medida estrita em que é requerido como via necessária e indispensável para tornar possível o cumprimento do dever de atingir a finalidade legal.

Sendo assim, o cidadão sacrifica parcela de sua liberdade em favor da harmonia social da qual é provedor o Estado que tem a incumbência de promover a segurança de todos. Assim, o Estado só pode agir de acordo com os limites impostos pela lei e pelo interesse público, pois se configura, neste caso, como um simples mandatário do povo na defesa dos interesses públicos primários [01].

Para arrematar, esta também é a conclusão de Cesare Beccaria (2005, p. 19), em sua obra "Dos Delitos e das Penas":

Desse modo, somente a necessidade obriga os homens a ceder uma parcela de sua liberdade; disso advém que cada qual apenas concorda em pôr no depósito comum a menor porção possível de liberdade. (...) O conjunto de todas essas pequenas porções de liberdade é o fundamento do direito de punir. Todo exercício do poder que se afastar dessa base é abuso e não justiça.

É deste modo que o homem passa do estado natural para o civil. Nesta fase, segundo Rosseau (2002, p. 37), todos os homens são iguais por concepção e direito, não mais subsistindo a lei do mais forte. Com o contrato social, o Estado passou a deter o monopólio do uso da força, daí nascendo o ius puniendi estatal. Esta é a lição de Alessandro Baratta (2002, p. 33):

O contrato social está na base da autoridade do Estado e das leis; sua função, que deriva da necessidade de defender a coexistência dos interesses individualizados no estado civil, constitui também o limite lógico de todo legítimo sacrifício de liberdade individual mediante a ação do Estado e, em particular, do exercício do poder punitivo pelo próprio Estado.

Em suma: apesar de todo homem nascer livre, todos devem sacrificar uma parcela de sua liberdade para viver em sociedade, tendo em vista que esta é condição de sua sobrevivência, que ficaria comprometida com a adesão absoluta à autotutela [02] na composição dos conflitos, caso o Estado não interferisse quando necessário para a resolução dos mesmos. O estado civil exige um pacto social, a fim de um convívio mais harmônico entre os homens que compõem a sociedade e é este contrato social que legitima o Estado a punir o indivíduo que compromete a paz social ao cometer um delito.

2.2. O poder punitivo do Estado

O Ius puniendi é o direito conferido ao Estado de punir todo indivíduo que pratica um fato típico, antijurídico e culpável, visando a defesa dos bens jurídicos mais valorizados pela sociedade:

Como esses bens ou interesses são tutelados em função da vida social, como são eminentemente sociais, o Estado, então, não permite que a aplicação do preceito sancionador ao transgressor da norma de comportamento, inserta na lei penal, fique ao alvedrio do particular. Quando ocorre uma infração penal, cabe ao próprio Estado, por meio dos seus órgãos, tomar a iniciativa motu proprio, para garantir, com sua atividade, a observância da lei. (TOURINHO, 2001, P. 5).

Numa conceituação mais dogmática, significa o direito do Estado de aplicar a pena estabelecida no preceito secundário da norma penal incriminadora contra o indivíduo que praticou a conduta descrita no preceito primário (MARQUES, 2000, p.3).

Este direito se legitima pelo contrato social e pode ser utilizado somente na medida exata do interesse público. O direito de punir é exercido através de um poder-dever do Estado, para cumprimento de sua função primordial, qual seja, a consecução do bem comum dos indivíduos que o compõe. Se não fosse este poder, o direito de punir restaria esvaziado e não cumpriria seu escopo. Na expressão de Von Ihering (apud FERNANDES, p. 06), se não fosse o poder, o ius puniendi seria "um fogo que não queima". Ou seja, é um poder instrumental, na medida em que somente pode ser utilizado na consecução de uma finalidade, qual seja, o bem comum dos cidadãos, os quais abdicaram de parte de sua liberdade, a fim de garantir a paz entre os indivíduos de uma mesma sociedade.

Uma das características marcantes do direito de punir é a concentração do monopólio da força nas mãos do Estado, não se admitindo a vingança de mão própria, dissipando-se, assim, a lei do mais forte, sendo aquele o único legitimado a usar a força e conferido seu emprego ao indivíduo em caráter residual-excepcional.

