INTRODUÇÃO
O preâmbulo da Constituição da República aponta que da reunião do povo brasileiro em Assembléia Nacional Constituinte foi instituído um Estado Democrático de Direito visando a assegurar o exercício dos direitos sociais [01] e individuais, liberdade, segurança, desenvolvimento, bem-estar, igualdade e justiça como valores supremos.
As disposições assentadas – somadas ao estampado no artigo 2º da Carta Política, onde se afiança harmonia entre os poderes – são a base legal para se arquitetar o sistema de freios e contrapesos. Estado Democrático de Direito [02] é, assim, um Estado que visa à garantia do exercício de direitos individuais e sociais, e os poderes instituídos (Legislativo, Executivo e Judiciário) são organizados de forma a que um não avance sobre a função precípua do outro.
Feito este breve panorama, e considerando o momento topográfico do estudo, dirige-se a redação à apresentação. Sendo introdução ato ou efeito de introduzir, aponta-se que o trabalho tem cunho eminentemente doutrinário, com algumas inferências de cunho pessoal. Aponta-se ainda que, por razões dogmáticas, optou-se por sua divisão deste em três capítulos.
O capítulo primeiro cuidará do chamado Estado Democrático de Direito. Para tanto, cuidar-se-á da vertente brasileira do tema, procurando responder ao exato sentido da locução em nossa realidade fática, sobretudo nos tempos que sucederam à Emenda Constitucional 45.
O capítulo segundo cuida de um tema que é da essência processual, e mais, da essência humana. Apontará o recurso como um sucedâneo da natureza do homem, que se dispõe, sempre, à busca.
No último capítulo serão cuidados de tópicos referentes à súmula vinculante. Ficará claro que esta é algo antigo no universo jurídico. Ficará claro também que a grande novidade acerca da vinculação diz pertinência ao fato de as súmulas passarem a moldar a orientação dos juizes: assumem a função de elemento de fundamentação da decisão judicial.
1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Estado de Direito é possibilidade de organização estatal que sucedeu ao chamado absolutismo em razão das Revoluções Burguesas dos séculos XVII e XVIII, sobretudo a Francesa [03], com as quais se afirmou o constitucionalismo. Um modelo cujo embrião é a Magna Carta [04], que no século XIII já consignava os elementos essenciais do moderno constitucionalismo: limitação do poder do Estado e a declaração dos "Direitos Fundamentais da Pessoa Humana" [05]. É um modo de organização que se contrapõe ao Absolutista por não mais admitir a confusão entre o poder e aquele que o exerce, deixando de fazer sentido a locução célebre creditada a Luís XIV: "O Estado sou Eu". Surge, assim, a idéia da Supremacia da Constituição.
Supremacia da Constituição aduz ao caráter vinculante dos direitos fundamentais como traços que caracterizam o Estado Constitucional. Um modelo estatal baseado na força normativa dos princípios e na consolidação de uma justiça substancial, conforme pensado pelas teorias pós-positivistas [06] que sustentam um Novo Constitucionalismo [07].
Do que se assentou, não se deve confundir Estado de Direito e Estado Democrático de Direito, em razão de o primeiro se contentar com o respeito à lei, refletindo o espírito liberal que ansiava uma prestação estatal negativa.
Na prática, o Estado de Direito é o que decorre das Revoluções Burguesas, caracterizando os Direitos Fundamentais de primeira dimensão, marcados, pois, por uma passividade do Estado. Em outra medida, o Estado Democrático de Direito se caracteriza por conjugar, a um só tempo, direitos humanos em sucessivas dimensões, comportando também, por isto, uma postura positiva do Estado.
No mundo ocidental, seja qual for o modelo de organização do Estado, este estará inscrito na Constituição, seu parâmetro de atuação que comporta as normas de organização, funcionamento e distribuição da competência e que enuncia os Direitos Fundamentais. Ao trabalho interessa, precipuamente, a chamada separação de poderes [08], as definições acerca da competência legislativa [09] e a razoabilidade [10] da duração do processo, que deve ser conjugada com contraditório como suposto democrático, tendo-se por certo que partição de poderes aduz à "reserva do precípuo", já que não há qualquer apontamento, nem mesmo em Montesquieu [11], "que leve ao entendimento de que uma teoria da separação de poderes implica separação absoluta dos órgãos" [12]. Na verdade, tem-se que deve existir uma ação contínua dos poderes.
