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A dissolução do casamento e "culpa".

Uma abordagem axiológica da garantia constitucional da "felicidade humana" (art. 3º, IV, da CF)

Agenda 07/11/2008 às 00:00

De regra, nas ações judiciais visando a dissolução dos vínculos afetivos, as pessoas buscam encontrar um "culpado" pela ruptura do convívio conjugal, pela disjunção afetiva, mantendo o dedo indicador em riste em acusações recíprocas. Não basta a separação em si; necessitam apontar um culpado, canalizando essa culpa para o outro. É compreensível, a perceber pela tradição brasileira e pelo psiquismo humano. Neste particular, é importante salientar que há dois posicionamentos antagônicos, tanto na doutrina quanto na jurisprudência: um, seguindo a literalidade dos ditames do Código Civil (elaborado na década de 70), num posicionamento tradicionalista conservador, nos moldes do Código Civil de 1916, sobretudo com ênfase no direito obrigacional; outro, em posição de vanguarda, com sustentáculo em bases principiológicas constitucionais, com enfoque na dignidade da pessoa humana. Esta incursão teórica abraça o segundo posicionamento. Veja aqui.

Quando as serenas cores do afeto se desvanecem nos porões do coração humano ferido; os caquinhos do "amor sem fim" se espalham pelo solo das emoções; o sonho vicejante de ser amado perde o fulgor; quando o beijo perde o sabor da juventude e o calor da cumplicidade; quando os devaneios da inocência se evaporam no calor do triste silêncio e não mais há a troca gostosa de olhares; quando a frustração invade os corações doridos sem pedir licença e as mãos se desenlaçam; a cotidianidade intolerante assombra o encanto e a chama do primeiro amor; quando a ruptura do que se construiu ao longo da existência começa a ruir como um bonito castelo de areia na beira das ondas do mar, resta aos (des)amantes projetar no outro as suas culpas, como um mecanismo psíquico do inconsciente, daí, em mirada inter, trans e multidisciplinar, volve-se o olhar para a psicanálise, consoante pregação de Rodrigo da Cunha Pereira [01]. Veja abaixo.

"Mas uma coisa é certa: o Direito, a partir da influência da Psicanálise, não pode mais deixar de considerar a família como uma Estruturação Psíquica, para apreender mais profundamente as relações que pretende legislar e ordenar. Caso contrário, o Direito de Família continuará, incessantemente, carente de alterações, sem encontrar a melhor adequação á realidade".

Retornando ao raciocínio: encontrar, entrementes, um culpado, afronta princípios constitucionais, tais como: a privacidade (do lar já em ruínas), a intimidade, a liberdade, o respeito à diferença, a solidariedade, a proibição do retrocesso social, a afetividade, culminando por atingir a própria dignidade da pessoa humana, valor fundante, superprincípio e diretriz interpretativa de toda a ordem jurídica. Assim é que, quando o Estado invade (intervenção invasiva; não protetiva) o aconchego da intimidade do lar para bisbilhotar quem foi o "culpado" (e existe um culpado? Sob a ótica de quem?) da quebra do convívio, estar-se-ia permitindo uma interferência estatal completamente inconstitucional. Decerto, o "adultério", por exemplo, elencado no Código Civil como "causa" de separação, não é causa em si; é efeito de um relacionamento em ruínas; é sinal de que a relação não vai bem e o desrespeito e a deslealdade entram de mansinho, mas já batiam a porta insistentemente. O rancor toma o lugar do amor em recíprocas acusações, mas há de se fazer mea culpa.

Sob esse viés, a Constituição Federal não autoriza terceiro – incluindo o Estado – a invadir, sem a devida permissão, a esfera da intimidade de um ou de ambos os cônjuges, de maneira que não se pode conceber a idéia de um dispositivo legal obrigar a um dos cônjuges a expor a vida do outro em Juízo, numa execração pública, para que terceiro desinteressado meça a conveniência da extinção do vínculo afetivo, seja de que modalidade for. Impor essa condição para a dissolução judicial esbarra em preceitos garantísticos de estatura constitucional. E, afinal, de quem, verdadeiramente, é a culpa?

