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A inconstitucionalidade da incidência do ICMS no consumo de água encanada

Agenda 03/11/2008 às 00:00

A cobrança se baseia em discursos infundados e ideológicos, por mais que persista a necessidade social da água, e persiste porque está atrelada a uma fonte de receita segura e volumosa.

RESUMO: O presente estudo tem como objetivo analisar a inconstitucionalidade da incidência do ICMS sobre o consumo de água encanada, considerando a previsão deste imposto no Ordenamento Jurídico Brasileiro, as concepções de mercadoria e serviços, e ainda os conceitos jurídicos divergentes que recaem sobre a água.

PALAVRAS-CHAVE: ICMS; Fornecimento de Água; Mercadoria; inconstitucionalidade.


1.Introdução

As discussões relacionadas à inconstitucionalidade da incidência do Imposto Sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) no consumo da água encanada são verificadas desde o surgimento do referido imposto, com a promulgação da Carta Magna de 1988, e provocam interessante análise de Legislações Estaduais que classificam a distribuição da água potável como atividade mercantil.

A fundamentação é construída por concepções que apontam à água canalizada como bem dotado de valor econômico, diferente daquele encontrado em seu estado natural (água bruta), já que sofre tratamento químico necessário para consumo, ou seja, o seu fornecimento é previsto como operação relativa à circulação de mercadoria.

De outro lado, chama a atenção o entendimento de alguns doutrinadores que defendem a água como bem público e indissociável do meio ambiente, sendo a sua distribuição questão de saúde pública.


2.Da Previsão Constitucional do ICMS

Antes mesmo de adentrar na discussão referente à incidência do ICMS no fornecimento da água encanada, importa verificar o tratamento dispensado pelo Constituinte a este imposto.

Trata-se de um tributo de caráter predominantemente fiscal e não cumulativo que surge em substituição ao ICM (Imposto sobre Mercadoria), já que ampliou o âmbito de sua incidência, passando a recair, também, sobre as prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal.

Já trata o artigo 155, II da Constituição Federal de 1988:

"Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

(...)

II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;"

Além de significar a maior fonte de receita das Unidades Federativas, a cobrança do ICMS é de competência dos Estados e do DF, devendo o seu fato gerador está descrito em leis estaduais, em conformidade com as normas gerais estabelecidas na Lei complementar nº 87 de 13 de setembro de 1996 [01].

Necessariamente, o entendimento da sua incidência implica na análise de algumas expressões contidas no referido dispositivo constitucional.

2.1 Operações relativas à circulação

O vocábulo "operações" utilizado pelo legislador ultrapassa os limites empregados pela economia. O seu significado revela-se como ato jurídico, cuja execução promove a transmissão de direito.

Geraldo Ataliba expõe operações como

"atos jurídicos; atos regulados pelo Direito como produtores de determinada eficácia jurídica; são juridicamente relevantes; circulação e mercadorias são, nesse sentido adjetivos que restringem o conceito substantivo de operações" [02]

Neste sentido, apreendem-se operações como negócios jurídicos qualificado pela atividade mercantil, ou seja, tratam-se atos regulados pelo direito e que são hábeis para animar a circulação de mercadorias.

Juridicamente, o verbo circular importa em ação que promove a mudança de titular, não se restringindo a transferência de propriedade, mas também a de posse fruto de negociação.

No que se refere ao conceito utilizado para instituição do ICMS, acolhe-se a lição de Carvalho Mendonça que visualiza circulação com o seguinte posicionamento:

"as mercadorias, passando por diversos intermediários no seu percurso no seu percurso entre os produtores e os consumidores,constituem objeto de variados e sucessivos contratos. Na cadeia dessas transações dá-se uma série continuada de transferência da propriedade ou posse das mercadorias. Eis o que diz circulação de mercadorias." [03]

A Circulação de bens depende da tutela jurídica e concretiza-se na transmissão de direito, ou seja, é a mudança de propriedade ou posse provocada pela operação e assegurada por determinada regulamentação.

É a operação o fato tributado pelo ICMS. A circulação e a mercadoria são elementos que atuam como qualificadoras da atividade. Para se sujeitar ao ICMS, à operação realizada não basta ser simplesmente um negócio jurídico, mas atividade que impulsione a circulação de determinada categoria de bens, intitulada mercadoria.