1.1 SEPARAÇÃO DE PODERES NA ORGANIZAÇÃO ESTATAL BRASILEIRA
A Constituição da República Federativa do Brasil é importante por afiançar, já no preâmbulo, um Estado Democrático de Direito. Destacando, e recortando no sentido do enfoque do trabalho, implica em partição de poderes na esfera constitucional, e, na processual, aduz ao contraditório e à duração razoável do processo.
O recorte constitucional aventado é bem compreendido na leitura do artigo 2º da Carta Política, onde se aponta que "são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário". O poder é uno, mas se triparte para ser exercido. Um exercício que se espera harmônico. Expectativa alimentada pelo constituinte.
A harmonia dos poderes resta assegurada na medida que cada poder tenha seu campo de atribuição precípua respeitado. Cabe ao Legislativo criar leis, ao Executivo as aplicar e ao Judiciário analisar sua correta aplicação. Esta é a regra geral, e assim deve ser acatada. Não se esquece das funções anômalas, mas como a expressão aponta, são atribuições atípicas, e, como exceções, devem confirmar regras, e não se tornarem regras elas próprias. Do contrário, o sistema de "freios e contrapesos" [13] resta mitigado, e com ele a democracia, o que se diz pelo descumprimento do princípio da lealdade constitucional.
O Poder Legislativo, não por acaso, é colocado em primeiro lugar na enumeração dos poderes. Ainda assim, não se deve esquecer o que significa: "é criatura da Constituição; deve à Constituição o existir; recebe seus poderes da Constituição; e, pois, se os atos dele não conformam com ela, são nulos" [14]. Vivemos uma Democracia Participativa [15] e nesta o exercício da função legislativa sobeja em importância. As leis representam – ao menos devem representar – as aspirações da população. Por isso é tarefa simples entender a função legislativa: representação popular a criar normas abstratas que se voltam para o coletivo.
O Poder Judiciário, a seu turno, não tem, pela própria razão de ser, competência legislativa. Contudo, nos tempos que sucedem à EC 45/04, assumiu "função de legislar". Não com esta nomenclatura, evidente, mas soa óbvio o conteúdo legislatório das possibilidades depreendidas das súmulas vinculantes, possíveis com a inclusão do artigo 103-A [16] à Constituição. Nessa medida o raciocínio de Barbosa [17] se aplica: tanto quanto o Legislativo, o Judiciário é cria da Constituição; deve, pois, estar em conformidade com ela.
Ainda que a sumulação vinculante vá de encontro à dogmática proposta por Locke [18], devemos ter em mente que a Constituição brasileira estabeleceu como seu fundamento a Dignidade da Pessoa Humana, elevando-a a condição de núcleo irradiador. Disto se apõe que toda a lógica jurídica deve ter por fundamento questões de cunho material, não se mostrando legítimos os procedimentos que sejam fins em si próprios. A demora processual precisa ser entendida na perspectiva da razoabilidade – necessidade, utilidade e proporcionalidade –, assentando-se a idéia da peremptória celeridade.
Tem-se que é preciso conjugar limitações constitucionais e a ordem processual trazida pelas súmulas vinculantes: 1) não basta a garantia do direito material sem as vestes do direito processual; 2) o direito deve poder ser exercido; e, 3) as questões de ordem processual precisam se conciliar com as limitações que estruturam o Sistema Democrático.
