3 SIMULAÇÃO NO DECRETO-LEI 7.661/1945
O Decreto-Lei 7.661/1945 foi o documento legal que regulou as falências e as concordatas durante sessenta anos. Nascido nos últimos momentos do Governo Vargas, suas determinações atravessaram sete décadas diferentes, dois regimes autoritários e dois períodos democráticos, o último deste inaugurado com a Constituição de 1988. O primor com que foi elaborado o Decreto-Lei é percebido justamente quando o confrontamos com a nossa Lei Fundamental e percebemos que poucos foram os dispositivos do Decreto que se chocaram com a Constituição.
Apesar disso, porém, as alterações no Direito, ao longo dessas décadas, foram bastante significativas, o que fez surgir a necessidade de se criar uma nova regulamentação para as falências. Do mesmo modo, precisa de quase total reformulação a sessão que versava sobre a concordata, instituto que não mais se adequava à realidade brasileira.
Diante dessas questões, procurou-se editar novo diploma falimentar, o qual surgiu com a Lei n° 11.101/2005, que muitas modificações introduziu no Direito Comercial brasileiro, sendo a principal delas a extinção da concordata, a qual foi substituída pela figura da recuperação judicial.
Necessário se faz, porém, traçar comentários referentes à simulação, tema principal deste trabalho, no âmbito do Decreto-Lei. Para isso, utilizaremos o sistema de comentar cada artigo que trate da questão, a fim de que não fique cansativo nem repetitivo o nosso texto. Assim, seguiremos a ordem que o legislador preferiu, ou seja, a de aparecimento na lei.
§6º
Logo no início do Decreto-Lei, no artigo 2º, aparecem situações que caracterizam a falência de determinado comerciante [11]. Além da causa geral apontada pela cabeça do artigo 1º, a qual é a impontualidade, o segundo artigo deste diploma normativo traz sete situações que, ocorrendo faticamente, fazem crer que o devedor está falido.
Dentre as sete hipóteses elencadas pelo Decreto-Lei, aparecem duas que merecem ser comentadas, por interessarem ao nosso trabalho. A primeira delas, no inciso II, relaciona-se indiretamente ao tema em discussão.
A partir da leitura do referido inciso, vê-se que é possível a sua decomposição em três segmentos, a saber, (1) liquidação precipitada, (2) utilização de meios ruinosos e (3) utilização de meios fraudulentos, sendo que os dois últimos com a finalidade de realizar pagamentos. A diferença entre estes é bastante tênue, mas não deixa de existir. Trajano Miranda Valverde, com a sua conhecida habilidade com as palavras, traça os elementos diferenciadores das duas situações:
Os meios ruinosos consistem, geralmente, na realização de negócios arriscados ou de puro azar, no abuso de responsabilidades de mero favor, nos empréstimos a juros excessivos, na alienação de máquinas ou instrumentos indispensáveis ao exercício do comércio. Os meios fraudulentos revelam-se nos artifícios ou expedientes empregados pelo comerciante para conseguir dinheiro ou mercadorias, na apropriação indébita de valores confiados à sua guarda (1962:45).
Sendo os meios fraudulentos a que a Lei se refere aqueles cometidos maliciosamente, com o intuito de obter vantagem sobre os credores, acreditamos que o Legislador quis fazer deles um grande gênero, albergando, dentre outras hipóteses, a simulação. Portanto, não poderíamos deixar de relacionar este inciso com a simulação.
Há, contudo, no inciso IV, referência expressa a simulação. É o caso da realização de negócio simulado, tendo este, necessariamente, a finalidade de retardar pagamentos ou fraudar credores. Aqui, tem-se que a fraude é um fim a perseguido por quem simula: inicialmente, tenta-se atrasar o pagamento através do negócio simulado; se for bem sucedida, a tentativa transforma-se em completa fraude. Não que fraude deixe de existir já na primeira conduta, mas é com a consolidação da situação de simulação que se perpetua o estado de fraude.
Apesar de a fraude ser o grande fim perseguido por esta conduta, pode esta finalidade se manifestar de diversas maneiras, desde "o desvio, a sonegação ou ocultação de bens, em proveito do próprio devedor ou de terceiro, credor ou não, ou, ainda, a criação de uma obrigação ou dívida com falsa causa" (VALVERDE, 1962:47).