Soa despropositado o ônus de provar a conduta culposa de seu consorte com o intuito de obter "êxito" (êxito?) na dissolução do vínculo afetivo. Pensar assim estar-se-ia maculando, à obviedade, a dignidade do outro. Em algumas situações, a separação não é um mal; é um bem. Atualmente o Estado não tem mais o interesse de manter o casamento vivo a qualquer preço e em detrimento da dignidade humana. Sempre benfazeja é a lição vanguardista da Desembargadora Maria Berenice Dias [02]. Ouçamo-la com atenção, a seguir.

"Algumas inconstitucionalidades no Código Civil decorrem da afronta ao princípio da liberdade, tais como a imposição de prazo de vigência de um ano de casamento para a separação consensual (CC 1.574), bem como a exigência da separação por dois anos para a busca do divórcio (CC 1.580 § 2º). Infringe o princípio da liberdade juntamente com o da privacidade e o da intimidade a necessidade de imputar a culpa ao cônjuge para a obtenção da separação antes do decurso de um ano da cessação da vida em comum". (Sublinhei. Os grifos constam no original).

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Nessa linha de raciocínio, condicionar a dissolução do vínculo entre as pessoas que perderam o afeto, base nuclear das relações familiares, a apontarem, como algozes inquisitivos, os pecados cometidos pelo outro com o intuito de expiá-los, no mínimo configura um retrocesso social sem par, um retorno à Idade Média. A propósito, pense-se na seguinte situação singela, em tópicos sucessivos: 1) Fulano, ao ajuizar ação de separação judicial, não provou a culpa de Beltrana; 2) O Estado-Juiz, à míngua de prova, julgou improcedente o pedido de separação; 3) O Estado, então, "obrigou" os dois a permanecerem casados, já que indeferiu o pedido de dissolução; 4) Um dos "deveres" dos cônjuges é o chamado "débito conjugal" (!), ligado à sexualidade, de maneira que o Estado obrigou Fulano e Beltrano a manterem relações sexuais, sob pena de darem "causa" (?) à separação. No mínimo, um absurdo! Afinal, não se pode pensar nas relações jurídicas familiais com os mesmos elementos do direito obrigacional e esse equívoco ocorre amiúde. Não se trata situações diferentes de forma igual. Com a palavra, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald [03].

"A Lei nº 11.441/07 (que permite a dissolução do casamento, consensualmente, em cartório) é simbólica nesse quadrante, servindo para representar o fim do excesso de interferência estatal na vida privada, ocupando seus importantes organismos com funções desvirtuadas e inócuas. E, em outra margem, é reconhecida uma planilha de direitos fundamentais atinentes à privacidade de cada indivíduo, que não pode ser violada por ninguém, nem mesmo pelo Estado, seja a que pretexto for. É certo que ninguém mais, além dos próprios cônjuges, poderá saber o momento oportuno para a dissolução de um casamento. Somente as partes podem valorar a suportabilidade da vida conjugal e a superação de determinados traumas e mágoas para a realização plena de cada uma das pessoas envolvidas. Por isso, o sistema jurídico (seja o direito material, seja o direito processual) tem de se adequar a essa realidade e, reconhecida a existência de limites para a intervenção estatal na vida privada, respeitar a autonomia dos titulares de direitos para a sua própria autodeterminação."

Têm razão esses escritores. Impor um fardo pesado de permanecer juntos àqueles que não desejam mais compartilhar sua vida com o outro que um dia amou ou prometeu amar; não querem degustar, na mesma mesa, o saboroso alimento; não querem dividir (ou multiplicar?) o mesmo lençol perfumado com o perfume do afeto; não querem, no fim do dia, se aninharem, com os olhos cerrados, nos braços um do outro numa cumplicidade serena; não querem trocar palavras no fim de uma jornada exaustiva, no descer da noite escura, nas caladas de uma madrugada fria e silenciosa. E ali, no meio dos travesseiros, a indiferença é cruel e machuca o outro que espera o toque carinhoso do amante.