Abolida que está a vingança privada, a sanção penal é hoje monopólio do Estado, pois o direito penal tem uma função pública, achando-se fora de seu âmbito qualquer forma de repressão privada. Só o Estado, portanto, tem o poder de punir. O particular pode vingar-se de seu ofensor, reagir contra ele, nunca, porém, exercer a sanctio júris. Nem na legítima defesa (onde pe legalmente autorizado a defender-se, e não aplicar sanções), nem nos crimes de queixa privada (onde apenas existe um fenômeno de substituição processual), pode encontrar-se exceção ao princípio enunciado; e coroando tudo, há ainda as sanções contra o exercício arbitrário das próprias razões, adotadas pelos códigos de todas as nações civilizadas. (MARQUES, 2000, p. 4)

Apesar de o Estado ser o único legitimado a usar a força, este uso não pode se dar de forma indiscriminada. O ius puniendi além estar limitado pelo interesse público, encontra-se adstrito ao princípio da reserva legal (nullum crimen, nulla poena sine lege), o qual se encontra previsto no art. 5º, inciso XXXIX [03] da Constituição Federal (CF), traduzindo a idéia que as normas penais incriminadoras somente podem ser criadas por lei em sentido estrito, não podendo o Estado punir o cidadão de acordo com o seu alvedrio, devendo este ser punido somente nas situações previstas em lei. Nos dizeres de Guilherme de Souza Nucci (2007, p. 67):

Trata-se de conteúdo das normas penais incriminadoras, ou seja, os tipos penais, mormente os incriminadores, somente podem ser criados através de lei em sentido estrito, emanada do Poder Legislativo, respeitado o procedimento previsto na Constituição.

Neste diapasão, cumpre salientar, ainda, que devido ao direito de coação indireta, não pode o Estado pura e simplesmente impor a pena de forma direta e automática ao acusado, sendo necessário para tanto um processo, no qual haja o confronto entre o Estado, agente que detém o poder de punir, e o acusado, indigitado autor da infração, para que, ao final, se declare ou não a culpa do réu e se lhe imponha ou não a pena, ficando o Estado somente autorizado a realizar algumas medidas assecuratórias [04] (TUCCI, 2002, p. 165-166):

(...) não se pode deixar de considerar que, cometida a infração penal, mesmo assim não há como impor, nem discricionária, nem (muito menos) autoritariamente, a sanção em lei prescrita para coibir sua prática. O mais do que se pode cogitar, então – e com a discricionariedade ínsita à atuação de agente do Poder Judiciário (juiz ou tribunal), na consecução da finalidade do processo penal -, é da realização de algumas providências de natureza cautelar, assecuratórias da aplicação de pena ou medida de segurança ao autor da prática criminosa ou contravencional (TUCCI, 2002, p. 165).

Para a consecução das tais medidas assecuratórias, é conferido ao Estado o chamado ius persequendi ou ius persecutionis, que nada mais é que o direito de perseguir o provável autor da infração até a decisão final da lide penal. Nas palavras de Lauria Tucci (2002, p. 166), o ius persequendi consiste:

no poder de promover a perseguição do indigitado autor da infração penal até o momento em que lhes seja imposta, definitivamente, com o trânsito em julgado da correspondente sentença condenatória, a sanção em lei prescrita para a prática criminosa ou contravencional cuja coibição é por ela colimada.

Ocorre que o poder-dever de perseguir e punir, além de sofrerem as limitações relativas ao interesse público e ao princípio da reserva legal, devem ser cotejados juntamente com o direito fundamental de liberdade de todo indivíduo, constante do rol do art. 5º da CF. Ambos componentes da lide penal, de um lado o ius puninedi e de outro o ius libertatis. O art. 5º, inciso LIV da CF afirma que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". Dessa forma, qualquer medida que venha a embaraçar a liberdade do indivíduo deve se submeter ao controle jurisdicional, a fim de melhor resguardar e garantir a defesa do acusado.

2.3. O Caráter Instrumental do Processo Penal

O art. 5º, inciso XXXV, da CF aduz que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Ou seja, ocorrida a violação de um direito, nasce a pretensão do autor de ver seu dano reparado, pleiteando a tutela jurisdicional do Estado que se manifesta através de um processo.