Importante se faz lembrar que a Lei ressalva não ser apenas a ação concretizada do negócio simulado que caracteriza a hipótese em análise, mas também a tentativa. Esta, porém, está condicionada à prova inequívoca.
§7º
Em seguida, há menção indireta à simulação no artigo 53 do Decreto-Lei, o qual, transcrito a seguir, dispõe claramente:
São, também, revogáveis, relativamente à massa, os atos praticados com a intenção de prejudicar credores, provando-se a fraude do devedor e do terceiro que com ele contratar.Art. 53.
Este artigo está inserido em seção que aborda a questão da revogação dos atos praticados pelo devedor antes da falência. Versa, assim, sobre situações que, se ocorrerem, ocasionam um fenômeno comum no Direito Privado, que é o da invalidação ou revogação de atos cujos efeitos já ocorreram no mundo jurídico. O Código Civil de 1916, neste ponto seguido pelo de 2002, separou esses atos em nulos ou anuláveis, os quais já foram abordados no capítulo anterior.
O artigo 52 traz casos [12] que, ocorrendo no mundo dos fatos, são ineficazes juridicamente, não sendo, porém, a fraude elemento necessário, vindo a agravar a situação do réu se acontecer. E é em relação à fraude que se pode determinar a grande diferença entre os artigos 52 e 53:
A ineficácia dos atos especificados no art. 52 está para a ineficácia, de que cogita o art. 53, como a nulidade em relação à anulabilidade. O fato da falência, por si só, determina a ineficácia dos atos discriminados no art. 52. A fraude, entretanto, é necessária para conseguir-se a decretação da ineficácia dos atos a que alude o art. 53. (VALVERDE, 1955, 12-13)
Seria, portanto, anulável ato praticado com a intenção de prejudicar credores. Condicionava-se, porém, a invalidade à prova da atuação no sentido de haver fraude por parte do devedor. É o consilium fraudis, consciência do devedor de que o ato por ele praticado prejudicará o seu credor.
O ato cometido pelo devedor deve ser necessariamente fraudulento. Entretanto, a Lei não faz restrições quanto à possibilidade de se aplicar a esta hipótese a chamada simulação fraudulenta, que, apesar da proximidade, não se confunde, ontologicamente, com a fraude. Enquanto nesta há ato verdadeiro do qual decorre determinado prejuízo aos credores, sendo este previsto pelo devedor, naquela "as partes executam aparentemente um ato, que não tinham a intenção de fazer, com o objetivo de prejudicar a terceiros, ou de violar disposição de lei" (VALVERDE, 1955, 48-49). São, inegavelmente, bastante parecidas, porque há em ambas a intenção de prejudicar credores ou terceiros.
Conforme mencionado no capítulo a este anterior, a sistemática adotada pelo Código Civil de 2002 alterou bastante a matéria hora discutida, visto que a simulação passou a ser causa de nulidade do negócio jurídico. Assim, se vigorasse ainda o Decreto-Lei, não mais poderíamos aproximar a simulação do artigo 53. Como o Decreto-Lei foi revogado, não há mais razão para se discutir a questão.
§8º
O síndico era a figura nomeada para conduzir a falência, ou melhor, a administração da falência, nos termos da Lei [13]. Entre os artigos 59 e 69 do Decreto-Lei, encontravam-se as disposições sobre o síndico, ou seja, quem poderia e quem não poderia ser síndico, e sobre as suas atribuições.
Com a Lei 11.101/2005, foi extinta esta figura, substituída pelo Administrador Judicial, o qual se faz presente tanto na Falência quanto na Recuperação Judicial. Muitas das funções do síndico permaneceram para a figura que lhe substituiu, sendo, no entanto, algumas tarefas excluídas e outras novas apareceram.
No que diz respeito ao tema do nosso trabalho, há ponto em que a Lei atribui competência ao síndico, dividida com qualquer outro credor, para atuar se for constatada simulação, dentre outros casos, no crédito [14]. Pode ser tanto no âmbito material (no título que representa o crédito) quanto fático (na obrigação em si, o fato que fez com que surgisse a dívida).