Estado Democrático de Direito, como se percebe, importa que os poderes sejam exercidos por quem de direito. Mas é mais que isso, sobretudo em uma República como a brasileira, caracterizada pela assunção de grandes compromissos em sua Carta [19]. Um compromisso que se caracteriza por uma isonomia rigorosa e relacionada com a igualdade em sentido material:
verifica-se que todos os verbos utilizados na expressão normativa – construir, erradicar, reduzir, promover – são de ação, vale dizer, designam um comportamento ativo. O que se tem, pois, é que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são definidos em termos de obrigações transformadoras do quadro social e político retratado pelo constituinte quando da elaboração do texto constitucional [20]. (destacou-se)
Nosso legislador assumiu compromissos que serão honrados à medida que o legislador constituído atue. Não se pode perder de vista que toda a atuação deverá se pautar por premissas inarredáveis, como o chamado contraditório e a ampla defesa, pressupostos de democracia, já que tais garantias são elementos de base, mas se tornaram insuficientes com o reconhecimento do processo como um meio. Nos dias atuais devem ser conjugados com a efetividade da tutela jurisdicional, para a qual faz-se necessária a celeridade.
Do inserido na Constituição da República em seu artigo 5º, LV, tem-se que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes". Esta garantia, associada ao "livre convencimento motivado" [21], corrobora com a efetivação do Estado de Direito: Estado que se autolimita porque a si se submete.
1.2 ESTADO DE DIREITO: QUE(M) É(S)?
Estado de Direito é possibilidade de organização estatal onde o poder é exercido por quem de direito, se volta para a coletividade e para o próprio Estado, e a tutela jurisdicional é assegurada com todas as garantias que lhe dizem pertinência. Neste seguimento surge uma questão: como se harmonizar efetivação do processo (de razoável duração [22]) e contraditório? Seria a vinculação sumulante uma resposta, ou esta implicaria em um quebrantamento do Sistema Democrático por supressão de atividade?
Contraditório e duração razoável do processo precisam se compatibilizar, já que são garantias fundamentais. Precisam ser entendidos de forma a preservar a unidade constitucional. Uma garantia precisa fomentar, e não afastar, a outra, fazendo imperioso que o Judiciário se aparelhe no sentido de se tornar mais ágil, respondendo às demandas que se apresentam. Monopólio de jurisdição precisa ser entendido como prerrogativa de responder, mas, sobretudo, de oferecer uma resposta que não seja tardia, já que "justiça tardia não é justiça, mas injustiça; e injustiça qualificada" [23]. As limitações de cunho processual que sejam criadas para assegurar efetividade do processo são válidas. Serão válidas conquanto não quebrantem o Sistema Democrático.
Estado de Direito, definitivamente, é um Estado em que se obedece à lei. Sendo assim, não se pode permitir o agigantamento de um poder, o Judiciário, no sentido de passar por sobre o Legislativo naquilo que a este compete. É preciso se estabelecer que as súmulas são válidas enquanto meios de se melhorar a prestação da jurisdição. O que não se pode é pegar um enunciado de conteúdo "xis" e fazer dele o alfabeto. Não se pode pretender uma produção fordista (seriada) da jurisdição.
1.3 EMENDA CONSTITUCIONAL 45 E O DIREITO BRASILEIRO
O Supremo Tribunal Federal no pós Emenda Constitucional 45 assumiu a condição de criador de normas abstratas. Súmulas vinculantes, que estritamente não são leis, impõem iguais conseqüências: são normas de imanente generalidade, e com o condão da infalibilidade. Não mais dirão o que se infere da lei, já que serão, elas mesmas, a Lei. "Leis" que dificilmente serão revistas, dado o claro desequilíbrio do sistema de contrapesos. O Judiciário será autor e juiz na análise da demanda que ele criou.
Do ponto de vista dogmático não se pode chamar esta atividade do Tribunal Constitucional de legislativa. No mundo dos nomes [24] essa designação soa desarrazoada, mas no mundo fático não. É preciso termos claro que o nome empregado aos institutos deve corresponder à espécie que designa, e não subvertê-la, já que as palavras não mudam a natureza das coisas: verba non mutant substanciam rei.
É necessário, portanto, maior acuidade ao se estudar as súmulas vinculantes para que, em nome de uma impossibilidade de resposta judicial efetiva – e nisto se inclui a celeridade – não se quebrante o Sistema Democrático.