Caracterizada a insatisfação de alguma pessoa em razão de uma pretensão que não pôde ser, ou de qualquer modo não foi, satisfeita, o Estado poderá ser chamado a desempenhar a sua função jurisdicional; e ele o fará em cooperação com ambas as partes envolvidas no conflito ou com uma só delas (o demandado pode ficar revel), segundo um método de trabalho estabelecido em normas adequadas. A essa soma de atividades em cooperação e à soma de poderes, faculdades, deveres, ônus e sujeições que impulsionam essa atividade dá-se o nome de processo. (CINTRA, DINAMARCO & GRINOVER, 2004, p. 42)

A tríade processual se consubstancia em três elementos, quais sejam: jurisdição, ação e processo, estes inconfundíveis. A jurisdição é, ao mesmo tempo, poder, função e atividade do Estado na solução de conflitos sociais; é poder na medida em que se configura como poder estatal de impor decisões; é função, visto que exercida por órgãos estatais; e atividade sob o espectro de atuação do juiz (CINTRA, DINAMARCO & GRINOVER, 2004, p. 139).

Ada Pellegrini, Cândido Rangel Dinamarco e Araújo Cintra (2004, p. 139) apresentam um conceito claro e conciso de jurisdição:

é uma das funções do Estado mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve, com justiça. Essa pacificação é feita mediante a atuação da vontade do direito objetivo que rege o caso apresentando em concreto para ser solucionado; e o Estado desempenha essa função sempre mediante o processo.

É sabido que violado o direito, nasce a pretensão autoral de obter a tutela jurisdicional. A ação é justamente "o direito ao exercício da atividade jurisdicional" (CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2004, p. 257). Através deste direito de ação, provoca-se a jurisdição, que se exerce por meio de um complexo de atos, o qual se denomina processo.

Portanto, o processo é a soma de atividades que impulsionam a jurisdição, sendo aquele instrumento através do qual esta se opera. Não se pode confundir, também, processo, procedimento e autos: processo é o complexo de atos, procedimento é o aspecto formal do processo e os autos correspondem ao aspecto material (documental) do procedimento (CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2004, p. 285).

O processo em âmbito penal torna-se imprescindível, haja vista o conflito entre o poder-dever do Estado de punir o réu e o direito fundamental de liberdade do suposto autor da infração, sendo o processo o meio adequado para a resolução desses conflitos de interesses:

Praticado um fato que, aparentemente ao menos, constitui um ilícito penal, surge o conflito de interesses entre o direito de punir do Estado e o direito de liberdade da pessoa acusado de praticá-lo. (...) Assim, no Estado moderno a solução do conflito de interesses, especialmente no campo penal, se exerce através da função jurisdicional do Estado no que se denomina processo e, em se tratando de uma lide penal, processo penal. (...) Só assim ‘o Estado pode exigir que o interesse do autor da conduta punível em conservar sua liberdade se subordine ao seu, que é o de restringir o jus libertatis com a inflição da pena’. (MIRABETE, 2005, p. 26).

O processo deve, ainda, ser encarado de forma instrumental, ou seja, como meio utilizado a fim de garantir a paz social:

Falar em instrumentalidade do processo, pois, não é falar somente nas suas ligações com a lei material. O Estado é responsável pelo bem estar da sociedade e dos indivíduos que a compõem: e, estando, o bem-estar social turbado pela existência de conflitos entre pessoas, ele se vale do sistema processual para, eliminando os conflitos, devolver à sociedade a paz desejada. O processo é uma realidade desse mundo social, legitimada por três ordens de objetivos que através dele e mediante o exercício da jurisdição o Estado persegue: sociais, políticos e jurídicos. A consciência dos escopos da jurisdição e sobretudo do seu escopo social magno da pacificação social (...) constitui fator importante para a compreensão da instrumentalidade do processo, em sua conceituação e endereçamento social e político. (CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2004, p. 43).

Este é o aspecto positivo da instrumentalidade do processo, vê-lo como meio para alcançar a harmonia da sociedade. Falar neste tipo de instrumentalidade é alertar para a necessária efetividade processual, para a necessidade de um sistema processual capaz ser um caminho eficiente para a consecução de uma ordem jurídica justa na sociedade.

Já o aspecto negativo é aquele que prega o abandono de certa formalidades processuais, desde que o fim colimado na norma seja atingido:

Fala-se de instrumentalidade do processo, pelo seu aspecto negativo. Tal é a atradicional postura (...) consistente em alertar para o fato de que ele não é um fim em si mesmo e não deve, na prática cotidiana, ser guindado à condição de fonte geradora de direitos. Os sucesso do processo não devem ser tais que superem ou contrariem os desígnios do direito material, do qual ele é também um instrumento. (CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2004, p. 43 e 44).