2.2 Mercadoria

No âmbito do Direito tributário traz-se uma acepção consolidada ao longo do tempo de que mercadoria é o bem móvel destinado ao comércio, ou seja, o que classifica um bem como mercadoria é a sua destinação.

Atenta-se a lição de Antonio Roque Carrazza:

"Não é qualquer bem móvel que é mercadoria, mas só aquele que se submete à mercancia. Podemos, pois, dizer que toda mercadoria é bem móvel, mas nem todo bem móvel é mercadoria. Só o bem móvel que se destina à prática de operações mercantis é que assume a qualidade de mercadoria." [04]

Afirma Soares de Melo:

"Mercadoria é bem corpóreo da atividade empresarial do produtor, industrial e comerciante, tendo por objeto a sua distribuição para consumo, compreendendo-se no estoque da empresa, distinguindo-se das coisas que tenham qualificação diversa, segundo a ciência contábil, como é o caso do ativo fixo." [05]

Aliomar Baleeiro diz que o conceito de mercadoria é "exclusivo aos lindes do direito mercantil, como espécie do gênero produtos, como bem econômico que alguém com o propósito deliberado de lucro, produz para vender ou compra para." [06]

O doutrinador Hugo de Brito Machado afirma que

"O que caracteriza uma coisa como mercadoria é a destinação. Mercadorias são aquelas coisas móveis destinadas ao comércio. São coisas adquiridas pelos empresários para revenda, no estado em que as adquiriu, ou transformadas, e ainda aquelas produzidas para venda". [07]

e diz ainda,

"Se a Constituição fala de mercadoria ao definir a competência dos Estados para instituir e cobrar o ICMS, o conceito de mercadoria há de ser o existente no Direito Comercial. Admitir-se que o legislador pudesse modificá-lo seria permitir ao legislador alterar a própria Constituição Federal, modificando as competências tributárias ali definidas". [08]

Eleva-se o entendimento de que o conceito de mercadoria vincula-se à capacidade econômica, pois, necessariamente, se trata de objeto passível de negociação com intuito de lucro, ou seja, objeto de negociação ou transmissão entre particulares, sem implicar em mercancia, representa natureza distante de mercadoria.

Outro aspecto importante diz respeito ao caráter comercial da mercadoria, pois a sua presença na qualidade de estoque demarca influência direta na disponibilidade financeira da empresa, já que agrega o seu ativo circulante.

2.3 Prestação de serviços

Diferentemente de mercadoria os serviços são intangíveis e invisíveis, e não se pode estocá-los. Suas características que distinguem o conceito de serviço do conceito de bens, necessariamente, a prestação de serviços compreende ações como dar, conceder, desenvolver, realizar uma atividade material ou intelectual, utilizando-se qualquer atividade profissional, autônoma ou empresarial.

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As prestações de serviços abrangidas pela incidência do ICMS referem-se, exclusivamente, as de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, previstas no art. 155, II da CF/88 e no art. 2º, II e III da Lei complementar nº 87/96. Não se admite que serviços outros sejam sujeitos de tributação por meio do ICMS.


3. A Incidência do ICMS na Água encanada

O interesse de tributar a distribuição da água encanada por meio do ICMS advém desde o surgimento do referido imposto, com a promulgação da Constituição de 1988, dada à previsão da competência dos Estados e DF para instituir a cobrança do ICMS.

Leis Estaduais passaram a regulamentar a incidência do ICMS sobre a água canalizada, descrevendo o seu fornecimento como operação relativa à circulação de mercadorias. A classificação sustenta-se no argumento de que a água distribuída à população é submetida a um complexo processo de tratamento, sendo diferente daquela encontrada no seu estado natural.

Inevitavelmente, as previsões legais acabaram por provocar posicionamentos contrários a este tipo de tributação, sob o fundamento de que a distribuição da água aos domicílios é prevista no ordenamento jurídico como serviço de saneamento público, não sendo sujeita ao ICMS.