2 DEMANDAR É DIREITO. RECORRER É HUMANO!
As súmulas vinculantes têm uma função clara: limitar a possibilidade recursal. Na medida que vão de encontro às aspirações de cunho psicológico [25], precisam ser entendidas.
O recurso visa à satisfação de uma tendência nata e incoercível do espírito humano, já que ninguém se conforma com um primeiro julgamento. É pedido de reexame de uma decisão judicial, no mesmo [26] processo, para que seja promovida uma modificação de uma situação que implique em prejuízo para o recorrente.
A natureza do recurso é a de "aspecto, elemento ou modalidade do próprio direito de ação e de defesa" [27]. Daí a necessidade de se entender as condições da ação, e o seu desdobramento "condições para recorrer", pois em ambos os casos há de estar configurado o "interesse de agir". Assim como não há nulidade sem prejuízo, não há fundamento para se recorrer sem que a decisão traga algum prejuízo para a parte, suposto do interesse de agir.
Se de um lado há recursos protelatórios, não se pode esquecer que há os fundamentados e legítimos, que devem ser apreciados. Ocorre, porém, que, em nome dos recursos de cunho protelatórios, tem sido outorgada uma discricionariedade demasiada ao Judiciário.
A discricionariedade aventada é tamanha, tanto que se pode afirmar ser garantido aos tribunais o direito de analisar apenas as matérias que lhes interessam, omitindo-se nas que sejam polêmicas ou que, a critério dos julgadores, devam ser repelidas. Esta prerrogativa ganha contornos com o juízo de admissibilidade, utilizado para limitar a pretensão recursal.
A idéia de insatisfação é crucial no sistema dos recursos. Não se pode perder de vista que a insatisfação faz parte do jogo processual, uma vez que a judicialização, e a adjudicação que desta decorre, importa em supressão da vontade de um dos litigantes como regra. Alguém, muito provavelmente, sairá insatisfeito, já que lides são litígios postos em juízo em razão de resistidas pretensões. Assim, haverá recurso enquanto houver insatisfação, possibilidade que deve ser limitada para que não subverta o sentido instrumental do processo.
2.1 LIMITAÇÃO RECURSAL E EFETIVIDADE PROCESSUAL
Limitar os recursos é uma medida necessária para se assegurar efetividade processual. Mas por que meios? Seria a via sumular o caminho mais bem alinhado com a dinâmica constitucional? Antes desta pergunta, aliás, como devem ser entendidas as súmulas?
Súmula é um conjunto de enunciados de um determinado tribunal. Trata-se de coletânea de verbetes nos quais o entendimento do tribunal resta sedimentado. São, assim, os liames de atuação do tribunal que as criou. Nessa medida, parece salutar a existência destes conjuntos de verbetes. Quando assumem ares de normas processuais, ultrapassando os limites de delimitação da orientação jurisprudencial, precisam ser analisadas com cautela. Qualquer entendimento em contrário apontaria no sentido de ser esta uma Super-Norma processual.
Independente das respostas que se apresentem, por melhor que sejam, é importante ter em mente que quando se permite que os tribunais se afastem dos requisitos expressos na Constituição e nos Códigos de Processo quando da avaliação da admissibilidade recursal, está se enveredando por fundamentos misteriosos. Não restam dúvidas de que os tribunais podem elaborar regimentos internos e súmulas, nos quais restarão refletidos seus reiterados entendimentos. Esta prerrogativa, contudo, não pode confrontar o disposto na Constituição e nas Leis Federais. Quando são criados requisitos que não constam destas normas, ou se negam recursos a hipóteses que não foram restringidas por elas, são ilegais ou inconstitucionais.
2.2 REEXAME DE PROVAS: UM SUPER-LIMITADOR RECURSAL.
Falar em limitação recursal em nosso país implica a que se analise o chamado reexame de provas, já que não se produziu nada de tão profícuo nesta esfera. O poder conferido a esta locução – vedação ao reexame de provas –, às vezes, mostra-se incomensurável.
No Supremo Tribunal Federal a matéria está inscrita no verbete 279 de sua súmula, onde se apõe que "para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário." Redação análoga foi conferida pelo Superior Tribunal de Justiça em seu enunciado de número 7, onde se informa que "a pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial".