A projeção deste aspecto negativo está inserto no princípio processual da instrumentalidade das formas, que traduz a idéia de desapego às formalidades, desde que não culmine em invalidade do ato processual.

Neste diapasão, cumpre salientar a importância de determinados princípios constitucionais que influenciam o processo penal. É sabido que a Constituição, dentro da lógica sistemática do ordenamento jurídico, se situa acima de todas as normas, sendo requisito de validade destas a conformidade com aquela. Marques (2000, p. 75-76) bem explicita a supremacia da Carta Magna:

Pela preeminência em que se situa na taxinomia das normas legais, a Constituição não só traça preceitos que funcionam como fontes formais de diversos domínios da regulamentação jurídica, como ainda se apresenta com os predicados de fonte material em que o legislador vai abeberar-se para construir regras e mandamentos destinados a disciplinar legalmente relações de vida e fatos sociais submetidos aos incoercíveis imperativos da ordem estatal.

Em face da importância da Constituição, faz-se necessário, inicialmente, o respeito a dois princípios basilares de todo e qualquer processo: o contraditório e a ampla defesa, consubstanciados no art. 5º, inciso LV da CF, onde está assinalado que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes". Apesar de se complementarem, contraditório e ampla defesa não significam a mesma coisa. De acordo com Fernando Capez, (2005, p. 19) o contraditório:

Decorre do brocardo romano auditur et altera pars e exprime a possibilidade, conferida aos contendores, de praticar todos os atos tendentes a influir no convencimento do juiz. (...) Compreende, ainda, o direito de serem cientificadas sobre qualquer fato processual ocorrido e a oportunidade de manifestarem-se sobre ele, antes de qualquer decisão jurisdicional.

Alexandre Moraes (2002, p. 125) estabelece a diferença entre contraditório e ampla defesa:

Por ampla defesa, entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-se ou calar-se, se entender necessário, enquanto o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução dialética do processo (par conditio), pois todo o ato produzido pela acusação, caberá igual direito da defesa de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que melhor lhe apresente, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor.

Devendo ressaltar que estes princípios se aplicam somente à instrução criminal processual, não incidindo na fase investigativa do inquérito policial, devido à sua natureza inquisitiva [05].

Outro princípio constitucional processual penal de grande importância é o do estado de inocência, sendo este um importante vetor de compreensão do conflito estabelecido entre o direito de punir do Estado e o direito de liberdade do indivíduo no processo criminal. Significa, conforme o estabelecido no artigo 5º, inciso LVII da CF, que "ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória", sendo este mais uma limitação ao poder-dever estatal de punir, de ordem constitucional, além das limitações advindas do interesse público, do princípio da reserva legal, do direito subjetivo de liberdade e do devido processo legal.

A origem desta regra se encontra na Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão de 1791, a qual repercutiu posteriormente em todo o mundo, fazendo parte da Declaração dos Direitos Humanos de 1948 que afirma em seu artigo 11 que: "toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se prova sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas as garantias necessárias para sua defesa" (FONSECA, 1999, p. 01).

Cumpre salientar que após estas Declarações, tal princípio passou a integrar também o corpo constitucional de cartas políticas de diversos países, vindo a ser positivada no Brasil somente com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Apesar de recente a previsão deste princípio em nível constitucional, ele já era há muito conhecido pelos juristas brasileiros, conforme se infere do excerto abaixo colacionado, da autoria de Ruy Barbosa (apud FONSECA, 1999, p. 01) acerca do mesmo:

Não sigais os que argumentam com o grave das acusações, para as armarem de suspeita e execração contra os acusados. Como se, pelo contrário, quanto mais odiosa a acusação, não houvesse o juiz de se precaver mais contra os acusadores, e menos perder de vista a presunção de inocência, comum a todos os réus, enquanto não liquidada a prova e reconhecido o delito.

Em outras palavras, sendo a liberdade bem supremo de todo indivíduo, deve ser observado o princípio do devido processo legal, dado ao acusado a garantia ao contraditório e à ampla defesa, devendo este ser tratado como inocente até que seja decidido o contrário num processo de cognição exauriente [06].