A primeira conseqüência da polêmica configurada foi à celebração do Convênio ICMS, na 17ª Reunião Extraordinária do Conselho de Política Fazendária [09], prevendo a seguinte resolução:

"Cláusula primeira Ficam os Estados e o Distrito Federal autorizados a:

I - conceder isenção do ICMS em operações com água natural canalizada, nas hipóteses previstas na legislação estadual;

II - conceder dispensa do recolhimento do imposto devido até a data da implementação deste Convênio.

Cláusula segunda Este Convênio entra em vigor na data da publicação de sua ratificação nacional, produzindo efeitos até 30 de abril de 1991."

Prorrogado por algumas vezes [10], o Convênio 98/89 é revogado pelo CONVÊNIO ICMS 77/95 [11] que prever

" Cláusula primeira Ficam os Estados do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul autorizados a revogar a isenção água canalizada, concedida com base no Convênio ICMS 98/89, de 14 de novembro de 1989.

Cláusula segunda Ficam os Estados do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul autorizados a reduzir a base de cálculo do ICMS nas operações internas com água natural canalizada, em até 100% (cem por cento), de acordo com critérios e parâmetros a serem definidos pela legislação estadual.

Cláusula terceira Este Convênio entra em vigor na data da publicação de sua ratificação nacional, produzindo efeitos a partir de 1º de janeiro de 1996."

De 1995 a 2003, os Estados do Ceará, Maranhão, Minas Gerais, Piauí, Espírito Santo, Paraíba, Rio Grande do Norte, Rondônia, Bahia, Sergipe, Tocantins e Pernambuco aderiram ao convênio 77/95 e passaram a tributar o consumo da água encanada.

Como exemplo de norma Estadual que prever a incidência do ICMS no abastecimento de água, tem-se o Decreto nº 32.535 de 18 de fevereiro de 1991, do Estado de Minas Gerais.

"Art. 546 – A base de cálculo do imposto incidente sobre o fornecimento de água natural, bruta, ou purificada após tratamento, é o valor da operação relativa ao fornecimento de água a consumidor final.

§ 1º - O fornecedor de água, em substituição aos créditos relativos às entradas de mercadorias em seu estabelecimento e à utilização de serviços, poderá optar pelo crédito global presumido de 60% (sessenta por cento) do ICMS devido."

A Secretaria da Fazenda do Estado da Bahia afirma que "o fornecimento de água (bem corpóreo) configura uma operação de circulação de mercadoria sujeita a ICMS" [12]

Importante perceber que a incidência do ICMS sobre o fornecimento da água só se faz possível mediante o seu enquadramento como operação relativa à circulação de mercadoria, já que os únicos serviços sujeitos a este tipo de imposto são os de transporte interestadual e intermunicipal e os de comunicação.


4. Da Inconstitucionalidade

As afirmações relativas à inconstitucionalidade das Leis Estaduais que instituem a cobrança do ICMS na distribuição da água, partem de duas principais premissas, a saber: a) A água distribuída para a população é prevista no Ordenamento Jurídico Brasileiro como bem público inalienável e indissociável do meio ambiente, não cabendo a sua classificação como mercadoria; b) O tratamento e o fornecimento da água são serviços de saneamento básico, de competência do Poder Público.

Certamente, estas duas perspectivas atacam diretamente o critério material do ICMS, uma vez que, como já abordado em tópico anterior, a sua incidência só se torna possível mediante a classificação da distribuição da água como operação relativa à circulação de mercadoria.

4.1 A Água Canalizada é Mercadoria?

Se por um lado à distribuição da água a população é defendida como operação relativa à circulação de mercadoria, necessariamente à água passa a pertencer a uma especial categoria de bem, dotado de natureza mercantil e destinado à venda ou a revenda com intuito de lucro como objeto de comercialização. Já registra Hugo de Brito Machado:

"1°) O fornecimento de água não constitui, no sistema jurídico brasileiro, um serviço público em sentido estrito, imune à tributação. 2°) É razoável, outrossim, entender-se que não constitui um serviço , no sentido em que o termo é utilizado no Direito Tributário, e finalmente, 3°)É razoável entendê-lo como operação relativa à circulação de mercadorias." [13]

O entendimento de Brito Machado apega-se a identificação da água encanada como mercadoria, uma vez que se trata de recurso natural retirado do rio, lago ou lençol subterrâneo (água bruta), que sofre tratamento por agentes transformadores (energia, equipamentos, mão-de-obra e produtos químicos) e é distribuído à população.