Os Recursos Especial e Extraordinário não autorizam novo exame fático da causa por possuírem âmbito restrito de atuação. Autorizam o reexame da solução judicial emprestada ao caso concreto, mas não o reexame das bases de fato que assentaram a solução.
Prova é tema essencial no direito. Não basta o bom direito se não puder ser provado. A postura do Estado-Juiz passa uma efetiva análise dos fatos, do que decorre o "narra-me os fatos que eu te darei o direito". Desta expressão se conclui que há presunção de conhecimento do direito pelo magistrado, que não se estende à matéria de fato.
Quanto à prova, temos que o ônus de prová-la incumbe a quem alega o fato em que se assenta o direito, conforme o artigo 333 do Código de Processo Civil. Nada obstante, precisa ser destacado o micro-sistema probatório trazido pelo Código do Consumidor [28].
Pensar a relação existente entre prova e atuação jurisdicional é pensar o próprio processo. É lhe conferir a importância de formadora da convicção judicial, manifesta na imediatidade que surge do contato do juiz com sua produção. Nessa medida, a imediatidade é importante para o curso correto do processo, já que, quando calçado no contexto probante, baseado na correta subsunção ou integração [29], dificilmente a resposta judicial será mudada.
3 SÚMULA VINCULANTEw
Há décadas os tribunais superiores possuem súmulas: conjunto de enunciados que representam resumos de sentenças judiciais reiteradamente publicadas acerca de um mesmo tema. O verbete é editado quando existe jurisprudência sólida sobre o assunto.
As súmulas eram vistas como um meio de facilitar o trabalho do tribunal, norteando sua atuação. Mas isso mudou. Em 18 de novembro de 2004 o Senado votou, em segundo turno, um ponto da Reforma do Judiciário que muitas discussões tem causado: a súmula vinculante. Agora o STF terá a prerrogativa de editar súmulas vinculantes, com as quais passará a impor sua orientação jurisprudencial às instâncias ordinárias.
Não-obstante o que se aventa, a adoção da súmula vinculante é apresentada de modo simplista como sendo o atendimento às reclamações da sociedade por um Judiciário efetivo. De fato a súmula possui este viés, mas não apenas. Conquanto reduzir causas repetitivas seja uma prerrogativa, deve ser lembrado que essa é uma das conseqüências das súmulas, pelo que as demais também devem ser analisadas. As múltiplas conseqüências da adoção da súmula vinculante precisam ser suscitadas.
Do que se coloca, percebe-se que não é sem motivo que a comunidade jurídica se inquieta. Sem dúvida, a morosidade dos processos judiciais acarreta prejuízos, mas, sem qualquer equívoco, a justiça deve ter por fim a ordem e a paz social como suposto do regime republicano (CRFB, art.1º). Apenas celeridade não é bastante para que se diga ter havido prestação jurisdicional. Por isso, mostra-se insuficiente pegar um texto sumular, torná-lo complacente a ponto de comportar uma diversidade de hipóteses, para dizer que, com base neste, houve prestação da tutela jurisdicional.
3.1 RESPOSTAS JUDICIAIS PRÉ-FABRICADAS E EFETIVIDADE JUDICIAL
É possível que a súmula vinculante amenize a quantidade de trabalho, mas prestação jurisdicional [30] não se resume a um maior número de respostas oferecidas. A resposta do Poder Judiciário deve visar aos anseios da coletividade no sentido de promoção da justiça. Um juiz precisa obedecer à lei e a sua consciência, e não apenas a súmulas vinculantes. Do contrário, o livre convencimento motivado será tornado "reprodução, muito obrigado". Além disso, conferir às sumulas vinculantes o poder de lei é emprestar ao Supremo Tribunal Federal "competência legislativa" [31], o que não deve prosperar, ainda mais se considerarmos que a "Lei" produzida pelo Poder Judiciário não ficaria passível de controle, representando notório quebrantamento do sistema de freios e contrapesos [32].