Aqui, trata-se, é importante que se frise, de simulação por parte do credor, e não do devedor. Foi aquele que atuou maliciosamente no sentido de prejudicar o devedor, o qual foi enganado. A atuação contra legem partiu daquele que alegou ser detentor de crédito frente ao devedor.
Ao tratar deste tema, Trajano Miranda Valverde se refere à descoberta de simulação como a descoberta "dos artifícios ou expedientes fraudulentos que foram empregados pelo declarante para encobrir a sua desonesta pretensão, dando ao ato aparência de legítimo e verdadeiro, com o objetivo de prejudicar a terceiros ou de violar disposição de lei" (1955:281-282).
Merece ser lembrada a ressalva legal de que o período máximo para o ajuizamento do pedido é a data do encerramento do processo de falência. E é o mesmo Valverde que nos faz recordar qual o instrumento que deve ser utilizado no caso, a saber, a ação de revisão, espécie de ação rescisória cujo objetivo é "excluir o credor ilegitimamente admitido ou corrigir a classificação por ele indevidamente obtida, ou simplesmente retificar a importância do crédito" (1955:283).
§9º
Rápida menção faremos ao artigo 101 [15] do Decreto-Lei. Este determina que a decisão de juiz ou de tribunal que excluiu ou reduz crédito por fraude deve mandar que o escrivão tire cópias das peças e da sentença para mandar para o Ministério Público, para fins penais. O prazo para ser realizado o feito devia ser de dez dias.
Os crimes penais a que a lei se refere são os trazidos pelos artigos 188 e 189 do Decreto-Lei, que serão tema dos dois próximos tópicos.
A determinação legal parecia ser bastante interessante quando do seu surgimento. Afinal de contas, não havia a rapidez na transmissão de dados de que atualmente dispomos. Com essas transmissões em tempo real, facilitadas imensamente pela internet, parece, data vênia a expressão, tola a preceituação legal, mas, para a década de 40, quando foi editado o Decreto-Lei, representou grande avanço no sentido de se interligarem as decisões cíveis e penais, e estas seriam bastante facilitadas pela comunicação entre o juízo falimentar e o Ministério Público.
Entretanto, já dez anos após a edição do Decreto-Lei, Valverde falava do problema da aplicação deste artigo: "O mandamento da lei é quase sempre descurado pelos juízes e tribunais. No entanto, se fosse fielmente observado, viria concorrer para a moralização dos processos de falência e concordata preventiva" (1955:288).
§10
O Decreto-Lei 7.661/1945, assim como o fez também a Lei 11.101/2005, trouxe rol de condutas consideradas criminosas. Tratam-se dos crimes falimentares, encontrados no Título XI do Decreto-Lei, onde podem ser achadas, ainda, as disposições que regulam esses crimes, tais como efeitos da condenação, reabilitação penal e prescrição.
Nove condutas foram tipificadas pelo artigo 188, mas o fato de estarem em um mesmo artigo e a elas caber a mesma pena, a qual, por sinal, é idêntica a do artigo 187 [16], não faz dessas condutas parte de um mesmo crime. Ao contrário; constituem crimes independentes, unidos, entretanto, por elemento comum, que é o dolo de agir fraudulentamente. Assim eram definidas essas condutas, como crimes de falência fraudulenta, pela Lei n° 2.024/1908, que regia as falências antes do Decreto-Lei.
E assim dizia o artigo 188:
Art. 188. Será punido o devedor com a mesma pena do artigo antecedente, quando com a falência concorrer algum dos seguintes fatos:
I - simulação de capital para obtenção de maior crédito;
II - pagamento antecipado de uns credores em prejuízo de outros;
III - desvio de bens, inclusive pela compra em nome de terceira pessoa, ainda que cônjuge ou parente;
IV - simulação de despesas, de dívidas ativas ou passivas e de perdas;
V - perdas avultadas em operações de puro acaso, como jogos de qualquer espécie;
VI - falsificação material, no todo ou em parte, da escrituração obrigatória ou não, ou alteração da escrituração verdadeira;
VII - omissão, na escrituração obrigatória ou não, de lançamento que dela devia constar, ou lançamento falso ou diverso do que nela devia ser feito;
VIII - destruição, inutilização ou supressão, total ou parcial, dos livros obrigatórios;
IX - ser o falido leiloeiro ou corretor.