Num posicionamento contrário, afirma o Tributarista Clélio Chiesa

"A água jamais é uma mercadoria, a não ser se for vendida em unidades; mas esta que é fornecida nas residências e partindo de um pressuposto de que é considerado um serviço essencial." [14]

A lição do Professor Chiesa traz como referência as reflexões pertinentes à natureza da água como bem público e recurso natural essencial à vida.

A essencialidade relaciona-se diretamente ao direito de acesso à água para atender às necessidades básicas do ser humano, sendo um direito fundamental, uma vez que o seu tratamento e distribuição são usados como forma de garantir a saúde pública e, conseqüentemente, proteger a dignidade da pessoa humana, prevista no Art. 1º, III da Carta Magna de 1988.

Já trata, inclusive, a Declaração dos Direitos da Água instituída pela Organização das Nações Unidas – ONU em 22 de março de 1992:

"Art. 2° - A água é a seiva do nosso planeta. Ela é a condição essencial de vida de todo o ser vegetal, animal ou humano. Sem ela não poderíamos conceber como são a atmosfera, o clima, a vegetação, a cultura ou a agricultura. O direito à água é um dos direitos fundamentais do ser humano: o direito à vida, tal qual estipulado no Art. 3° da Declaração Universal dos Direitos do Homem"

Dada a sua importância a coletividade, o Ordenamento Jurídico concebe a água a natureza de bem de domínio público, sendo classificada como bem de uso comum do povo. A Constituição Federal de 1988, prever:

"Art. 20. São bens da União:

III - os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais";

"Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados:

I - as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União"

Na condição de bem público, a água é inalienável, e assim distancia-se da possibilidade de ser agregada ao patrimônio privado, quiçá ser objeto de mercancia.

Paulo Affonso Leme Machado expõe

"a água, como bem de uso comum do povo: não pode ser apropriada por uma só pessoa, física ou jurídica, com exclusão absoluta de outros usuários em potencial; o uso da água não pode significar a poluição ou a agressão desse bem; o uso da água não pode esgotar o próprio bem utilizado; e a concessão ou autorização (ou qualquer tipo de outorga) do uso da água deve ser motivada ou fundamentada pelo gestor público." [15]

Em verdade, o tratamento e fornecimento da água são previstos no Ordenamento Jurídico Brasileiro como serviços de saneamento básico, sendo essenciais e de competência do Estado, podendo ser prestados por concessionários, mediante previsão legal e por conveniência do Poder Público.

Por mais que existam esforços para detectar a natureza mercantil da água encanada, esta possibilidade. Além de ser prevista no Ordenamento jurídico Brasileiro como bem público, verifica-se que o seu tratamento químico e a sua distribuição são apontados como prestação de serviços públicos.

4.2 Dos serviços de tratamento e distribuição da água

Os processos de captação, tratamento e abastecimento de água compreendem um conjunto de serviços que buscam assegurar a universalidade e qualidade para consumo da população, traduzido em Lei como Saneamento Básico.

No Brasil, os processos inerentes ao serviço de saneamento básico são de competência do Estado, conforme descreve a Carta Magna de 1988:

"Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

...

IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico;"

A Lei 11.4445 de 05 de janeiro de 2007 descreve que:

"Art. 2o  Os serviços públicos de saneamento básico serão prestados com base nos seguintes princípios fundamentais:

I - universalização do acesso;

II - integralidade, compreendida como o conjunto de todas as atividades e componentes de cada um dos diversos serviços de saneamento básico, propiciando à população o acesso na conformidade de suas necessidades e maximizando a eficácia das ações e resultados;

III - abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo dos resíduos sólidos realizados de formas adequadas à saúde pública e à proteção do meio ambiente;"

No que pese a importância do serviço de distribuição de água encanada e a competência do Estado para a sua execução, a lei possibilita, por conveniência do poder público, a prestação do serviço de saneamento básico por concessionários.