Alguns doutrinadores divergem quanto à terminologia e o alcance do princípio consagrado no inciso LVII do artigo 5º da CF. Afirmam alguns não se tratar tal norma do princípio da presunção de inocência, mas sim do princípio da não-culpabilidade, este de menor abrangência. Giuseppe Betiol (apud FONSECA, 1999, p. 05) explica a diferença entre o conteúdo das duas terminologias controversas:

A presunção nasceu como idéia-força a influir no psiquismo geral, no sentido de fixar a imagem de um processo que não estivesse a serviço da tirania, mas que, ao contrário, desse ao acusado as garantias da plena defesa. Estabelecendo que o absolvido por falta de prova era presumido inocente, a regra atingia sua finalidade prática, como idéia-força, sem subverter a lógica. Pois uma coisa é declarar que não se considera culpado quem não foi condenado, como o fizeram os escritores medievais, e outra, bem diferente, é afirmar que o réu se presume inocente até que seja condenado.

A dúvida estabelecida acerca do alcance do artigo 5º, inciso LVII da CF, hoje perdeu seu sentido em face do que preceitua o artigo 8º, inciso I, do Pacto de São José da Costa Rica. Tratado, ratificado pelo Brasil em 1992, estabelece que o citado acordo que "toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa". Ressalte-se que tal pacto internacional tem vigência no Brasil por força do disposto no §2º do artigo 5º da CF, in verbis: "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos bons princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".

O princípio do estado de inocência, consagrado constitucionalmente, tem forte influência sobre a legislação infraconstitucional, especificamente sobre o processo penal em quatro aspectos: primeiro, com relação à regra probatória, tomando-se como regra a inversão do ônus da prova, devendo o acusador provar a culpa do réu; segundo, quanto à valoração da prova, tendo como vetor interpretativo o princípio do in dubio pro reo, ou seja, na dúvida deve-se interpretar a prova de forma mais favorável ao réu ou em sendo duvidosa a culpa do mesmo, deve este ser considerado inocente através de sentença absolutória; terceiro, como paradigma de tratamento durante a investigação e o processo criminal, não podendo o acusado ser tratado como mero objeto, mas como sujeito de direitos; e, por último, deve ser observado este princípio quando da declaração de prisão cautelar, sendo este último aspecto o que mais interessa ao presente trabalho, devendo a prisão cautelar ser decretada em casos excepcionais, por ser medida que restringe a liberdade do indivíduo, em que se exige observância do princípio da presunção de inocência nestes casos, sob pena de haver pena antecipada em sede de prisão provisória (FONSECA, 1999, p. 05).

Todavia, é importante esclarecer que a consagração desse princípio não afasta a possibilidade de o réu ser privado de sua liberdade provisoriamente, conforme a lição do doutrinador Alexandre de Moraes (2002, p. 132):

A consagração do princípio da presunção da inocência, porém, não afasta a constitucionalidade das espécies de prisões provisórias, que continuam sendo, pacificamente, reconhecida pela jurisprudência, por considerar a legitimidade jurídico-constitucional da prisão cautelar, que obstante a presunção juris tatum de não-culpabilidade dos réus, pode validamente incidir sobre o status libertatis. Desta forma, permanecem válidas as prisões temporárias, em flagrante, preventivas, por pronúncia e por sentenças condenatórias sem trânsito em julgado.

Conclui-se, então, que, quando do exercício do poder-dever de punir, deve o Estado estar atento a diversos axiomas e princípios reitores tais como, o interesse público, o princípio da reserva legal, a excepcionalidade da restrição do direito subjetivo de liberdade, o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, o princípio do estado de inocência, entre outros, que devem ser observados ao longo não só do procedimento penal, mas também sempre que cabível, em toda a fase de investigação. Presente esse compromisso com os direitos e garantias fundamentais vinculados à liberdade individual na apreciação de medidas cautelares, em especial quando da decretação de prisão provisória, principal forma de constrição de liberdade atual, avança-se na consolidação de um Processo Penal Garantidor, em estreita sintonia com a ordem constitucional.

Sobre a autora
Luciana Leonardo Ribeiro Silva

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe e Advogada

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Luciana Leonardo Ribeiro. O alcance do conceito de ordem pública para fins de decretação de prisão preventiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1888, 1 set. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11669. Acesso em: 23 dez. 2024.

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