Pela leitura, podemos perceber a menção à simulação em dois incisos, que serão debatidos agora.
Logo no inciso I, faz a Lei menção à simulação de capital para obtenção de maior crédito. Nessa situação, o devedor mente sobre a quantidade de capital da empresa, declarando um valor maior do que o real. Assim procedendo, a empresa ganha mais credibilidade no mercado, pois aparenta estar mais solidificada do que realmente está. Desta forma, aproveita-se da mentira por ele criada para fazer com que os outros acreditem nela e, assim, passem a investir na empresa.
Não há necessidade de existir intenção de prejudicar terceiros ou de infringir preceito de lei. O que aparece como elementar do tipo, na realidade, é a motivação de obter maior crédito para a empresa.
O outro caso em que a simulação figura neste artigo é o do inciso IV, quando é criminosa a simulação de despesas, de dívidas ativou ou passivas e de perdas. O devedor, nas palavras de Trajano de Miranda Valverde, "simula os fatos lançados nos seus livros, violando por esta forma a lei, que considera dever primordial do comerciante a escrituração ordenada dos fatos reais de sua vida de negócios e exige que o balanço seja a expressão fiel da verdade" (1962:71).
A intenção do devedor é clara: tanto ao mentir sobre o ativo quanto sobre o passivo, tenta passar uma imagem de que a empresa se encontra em melhor estado do que aquele em que realmente se apresenta, ou por declarar possuir ativo maior do que o real ou passivo menor do que o de fato.
§11
Por fim, o último tema a ser abordado neste capítulo versa sobre o crime previsto pelo artigo 189 do Decreto-Lei 7.661/1945, que desta forma dispõe:
Art. 189. Será punido com reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos:
I - qualquer pessoa, inclusive o falido, que ocultar ou desviar bens da massa;
II - quem quer que, por si ou interposta pessoa, ou por procurador, apresentar, na falência ou na concordata preventiva, declarações ou reclamações falsas, ou juntar a elas títulos falsos ou simulados;
III - o devedor que reconhecer como verdadeiros, créditos falsos ou simulados;
IV - o síndico que der informações, pareceres ou extratos dos livros do falido inexatos ou falsos, ou que apresentar exposição ou relatórios contrários à verdade.
Em dois dos quatro incisos (no II e no III), o Legislador tratou especificamente da simulação, e esses dois incisos serão a matéria discutida aqui. Antes, porém, é preciso que se repita, junto com Valverde, importante disposição comum sobre os crimes deste artigo
A sentença declaratória da falência é o pressuposto jurídico dos crimes definidos no artigo, embora em dois casos, como veremos, o começo de execução ou os meios empregados para a consumação do crime possam preceder a sentença de abertura da falência (1962:77).
Define o Decreto-Lei como conduta criminosa o ato de apresentar, tanto na falência quanto na concordata preventiva, declarações ou reclamações falsas, ou juntar a elas títulos falsos ou simulados. A conduta que nos interessa, portanto, é juntada de título simulado em declaração ou reclamação falsa. Bastante comum é a combinação entre o declarante do crédito e o falido ou concordatário, fazendo nascer simulação fraudulenta. É essencial que nos lembremos de que qualquer pessoa pode cometer este crime, não se restringindo ao devedor; assim, podem fazê-lo perfeitamente credor (ou falso credor) ou terceiro, tornando possível o encaixe na hipótese tratada linhas acima.
Complementando-se à hipótese trazida pelo inciso II, aparece a conduta do devedor de reconhecer como verdadeiros títulos simulados. Obviamente, ele precisa agir dolosamente, tendo consciência da natureza simulada do título. O cometimento, pelo devedor, da conduta típica trazida pelo inciso III tem como pressuposto a existência de conduta criminosa de outra pessoa, a qual deve se enquadrar no tipo trazido pelo inciso anterior.