Ainda que os serviços passem a ser prestados por terceiro, aquele não deixa de ser público e a água não deixa de ser um bem do Estado. O concessionário é autorizado a tratar e distribuir a água, mas esta não é alienada, sequer é agregada ao seu ativo.

O Código das Águas (Decreto nº. 24.643 de 1934) descreve:

"Art. 44. A concessão para o aproveitamento das águas que se destinem a um serviço público será feita mediante concorrência pública, salvo os casos em que as leis ou regulamentos a dispensem.

Parágrafo único. No caso de renovação será preferido o concessionário anterior, em igualdade de condições, apurada em concorrência."

"Art. 46. A concessão não importa, nunca, a alienação parcial das águas públicas, que são inalienáveis, mas no simples direito ao uso destas águas."

Importa ainda o que prever a Lei nº. 9.433/97 (Lei de Política Nacional de Recursos Hídricos):

"Art. 12. Estão sujeitos a outorga pelo Poder Público os direitos dos seguintes usos de recursos hídricos:

I - derivação ou captação de parcela da água existente em um corpo de água para consumo final, inclusive abastecimento público, ou insumo de processo produtivo;"

"Art. 18. A outorga não implica a alienação parcial das águas, que são inalienáveis, mas o simples direito de seu uso."

Tem-se como exemplo, a Empresa Baiana de Águas e Saneamento S/A – EMBASA que, na condição de concessionária, presta serviços de saneamento básico no Estado da Bahia, nos termos do Decreto Estadual/BA 3060 de 29 de abril de 1994:

"Art. 1º - Este regulamento dispõe sobre a prestação de serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, prestados pela Empresa Baiana de Águas e Saneamento S/A – EMBASA, concessionária destes serviços.

Art. 2º - Para os fins deste Regulamento são adotadas as seguintes definições:

ABASTECIMENTO DE ÁGUA - É o fornecimento de água aos usuários da EMBASA, considerando as condições e padrões estabelecidos, tanto pelas exigências técnicas operacionais específicas como também pela legislação pertinente...

TARIFA -É o preço cobrado pela EMBASA referente à prestação de serviços de abastecimento de água e/ou esgotamento sanitário...

USUÁRIO - Pessoa física ou jurídica, proprietária ou responsável legal de imóvel ou instalação provisória que utiliza os serviços públicos de abastecimento de água e/ou esgotamento sanitário."

Decreto Estadual deixa claro que o abastecimento de água significa prestação de serviço público, passível de cobrança por tarifa, sendo a EMBASA prestadora de serviço autorizada para exercer serviços de saneamento básico.

4.3 Dos posicionamentos Doutrinários e Jurisprudenciais

Conforme foi verificado, ainda que existam esforços para justificar a incidência do ICMS sobre o fornecimento da água aos domicílios, pesa as previsões contidas no Ordenamento Jurídico Brasileiro em que se tem, não só a classificação da água como bem público, mas o reconhecimento do próprio Legislador Estadual de que o tratamento e o fornecimento da água significam prestação de serviços. Sobre o assunto, afirma Chiesa.

" ... o Estado não pode cobrar ICMS, porque é incompatível com as normas constitucionais e diante disso a cobrança deve ser afastada. O consumidor deve se atentar para este fato e ver que no contexto de sua conta de água está o ICMS e se insurgir contra esta cobrança." [16]

Complementa o Professor José Eduardo Soares de Melo

"não se tributa (ICMS) a água em estado bruto (bem público não destinado a comércio); a água utilizada no preparo de alimentos, higiene, etc. e a água encanada e tratada (sujeita a taxa); embora o Convênio ICMS nº 98, de 24.10.89, tenha disposto sobre a isenção no fornecimento de água natural canalizada, evidenciando que poderia (à falta de convênio) ser objeto de tributação." [17]

A abordagem trazida pelos especialistas não só ratifica o entendimento da água como bem público e essencial à vida, como prever a inconstitucionalidade da sua tributação por meio de ICMS, já que se trata de bem comum do povo, sem destinação ao comércio. Seria objeto de mercadoria se a água pertencesse ao patrimônio dos concessionários e estes exercessem a atividade de comercialização. No entanto, como já declarado, os concessionários fornecem serviços de tratamento e abastecimento de água, não executam qualquer operação relativa à circulação de mercadorias.

