5 PONDERAÇÃO DE INTERESSES CONSTITUCIONAIS
É inequívoco que a discussão aqui travada ocorre no plano dos princípios – de um lado os existenciais dos possuidores e do outro a garantia do direito de propriedade. Quando esses princípios se chocam, eles precisam ser harmonizados, em cada caso concreto, prevalecendo o de maior valor, de acordo com um balanço realizado sob o crivo da proporcionalidade.
Robert Alexy, ao procedimentalizar a aplicação da proporcionalidade a dimensionou em três elementos: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
A adequação e a necessidade referem-se a aspectos externos de um ato, através dos quais se verifica se os meios utilizados são adequados aos fins almejados e se tal ato é realmente indispensável. Esses aspectos são apenas subjacentes à ponderação constitucional de interesses. Para este fim, utiliza-se, precipuamente a proporcionalidade em sentido estrito.
Essa proporcionalidade em sentido estrito é a lei da ponderação em si. A partir dela avalia-se a relação custo-benefício entre a ação praticada e os fins obtidos. "Meios e fins são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, com o objetivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim", e, se o ônus vencer, a medida é inconstitucional. É o princípio da justa medida. (CANOTILHO, 2003, p. 270)
É exatamente a proporcionalidade em sentido estrito que efetua a ponderação de interesses, solucionando os conflitos entre normas. O princípio da proporcionalidade é instrumentalizado por esse sopesamento.
Assim, verifica-se que cabe à proporcionalidade em sentido estrito o papel primordial de harmonizar princípios conflitantes, estabelecendo o grau de prevalência de um em detrimento do outro. Ela é a técnica a ser utilizada para dirimir quaisquer conflitos de interesses.
É a partir do filtro realizado por esse procedimento que se conclui que a atual proteção possessória desrespeita todo o ordenamento vigente. Sob a camuflagem de regras formalmente legítimas, está a se desconsiderar muitos direitos de índole infinitamente superior.
Todavia, tal aferição somente pode ser realizada no caso concreto, onde se verificará qual interesse deve efetivamente prevalecer. E isso não é algo simples de se fazer, já que a repercussão da decisão judicial é dotada de contornos, geralmente, irreversíveis. A esse respeito, merece transcrição a seguinte passagem do Ministro Teori Albino Zavascki:
É o que ocorre, por exemplo, quando, em relação a determinado bem, o detentor da titulação jurídica é omisso no desempenho da função social, a qual, todavia, vem sendo exercida por longo tempo e em sua plenitude por outrem, possuidor não-proprietário. Em tais casos, atender pura e simplesmente a eventual reivindicação do bem pelo proprietário representará, certamente, garantir seu direito de propriedade, mas significará também, sem sombra de dúvida, comprometer a força normativa do princípio da função social. Já a solução contrária aos interesses do reivindicante operará em sentido inverso: atenderá a função social, mas limitará a força normativa do princípio norteador do direito de propriedade. (ZAVASCKI, 2007)
Como há interesses de relevância constitucional dos dois lados, não se pode simplesmente ignorar um deles. O que se defende aqui não é conferir aos possuidores o direito de propriedade retirado à força de quem o detém.
As soluções corretas aparecerão com o tempo e com a experiência, mas a demonstração de que hoje não se está fazendo da maneira correta é o primeiro passo rumo ao devido respeito dos direitos dos possuidores.
O Código Civil, em seu artigo 1.228, § 4º, trouxe uma inovação interessante e que pode ser um caso paradigmático para as futuras decisões nos conflitos entre possuidores e proprietários que não tenham previsão legal. Esse artigo permite que a prestação dos possuidores, ao invés de ser específica – de devolução do bem esbulhado – possa ser alternativa, ou seja, que eles possam ficar com a propriedade do imóvel caso paguem a justa indenização.
Dessa forma, o proprietário não poderia se valer das ações possessórias para proteger sua propriedade ilegítima, e se os possuidores preferirem indenizá-lo, ele deve perder a terra, ainda que contra sua vontade.
6 CONCLUSÃO
A experiência histórica de proteção à propriedade não mais é legítima no atual ordenamento jurídico-constitucional, uma vez que desobedece ao princípio da proporcionalidade.
A propriedade absoluta cedeu espaço para a propriedade social. O proprietário, agora, tem o dever de atender ao princípio da função social e não pode incidir em atos emulativos configuradores do abuso de direito de propriedade.
Caso isso aconteça, não se pode mais ignorar o direito existencial de eventuais possuidores que venham a esbulhar tal propriedade, que a essa altura se afigura como ilegítima.
O possuidor é titular de direitos assim como o proprietário, e merece ter seus direitos fundamentais respeitados, porque a posse não é mera aparência de propriedade, é direito autônomo, que estampa em si a mais nítida função social.
REFERÊNCIAS
BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Commentado. Vol. I, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1936, p.425.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra – Portugal: Almedina, 2003.
CAVEDON, Fernanda de Salles. Função social e ambiental da propriedade. Florianópolis: Momento Atual, 2003.
FARIAS, Cristiano Chaves. Direito Civil – Teoria Geral. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
GALIL, Aidê. A função social da posse como estratégia para a realização do direito social de moradia. Centro de Pesquisas Estratégicas "Paulino Soares de Sousa" Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2003. Disponível em: <http://www.ufjf.edu.br/defesa>. Acesso em: 05/10/2008.
GOMES, Orlando. Direitos Reais. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – Direitos Reais. vol. IV. 18ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Ímpetus, 2004.
ZAVASCKI, Teori Albino. A tutela da posse na Constituição e no novo Código Civil. BDJUR. Brasília, 2007. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br>. Acesso em: 28/09/2008.
Nota
01
Papa João Paulo II, em sua primeira visita ao Brasil, em 1980, citando a Encíclica Master & Magistra, de 1961, do Papa João XXIII.