Assim, o Estado pode impedir a dissolução oficial, numa "brilhante" sentença, mas jamais – diga-se uma vez mais: jamais – impedirá a dissolução da alma que um dia se disse gêmea da outra e quando brigam em Juízo por uma "mobília", ali, atrás do véu, há uma briga por um sentimento que se perdeu e aquela "panela velha" é o símbolo (o ser humano é um ser simbólico) de um sentimento desgastado (não se leia "desgraçado"!).

Descer às nefastas inquirições da culpa é experienciar um quadro em audiência de vergonha e dor, de humilhação e nunca, nunca se achará o verdadeiro "culpado", porque o amor já fez a sua mala e já partiu sem se despedir, deixando para o ex-parceiro lágrimas antigas, expectativas que se foram, esperanças sepultadas no tempo. Há de se respeitar o direito de não permanecer casado; há de se respeitar o bem do outro, promoção que o Estado se obrigou a cumprir, consoante preceitua o art.3º, inciso IV, da Constituição Federal.

Ora bem, nos dias que correm, de trânsito louco, de violência desenfreada, de singelas estatísticas, de banalizações de sublimes valores, não se pode conceber u`a máquina judiciária que perde o seu precioso tempo em se intrometer num lar carcomido pela intolerância, pela ausência de afeto, pela impaciência, pela imaturidade, pelo espírito de caçador de "felicidade" (?!), quiçá por um espírito de vingança, de perseguição, em detrimento de uma boa prestação jurisdicional. Isso é uma postura retrógada, obsoleta. Já dizia Henry Ford: "Não ache um problema; ache uma solução".

De outra perspectiva, se um dos consortes não deseja permanecer em comunhão, seja porque faltou o afeto, seja porque o quadro criado tornou insuportável a vida em comum, resta a dissolução. Não há como um deles – o que ainda nutre o afeto (ou será paixão?) – "forçar" a convivência, pretendendo negar a assinar o termo de dissolução para "segurar" o outro. É que o sentimento de rejeição é de ordem subjetiva; é pessoal. Nem o Estado pode conter. Está no plano das emoções. Decerto, o Estado regulamenta comportamentos e condutas; não emoções. Com profunda sabedoria apregoa a Bíblia: "Porventura andarão dois juntos, se não estiverem de acordo?" (Amós 3:3). Os dois "pombinhos" querem se separar? Que seja! E Deus os abençoe nessa busca de significados pela existência humana!

E quem autoriza o Estado a proclamar a chamada "insuportabilidade da vida em comum"? O que é suportável para um, pode não ser para outro. O que o juiz entender como insuportável, de acordo com as suas crenças e seus valores, pode ser suportável para quem ama e nutre valores distintos. Afinal, um dos pilares da democracia é a convivência com as diferenças e o seu respeito por todos. Com efeito, a (in)suportabilidade depende de n fatores que subjazem em dado relacionamento. É conceito subjetivo e relativo; não é estanque e inflexível.

Amar é escolher. Eu a amo porque a escolhi; não escolhi porque a amo. Posso ver mulheres mais bonitas, mas fico com ela porque a escolhi. Posso sofrer as agruras de uma "TPM", porque a escolhi. Viverei o restante de minha vida com ela porque a escolhi. Depois de várias décadas, ainda abro a porta do carro para ela, porque a escolhi. Para mim, é a mulher mais linda deste mundo, porque a escolhi. Os netos a chamam de "vó", e eu a chamo de princesa, porque a escolhi. Quando ela está triste porfio por alegrá-la porque a escolhi. Cada minuto com ela é especial e altamente significativo, porque a escolhi. Posso fazer crescer em minha mente os seus pequenos defeitos (ainda não descobri os seus defeitos!) e deixar de amá-la ou posso colorir com cores vivas as suas infinitas qualidades (e são tantas!), mas fico com a segunda opção porque a escolhi para amá-la. Esse amor não é "eterno enquanto dura"; dura porque é eterno – porque a escolhi. A escolha não é do Estado; não é de ninguém. A escolha é – tão só – minha.

