4. Infração administrativa.
Como estudado, a divulgada tolerância zero não atine ao crime de embriaguez ao volante. Adstringe-se à infração administrativa do art. 165 do CTB, com as alterações da Lei 11.705/08, nesses termos:
Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:
Infração – gravíssima;
Penalidade – multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 meses;
Medida Administrativa – retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação.
(...)
Art. 276. Qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165 deste Código.
Parágrafo único. Órgão do Poder Executivo federal disciplinará as margens de tolerância para casos específicos.
Art. 277. Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado. (Redação dada pela Lei nº 11.275, de 2006)
(...)
§ 2º A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor.(Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)
§ 3º Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.705, de 2008)
Racionalmente, consagrou-se a influência do álcool no organismo. A sorte da infração está diretamente relacionada aos meios de prova, cuja liberdade se positivou no art. 277, §3 do CTB. Não se tarifou o sistema de apreciação valendo, em princípio, qualquer evidência para aferição da ebriedade: o exame de sangue, o etilômetro (bafômetro), o exame clínico, as testemunhas, indícios, etc.
Outras interpretações podem exsurgir em relação ao citado parágrafo. Em primeiro, no sentido da inconstitucionalidade integral do art. 277, §3, já que a ninguém é ordenada a auto-acusação no Estado Democrático de Direito.
Noutro giro, pela efetivação parcial do dispositivo, apenas no que toca à negativa do exame clínico (consulta médica), não dependente da voluntariedade do paciente. Ora, o sujeito pode se furtar às perícias do bafômetro, exame de sangue ou demais atuações que recolham resíduos corporais, mas não se lhe é permitido afastar da mera consulta médica. Nesta, a sua passividade clínica é observada por um profissional, sem fornecimento de provas contra a vontade do suspeito.
Finalmente, haverá quem sustente a integral aplicação das indigitadas normas, obviando a ideologia punitivista e mitigadora dos direitos fundamentais como racional ao controle social do tráfego.
Sem embargo, são legítimas e defensáveis as interpretações colidentes que a infração facultou ao aplicador. A única certeza é que a incisividade da pena administrativa ensejará uma avalanche de ações judiciais discutindo a regularidade do Poder de Polícia estatal ora positivado.
Conclusão.
Ao vincular, no bojo do tipo penal, o patamar de tolerância na ingestão de substância alcoólica, o legislador correu o risco de beneficiar todos que respondem a processos, estão sendo investigados ou chegaram a ser condenados por embriaguez no volante, mesmo anteriormente à vigência da Lei 11.705/08, caso não tenham se submetido ao exame de sangue (ou bafômetro) para comprovação do grau de alcoolemia. Ainda que se pudesse constatar a (in)sanidade físico-química do condutor por testemunhas ou exame clínico, a determinação objetiva da nova redação vincula a consumação do crime à tarifa probatória observada no tecido sanguíneo. A modificação do art. 306 do CTB não expressa a tolerância zero divulgada.
Passaremos a conviver com paradoxos interpretativos, naturais à dialética conceitual do Direito. Em algumas oportunidades, pensar-se-á que na matéria criminal não há espaço para presunções ou vinculação de medidas punitivas a atos normativos do Poder Executivo. Apenas a lei em sentido estrito disporia de legitimação constitucional para tipificar e delimitar infrações máximas. Ou seja, seria inválido o Decreto 6.488, de 19 de junho de 2008, que equipara o exame de sangue à medição pelo aparelho de ar alveolar do pulmão. O art. 306 do CTB é unívoco ao individualizar o tecido ‘sangue’. Os demais resquícios corporais seriam vestígios periféricos e não objeto material do torpor alcoólico preconizado no tipo. Noutros casos, permitir-se-á a medição do grau de alcoolemia pelo etilômetro, integrando a tipicidade pelo suporte questionável do indigitado Decreto executivo.
De unívocos são apenas os alardes midiáticos que se divulgam em todas as estações bem como o afã punitivista inflacionador e desfragmentador da legislação penal. Por ora, verifica-se no contexto sensível do processo criminal uma relativização da propalada ‘tolerância zero’, na contramão dos apelos reclamados. Respeitado o direito de permanecer em silêncio, a presunção de inocência dos indivíduos e o devido procedimento legal, o novíssimo art. 306 apresenta-se como uma novatio legis in melius (abolitio criminis) condicionado à pesquisa das provas quando da autuação em flagrante. O sucesso da pretensão acusatória subordina-se à voluntariedade do suspeito na produção de provas.