Interessante a menção de Soares Melo ao Convênio ICMS 98/89. Verifica-se que o referido convênio, apesar de prever a possibilidade de isenção do ICMS no fornecimento da água, não trata da natureza do serviço propriamente dito. Em verdade, o fato de autorizar a existência de isenção, leva a crer que a distribuição da água tratada é uma operação relativa à circulação de mercadoria, sendo a tributação por meio do ICMS uma faculdade dos Estados.

Não só a CF/88, como a Lei Kandir, descrevem com clareza o âmbito do ICMS. Caberia aos Estados e ao DF instituir Leis relativas à incidência do imposto em consonância com as previsões das Leis Superiores. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro já se posicionou

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO TRIBUTÁRIO. AÇÃO PRINCIPAL E CAUTELAR. INSURGE A AUTORA SOBRE A INCIDÊNCIA DE ICMS SOBRE DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA CANALIZADA. SENTENÇA IMPROCEDENTE. APELAÇÕES. A apelante não realiza "operações", na verdade, ela presta serviços de fornecimento de água canalizada mediante concessão. Trata-se de um serviço público essencial e de necessidade pública especifica e divisível, não podendo a respectiva prestação ser erigida como fato gerador de imposto. Peca a sentença monocrática ao classificar o fornecimento de água canalizada como "mercadoria", para fazer incidir sobre esta atividade o imposto reclamado. A apelante não compra água para revender, tem apenas a concessão para o seu aproveitamento e fornecimento, o que não lhe transfere a propriedade. Aplicação do art. 46 do Código de Aguas. Não incidência do ICMS na hipótese sub judice. RECURSOS CONHECIDOS E PROVIDOS. [18]

Importa registrar, também, a decisão do STF sobre o assunto

"CAUTELAR.AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGOS 546, 547 E 548 DO DECRETO N. 32.535, DE 18 DE FEVEREIRO DE 1991, DO ESTADO DE MINAS GERAIS. ALEGADA INFRINGÊNCIA AOS ARTS. 150, I E VI, § 2º., E 155, I, "b", DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Relevância do direito, caracterizada pela circunstância de haver-se definido, por decreto, fato gerador e base de cálculo de tributo; e, ainda, por ter-se pretendido modificar, pela mesma via, a natureza jurídica do fornecimento de água potável, encanada, as populações urbanas, transmudando-a de serviço público essencial em circulação de mercadoria. É fora de dúvida que a abrupta assimilação da operação a uma saída de mercadoria,para efeito de exigência do ICMS, não pode ser aceita de modo pacífico, sem consideração ao direito – que em princípio,é der reconhecido às respectivas concessionárias – de permanecerem exoneradas do pagamento do imposto em tela, sobre a água fornecida. Periculum in mora" igualmente configurado, em face da extrema dificuldade de recuperação dos valores correspondentes ao tributo que vier a ser pago. Cautelar deferida.." [19]

O Código das Águas expõe com clareza que a prestadora de serviço não detém a propriedade das águas que distribui a população. De fato, a concessionária não produz a água, mas a retira do meio ambiente para utilização, mediante autorização prévia do Estado.

Em verdade, a concessionária executa os serviços públicos de tratamento e fornecimento da água por conveniência do Estado, já que se trata de um bem necessário para manter a saúde da coletividade.

Não sendo mercadoria, o seu fornecimento não implica em operação relativa a circulação e assim, não há que se falar na incidência do ICMS, uma vez não identificado o critério material necessário.


6. Considerações Finais

Não restam dúvidas quanto à inconstitucionalidade das normas Estaduais que sujeitam a distribuição da água ao ICMS, inclusive, a maior parte da doutrina e as decisões jurisprudenciais deixam claro este posicionamento.

A questão está relacionada à própria natureza mercantil do imposto que não tem a mínima identidade com o fim social da água canalizada. Os serviços de saneamento básico incorporam a competência do Estado de assegurar a saúde pública, já que a água é um recurso natural fundamental a vida.