De um pólo a outro, a dizer, em migração do direito familial para o direito constitucional, é altamente significativo trazer à mesa a questão do controle de constitucionalidade das leis e nessa quadra cumpre relembrar que o direito pátrio adotou o sistema misto, composto por dois grandes métodos de controle de constitucionalidade, a saber: o controle concentrado (austríaco), por via de ação, em abstrato, de efeito erga omnes e o controle difuso ou incidental (americano), por via de exceção, em concreto, de efeito inter partes. O primeiro com alicerce no art.102, inciso I, letra "a" e o segundo com broquel no art.102, inciso III, notadamente na letra "b", ambos da Constituição Federal.

À sombra dessa idéia, no controle difuso (incidenter tantum), a Constituição Federal autoriza qualquer juiz ou tribunal a declarar, no caso concreto, a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo que macular preceitos da Constituição Federal, máxime quando quebrantar princípios garantísticos por ela adotados. Logo, se o texto normativo infraconstitucional – no caso vertente o artigo de lei do Código Civil que impõe a verificação da culpa – ferir o princípio da privacidade ou da intimidade do lar, denegrindo, via de conseqüência, a diretriz fundante da dignidade da pessoa humana, o magistrado sentenciante pode (rectius, deve) declarar, incidentalmente, no caso concreto e com efeito entre as partes, a inconstitucionalidade daquele infeliz versículo legal (oriundo do Poder Derivado), privilegiando o norte constitucional abraçado pelo Poder Constituinte Originário. Não mais; porém não menos.

Nem se diga que o Ministério Público, como fiscal da lei, deve primar pela observância da legalidade em detrimento da constitucionalidade. É que, na hierarquia da estrutura legislativa – a pirâmide kelseniana – a Constituição Federal paira sobranceira no ápice da torre como um bom atalaia, cuja visão panorâmica alcança o território da dignidade da pessoa humana, reconhecendo suas esperanças e desesperanças, suas forças e suas fraquezas, enfim suas crises existenciais ao longo de sua história de vida.

Em sua função altissonante, o Ministério Público, agindo como fiscal da lei, deve nortear a sua conduta pelo primado da Constituição Federal, reconhecendo nela a força normativa sobre todos os atos infraconstitucionais; reconhecendo em seus princípios, garantias que não podem ser atingidos por atos normativos de estatura inferior. Isso implica em vanguardismo, coragem, ousadia, conhecimento, independência e, sobretudo, cumprimento do dever legal (leia-se: constitucional).

Em tom de conclusão, registre-se que, dentre as muitas inconstitucionalidades estampadas em o "novo" Código Civil Brasileiro, notadamente no livro do Direito de Família (rectius, "das Famílias"), salta aos olhos, para quem tem olhos de bem enxergar, a questionável exigência da investigação da culpa como condição para o acolhimento do pedido de dissolução do casamento quando houver litígio. Sob esse viés, não pode o magistrado contentar-se com menos do que os princípios constitucionais garantidores de uma vida digna, sob pena de tolerar-se um quadro inóspito de intervencionismo estatal invasivo ou – e aqui o temor se acentua – regressar aos cárceres da Idade Média...


Notas

  1. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicanalítica. 2. ed. rev. atual. ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.143.
  2. DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p.61.
  3. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVAL, Nelson. Direito das famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p.21-22.
Sobre o autor
Ézio Luiz Pereira

Juiz de Direito – ES,Mestre em Direito das Relações Privadas pela FDC – RJ,Mestre em Teologia (ênfase em Bibliologia) pelo SBTe – MG,Especialista em Direito Constitucional pela Consultime - ES,Membro da Academia Brasileira de Mestres e Educadores,Membro da Academia Cachoeirense de Letras,Practitioner em Programação Neurolingüística pelo INDESP,Palestrante, articulista e escritor,Autor de quatorze obras literárias publicadas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Ézio Luiz. A dissolução do casamento e "culpa".: Uma abordagem axiológica da garantia constitucional da "felicidade humana" (art. 3º, IV, da CF). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1955, 7 nov. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11938. Acesso em: 21 nov. 2024.

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