A súmula vinculante pode mesmo colocar em dia a pauta dos Tribunais Superiores . Não se perder de vista, todavia, o representa para a primeira instância: asfixiação. Paralisa-a, tornando-a adstrita ao julgamento de questões não-pacificadas, no que vai de encontro à premissa da necessária capilarização do poder: participação do maior número de interessados do sistema no sistema.
Ainda que medida temerária por atingir em cheio o chamado livre convencimento, garantia do julgador, não se pode negar a realidade na qual estamos inseridos, onde o jurisdicionado pode levar até 20 anos para ter seu direito satisfeito. Não se pode negar a necessidade de maior celeridade na solução do litígio, afinal uma decisão proferida após 20 anos não é boa. É preciso, assim, levar em consideração dois valores fundamentais associados à presteza jurisdicional: a retirada da excelência das decisões e celeridade.
Dentro da ponderação que se propõe, deve se considerar que a retirada da excelência das decisões é corolária da subtração da prerrogativa afeta à independência que caracteriza o princípio do juízo natural.
Nisto a vinculação atenta contra a democracia por impedir a participação fática das autoridades locais na formação da política nacional, no que contraria o pacto federativo [33]. Além disso, abre brechas para a existência de um sistema processual paralelo, já que o regime da "reclamação" não se enquadra nas regras processuais postas.
3.2 O JUIZ: AGENTE POLÍTICO
O juiz singular é agente político [34] que deve atuar conforme sua consciência, que é constituída de valores múltiplos: ideologia, religião, cultura etc. Esta multiplicidade, própria da democracia, não é compatível com a uniformização de decisões a partir da supressão de instâncias, ainda mais quando a supressão ocorre pela atuação anômala de um poder. No caso específico, vive-se um momento em que o STF passa a ter o poder de fazer ingerências de cunho processual, contrariando o que dispõe o artigo 22 da Constituição.
Ao contrário da vinculação sumulante, pensamos ser mais razoável sustentar, para a manutenção do Sistema Democrático que consagra a partição de poderes, o seguimento do julgamento casuístico pelo juiz, a revisão dos órgãos colegiados competentes até se chegar, "conforme o caso" [35], às cortes superiores.
O Judiciário está em uma situação caótica, isto é fato. É fato também que o Estado (Executivo) é um de seus principais "clientes". Este se vale da prerrogativa jurisdicional para, em muitos casos, postergar o cumprimento de suas obrigações. Caso agisse de forma contrária, certamente haveria uma diminuição da demanda judicial.
Reza a lenda que certa vez Henry Ford teria dito: "tenha o carro da cor que quiser, desde que preto". A continuar assim, teremos um Judiciário no qual o juiz poderá fazer o que quiser, desde que conforme o Supremo. Parece uma perspectiva fatalista, mas se concessões continuarem a serem feitas, dizendo-se múltiplos sim a tudo que o poder reformador aventa, chegaremos a um momento onde não fará nenhum sentido dizer que existem juizes, agentes políticos, além dos ministros do Supremo.
3.3 QUESTÕES ECONÔMICAS E SÚMULA VINCULANTE
A permissão de limpar pautas e tornar previsíveis as decisões judiciais, via súmula, poderá ter efeitos nefastos em um país que assumiu o compromisso da promoção de uma sociedade mais justa, adotando para tanto mecanismos como a Teoria da Imprevisão. É de se notar que em um mundo influenciado por bancos (lembremos da EC 40/03 e o sepultamento do natimorto parágrafo terceiro do artigo 192), a promoção da igualdade mediante revisão contratual [36] soa ruim. O que se quer é um Judiciário previsível, que, pura e simplesmente, determine o cumprimento dos contratos-padrão.
Certamente não se defende a protelação dos feitos. A celeridade é um componente da justiça. Por isso mesmo, estão à disposição do julgador mecanismos de contenção da má-fé e da procrastinação, como nos artigos 17, 18, 273 e 538, todos do CPC. Tais medidas, sim, devem ser aplicadas, já que a adoção destas concorrerá para um Judiciário mais efetivo. Ademais, têm origem no Poder Legislativo, local onde de fato devem ser gestadas.