O apanágio de ‘tolerância zero’ da corrente ‘lei e ordem’ adotada pela ideologia momentânea adstringiu-se às infrações administrativas, como verificado nos arts. 165, 276 e 277, todos do atual CTB. A jurisprudência enfrentará esse disparate legislativo. Síntese dos delitos e do contexto probatório indispensável à comprovação da materialidade (existência) das infrações torna-se esclarecedora:
Infração. |
Provas indispensáveis à comprovação da materialidade. |
Administrativa: Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência. |
Exame de sangue, aparelho de medição do ar alveolar (etilômetro ou bafômetro), exame clínico (constatação pelo hálito, motricidade, funções vitais, entre outras pesquisas, cuja realização independerá da colaboração do condutor do veículo automotor), testemunhas, todos meios de provas que não sejam contrários à lei. |
Criminal: Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência. |
Apenas exame de sangue - para quem entende inconstitucional a previsão do Decreto 6.488, de 19 de junho de 2008. Exame de sangue e bafômetro (etilômetro), para os que considerarem válido o referido Decreto. |
Apenas o indivíduo voluntário à provação do próprio corpo sujeitar-se-á ao processo criminal. Jamais poderá ser obrigado a fornecer uma parte de seu organismo vivo (sangue ou ar do pulmão) para a produção de uma acusação contra si. Canhestra, por autoflagelatória, a materialidade indispensada ao crime.
A partir das reformas, ainda que uma pessoa seja flagrada conduzindo veículo, em via pública, sob influência de álcool (concentração acima dos 6 decigramas), não poderá ser repreendida pela infração penal caso não se submeta ao exame de sangue ou ao etilômetro para aferição da dosagem alcoólica. A lei deve interagir, observar a Constituição e, por isso, apenas condenar e algemar o sujeito que voluntária ou eventualmente se submeter à prova técnica.
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www.jus.com.br www.iuspedia.com.brNotas
- BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1996, pg. 38.
- NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 2 ed. Editora RT, 2007, pg. 1032.
- Contra, afirmando que a anterior redação do art. 306 tratava de crime de perigo abstrato: "O artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro prevê crime de perigo abstrato, bastando a condução em estado de embriaguez, o qual foi atestado por prova testemunhai bem como pelo laudo de exame químico toxicológico" (TJSP, Apelação Criminal 993080489084 [1198235360000000], Relator Aloísio de Toledo César, 15ª Câmara de Direito Criminal, DJ 03/06/2008).
- Decreto 6.488, de 19 de junho de 2008. "Art. 2. Para os fins
criminais de que trata o art. 306 da Lei nº 9.503, de 1997. Código de Trânsito
Brasileiro, a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia é a
seguinte:
I - exame de sangue: concentração igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue; ou
II - teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro): concentração de álcool igual ou superior a três décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões."
- JAKOBS, Gunther. Derecho Penal Del Enemigo. Tradução Manuel Cancio Meliá. Madrid: Civitas, 2003, pg. 56.
- GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. ‘Direito Penal’ do inimigo e os inimigos do direito penal. Revista Ultima Ratio. Coord. Leonardo Sica. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 006, ano 1, p. 329-356.
- Critérios absolutamente legítimos, mas com os quais não concordamos, já que na contramão do minimalismo preconizado desde 2006 com a Lei de Drogas e Maria da Penha.
- GOMES, Luiz Fávio; CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Comentários às Reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito. 1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, pg. 375.
- Vale referir caso em que a conduta de importação é atípica, mas não afasta a perda administrativa das mercadorias, no caso do descaminho insignificante: "Havendo prática de descaminho com a ilusão de impostos em valor não superior ao patamar de R$ 2.500,00, previsto no art. 20 da Lei nº 10.522/02, é possível a aplicação do princípio da insignificância penal. - A alteração promovida pela Lei nº 11.033/04 - que elevou aquele patamar para R$ 10.000,00 - não merece ser adotada sob pena de tornar inócua a norma do art. 334 do Diploma Repressor. - Os bens tutelados pela norma jurídica não ficam desprotegidos em casos como este: o processo administrativo de perda das mercadorias, por resultar efetivo prejuízo ao indiciado, constitui medida suficente para garantir a preservação do setor econômico nacional. - Recurso a que se nega provimento" (TRF4, RSE 2004.70.02.005503-8, Sétima Turma, Relatora Maria de Fátima Freitas Labarrère, DJ 17/05/2006).