Não é novidade, nem mesmo para os Legisladores Estaduais, que a cobrança do ICMS sobre o fornecimento da água se baseia em discursos infundados e ideológicos, por mais que persista a necessidade social da água. Os Estados sabem muito bem que este tipo de tributação apresenta vícios graves que contraria uma série de normas superiores.

A cobrança persiste porque está atrelada aos interesses do Estado em manter uma fonte de receita segura e volumosa para os cofres públicos, por mais que haja um desrespeito claro a norma constitucional.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Código tributário nacional. São Paulo : Saraiva, 2005.

ATALIBA, G. Hipótese de incidência tributária. São Paulo : Malheiros, 2001.

CARRAZZA, R. A. Curso de direito constitucional tributário : atualizado até a EC/42.ed. São Paulo : Malheiros, 2004.

CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 7ª ed. Malheiros: São Paulo, 2001.

COELHO, S. C. N. Comentários à Constituição de 1988 : sistema tributário. Rio de Janeiro : Forense, 1999.

Constituição da República Federativa do Brasil - 1988, com as Emendas Constitucionais promulgadas e publicadas até a data de publicação deste Edital.

GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito de águas: disciplina jurídica das águas doces. São Paulo: Atlas, 2001.

LEME MACHADO, Paulo Affonso. Recursos hídricos. São Paulo: Malheiros, 2002.

MACHADO, R Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário, 10º edição, Malheiros, São Paulo, 1994.

MELO, J. E. S. de. ICMS : teoria e prática. 10º. ed. São Paulo : Dialética, 2008.


Notas

  1. Trata-se da "Lei Kandir" que veio atender ao dispositivo constitucional, estabelecendo normas gerais sobre o ICMS, substituindo os convênios interestaduais. A Lei 87/96 dispõe sobre o imposto dos Estados e do Distrito Federal sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, e dá outras providências
  2. "Núcleo de Definição Constitucional do ICM". Revista de Direito Tributário vols. 25/26, p.104.
  3. Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. V/76, 3º ed., Freitas Bastos, Rio de Janeiro, parte I.
  4. ICMS. 7ª ed. Malheiros: São Paulo, 2001, p. 39
  5. ICMS – TEORIA E PRÁTICA, 10º ed. Dialética, São Paulo, 2008, p16.
  6. ICM sobre Importação de Bens de Capital para Usos do Importador, Revista Forense vol. 250, p.143
  7. Curso de Direito Tributário, 19º ed. Malheiros, São Paulo, p.219.
  8. "Curso ...", p. 220.
  9. A referida reunião extraordinária foi realizada em Brasília , em 26 de outubro de 1989, tendo como partes o Ministério da Fazenda e as Secretarias de Fazenda ou Finanças dos Estados e do Distrito Federal
  10. As prorrogações foram estabelecidas pelos Convênios ICMS 07/91, 67/92 e 151/94.
  11. O Convênio ICMS Autoriza os Estados do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul a revogar a isenção concedida à água canalizada e dá outras providências.
  12. Fundamento registrado no requerimento de denegação da ADIN 2.224-5 / DF, Rel. Min. Nelson Jobim, DJU de 30 de maio de 2001,fls. 119.
  13. Regime Tributário da Venda de Água, Rev. juríd. Da Procuradoria-Geral da Fazenda Estadual/Minas Gerais, nº 05, pg. 11.
  14. Cobrança de ICMS na Conta de Água é Inconstitucional, Rev. De direito Tributário da APET, ano III, ed. 12, dez. /2006, p.234.
  15. Recursos hídricos. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 25.
  16. "Cobrança de ICMS ..."
  17. "ICMS – Teoria e Prática..."
  18. 2003.001.26354 – APELACAO, DES. JOAQUIM ALVES DE BRITO - Julgamento: 29/11/2005 - NONA CAMARA CIVEL
  19. ADI 567 MC / DF, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJU de 04 de outubro de 1991
Sobre o autor
Alisson Vinicio Freitas Silva

bacharelando do curso de Direito da Faculdade de Tecnologia e Ciências- FTC

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Alisson Vinicio Freitas. A inconstitucionalidade da incidência do ICMS no consumo de água encanada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1951, 3 nov. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11926. Acesso em: 26 nov. 2024.

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