O uso de recursos protelatórios deve ser coibido. O juízo deve usar seu poder de cautela, já que o mau uso do Judiciário prejudica a todos, concorrendo para o chamado custo Brasil [37]. O Judiciário precisa funcionar para que toda a sociedade não pague a conta da morosidade. A celeridade deve ser objetivada, mas dentro do contexto de preservação da ordem democrática.
A extrema rapidez com que se alteram os cenários políticos e econômicos, aliada à crescente complexidade da sociedade contemporânea, exige um redimensionamento do papel do Direito. O modelo jurídico liberal, por ser indiferente às reclamações sociais, foi sendo superado por um Estado de Direito inclusivo e compromissário, proposição que se faz clara na leitura da Constituição da República, onde o Estado assume para si obrigações positivas.
Os questionamentos acerca dos reflexos das políticas econômicas precisam ser entendidos dentro de um contexto em que se busca uma Constituição efetiva. Por isso é importante a doutrina das normas constitucionais inconstitucionais [38].
Mesmo sem se aventar à "ordem imanente" [39], não se pode ignorar a necessidade de harmonia do texto. Desta forma, ainda que formalmente constitucionais as disposições eleitas pelo poder constituído(inte) derivado, essas precisam, pela necessária unidade, não se indisporem com o espírito da Carta.
Em um Legislativo monetarizável, o Judiciário precisa ser forte, nem que seja no controle difuso de constitucionalidade, possibilidade de averiguação que fica completamente mitigada com o advento da súmula. Os grupos econômicos financiam uma emenda, o STF diz que é constitucional e os Juízes, todos, passam a rezar a mesma cartilha sob pena de reclamação ao Supremo. Uma reclamação que, procedente, terá o poder de modificar o conteúdo do julgado.
Pensar o Legislativo brasileiro nos termos consignados é cruel, mas, mais cruel, é sua volúpia modificadora. É tanta reforma que o professor Jorge Miranda, em simpósio realizado no dia 21 de outubro de 2006 na Universidade Estácio de Sá campus Menezes Cortes, disse não se poder dizer que o Brasil tem uma Constituição, vide a enormidade de emendas.
Este comentário corrobora o propugnado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que no artigo 16 pacificou: "qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição". Não havendo direitos assegurados, já que passíveis de reforma, como se dizer que temos uma Constituição? Carente de respostas também é a indagação acerca da necessidade de partição de poderes para se falar em Constituição: podemos falar em Constituição quando formalmente se assegura essa separação, mas na prática a negamos?
Responder a estas indagações não é fácil, já que é lugar comum dizer que as aspirações jurídicas têm assento cativo na Carta Política. Não havendo Carta, não há assento, e, não havendo assento, não haveria direitos.
A enormidade de reformas, contudo, pode ter sentido diametralmente oposto ao esposado pelo mestre português. Nessa linha assenta o professor Rogério Nascimento que, ao contrário de negar a importância da Constituição, sobreleva-a, já que passa a ser importante estar contido nela:
a crítica ao empobrecimento teórico também é procedente, mas não justifica a tese de um enfraquecimento de sentido da Constituição. Ao contrário, a Constituição se fortaleceu. Antes de 1988 tais problemas nem se colocavam e bem se julgava necessário travar verdadeiras batalhas congressuais, destinadas a reformar a Constituição. A compulsão reformadora demonstra que, no país, hoje, estar ou não contido no texto constitucional passou a ser relevante. [40](destacou-se)
Também defendendo a existência da Constituição brasileira, qualificando-a como Super-Rígida, temos o entendimento do professor e Conselheiro Nacional da Justiça, Alexandre de Moraes [41]. Seu entendimento tem por base a constatação de que o regime das cláusulas pétreas retira do alcance do poder reformador um considerável número de disposições constitucionais.
Independente do matiz ideológico através do qual será entendida a Carta Política brasileira, devemos sedimentar que esta deve ter substância. Deve ficar claro a necessidade de harmonia de seu texto e de respeito ao que ela eleva. Nessa medida, cada poder será exercido tal como deve, e não de forma a sujeitar o outro.