- CALLEGARI, André Luiz; LYNETT, Eduardo Montealegre; JAKOBS, Günter; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal e Funcionalismo. 1 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, pg. 93.
- "Embora objetivando aumentar o rigor do tratamento dispensado àqueles que atuam de forma irresponsável no trânsito, a proposta pode ensejar efeito colateral contrário ao interesse público."
- Contra o atual caráter de perigo abstrato tipificado no art. 306 do CTB: GOMES, Luiz Flávio. Lei seca: fiscalização e menos mortes. O Estado de São Paulo, 08-08-08, A2. O autor sufraga o caráter fundamental da garantia da ofensividade ao bem jurídico como indispensável no Direito Penal contemporâneo.
- Os Tribunais reputam legítima a previsão de crimes de perigo abstrato: "Ao legislador é que compete atribuir valor em abstrato a condutas, criminalizando-as e prevendo as sanções respectivas, seara na qual ao Judiciário, de regra, não é dado se imiscuir. Assim, não há inconstitucionalidade na postura mais severa do legislador em relação à questão das armas, que tem desencadeado amplas campanhas de desarmamento. E se trata de crime de perigo abstrato, sem a necessidade, pois, para o seu reconhecimento judicial, de situação especial e caracterizada de perigo" (Apelação Crime Nº 70010456598, Sétima Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marcelo Bandeira Pereira, Julgado em 28/04/2005).
- Doutrina utiliza o termo despenalizadores. Penso que os delitos persistiram, até se fomentou a persecução, apenas tornou menos provável a privação da liberdade em prol das medidas alternativas.
- A jurisprudência entende constitucional o alargamento dos institutos despenalizadores para além da Lei 9099/95: "Embriaguez ao volante. O art. 291, parágrafo único, do CTB, determinou a aplicação de apenas três dispositivos da Lei 9099/95 (ARTS. 74, 76 E 88) aos delitos de lesões culposas, embriaguez ao volante e competição não autorizada. Os institutos da composição cível e transação penal não transformam delitos com pena carcerária máxima acima de um ano, automaticamente, em infrações de menor potencial ofensivo. Inexistência de vedação constitucional a aplicação de ambos os institutos mencionados a infrações comuns" (Conflito de Competência Nº 699248647, Oitava Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Tupinambá Pinto de Azevedo, Julgado em 11/08/1999).
- CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Volume 1. 12 ed. São Paulo: Saraiva, pg. 267.
- Contra, não admitindo a transação à embriaguez ao volante nem sob a égide da anterior redação. JESUS, Damásio de. Crimes de Trânsito, 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, pg. 43.
- CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, Legislação Especial. Volume 4. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2006, pg. 302.
- Art. 276. A concentração de seis decigramas de álcool por litro de sangue comprova que o condutor se acha impedido de dirigir veículo automotor.
- Art. 277, parágrafo segundo. No caso de recusa do condutor à realização dos testes, exames e da perícia previstos no caput deste artigo, a infração poderá ser caracterizada mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas pelo agente de trânsito acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor, resultantes do consumo de álcool ou entorpecentes, apresentados pelo condutor.
- SILVA, Davi André Costa; EBERHARDT, Marcos. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, volume I. 1 ed. Porto Alegre: Ed. Verbo Jurídico, 2008, p. 261.
- Caso da validade do Decreto 6.488, de 19 de junho de 2008, a seguir comentado.
- CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 14 ed. Ed. Saraiva. São Paulo: 2007, pg. 313.
- DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto; JÚNIOR, Roberto Delmanto; DELMANTO, Fabio M. de Almeida. Código Penal Comentado. 7 ed. Ed. Renovar. São Paulo: 2007, pg. 21.
- TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2001, pg 34.
- FELDENS, Luciano; SCHMIDT, Andrei Zenkner. Investigação Criminal e Ação Penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2005, pg. 35.