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A possibilidade da negociação coletiva entre servidores públicos e o Estado

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Agenda 06/02/2009 às 00:00

SUMÁRIO:INTRODUÇÃO. CAPÍTULO I DIRETRIZES CONSTITUCIONAIS ACERCA DA COMPOSIÇÃO COLETIVA DE INTERESSES ENTRE SERVIDORES E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. 1.1 Breves apontamentos acerca da evolução da Administração Pública no Brasil. 1.1.1 Da fase patrimonialista à fase legal ou burocrática. 1.1.2 A concepção autoritária de Estado e sua influência na relação da Administração com seu corpo funcional. 1.2 A ruptura com o modelo clássico de Estado na Constituição Federal de 198816. 1.2.1 Da lenta extensão de direitos reconhecidos aos trabalhadores da iniciativa privada aos servidores públicos. 1.2.2 Avanços constitucionais atinentes à composição coletiva de interesses dos servidores públicos civis. 1.2.3.1 O significado do direito à sindicalização e à greve dos servidores públicos na Carta de 1988. 1.3 A autonomia da vontade coletiva. 1.3.1 Interdependência dos mecanismos de formatação e veiculação da autonomia da vontade coletiva. CAPÍTULO II A INTERPRETAÇÃO CONFERIDA PELO STF À AUTONOMIA COLETIVA DE VONTADE DOS SERVIDORES PÚBLICOS FRENTE AO ESTADO. 3.1 Os Óbices à Negociação Coletiva entre Servidores e Administração: a Síntese Veiculada no Julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 492-1/DF. 3.2 O julgamento do STF acerca do direito dos servidores públicos à negociação coletiva a partir de uma perspectiva hermenêutica. 3.2.1 A pré-compreensão que norteou a análise do STF acerca da possibilidade de negociação coletiva entre servidores e Estado. 3.2.2 Possibilidades dos "termos indeterminados". CAPÍTULO III A SUPERAÇÃO DOS OBSTÁCULOS: UMA ABORDAGEM CRÍTICA A PARTIR DO MODELO DE ESTADO FORMATADO PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E DA PRÁTICA ADOTADA NOS MOVIMENTOS GREVISTAS. 3.1 Uma Abordagem Crítica a Partir do Paradigma Espanhol. 3.2 Dos fundamentos que sustentam a possibilidade da realização de acordo coletivo entre servidores e o Poder Público a partir de uma leitura hermenêutica da Constituição Federal de 1988. 3.2.1 Negociação coletiva entre servidores públicos regidos pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho e a Administração. 3.2.2 Objetos de negociação coletiva cujo conteúdo não esbarra nos impeditivos argüidos. 3.2.3 Imposições da dinâmica social: a composição coletiva de interesses no quotidiano da relação entre funcionalismo e Administração Pública. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


Introdução

Grande parte da doutrina brasileira sustenta a impossibilidade jurídica da realização de acordos coletivos entre servidores públicos e Estado. A impossibilidade, segundo os estudiosos, é traduzida nos seguintes aspectos: (1) a sujeição da atuação da Administração Pública ao Princípio da Legalidade e ao Princípio da reserva Legal, pois com a atuação estritamente subordinada às disposições legais e à reserva de competência, a Administração não dispõe do mínimo poder decisório nas questões que regulam a relação laboral com seus servidores; (2) o Estado não dispõe dos interesses que representa, considerando-se que age em nome do interesse público; (3) tampouco dispõe dos mecanismos necessários ao cumprimento das cláusulas que têm repercussões financeiras, tendo em vista a vinculação da receita às diretrizes previamente estabelecidas no orçamento.

Em que pese a relevância de tais argumentos, a dinâmica social impõe que se repense a questão, pois já não se concebe a figura do Estado Autoritário, que ignora a existência de conflitos de interesses oriundos do seu corpo de pessoal. Pelo contrário, o conflito de interesses entre funcionalismo público e Estado, representados pela deflagração de movimentos grevistas, são cada vez mais freqüentes.

Ademais, uma leitura hermenêutica da Constituição Federal, aponta para a possibilidade de construção de uma nova leitura sobre a questão, a partir da interpretação do significado do reconhecimento do direito dos servidores públicos à sindicalização e à greve na Carta de 1988.

A verificação da possibilidade de superação dos obstáculos apontados, garantindo-se a conferência de eficácia jurídica aos processos de negociação coletiva entre funcionalismo e Administração Pública, informalmente praticados, constitui, pois, o objeto do presente estudo.


1. A COMPOSIÇÃO COLETIVA DE INTERESSES DOS SERVIDORES PÚBLICOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A análise do direito de negociação coletiva dos servidores públicos deve ser compreendida num contexto histórico. Por tal razão, o item presente visa analisar a evolução histórica da relação de trabalho com o Estado.

1.1.1 Da fase patrimonialista à fase legal ou burocrática

Relativamente à evolução da Administração Pública no Brasil, pode-se dizer que a mesma acompanhou a evolução político-social do país, como forma de negação dos modelos paternalistas pré-burocráticos [01], ocorrendo de forma lenta, não estanque, deslocando-se paulatinamente da concepção patrimonialista - na qual os postos de trabalho na Administração pertenciam ao Chefe do Executivo –, vigente durante toda a República Velha, à atual fase legal ou burocrática, cuja implementação iniciou após a Revolução de 30 [02], através do processo conhecido como "Reforma Administrativa da Era Vargas".

Max Weber [03] foi expoente dos modelos patrimonialista e burocrático de Administração, tendo defendido enfaticamente a superioridade desse último, o qual separa, por princípio, a vida privada da vida profissional dos agentes, de modo a vinculá-los não a uma pessoa ou a um interesse particular, mas sim à persecução de uma finalidade comum e impessoal. A administração burocrática, conforme leciona o próprio Weber, tem sua atividade voltada à ampliação quantitativa e qualificativa dos resultados, utilizando-se, para tanto, de uma estratégia técnica superior à qualquer outra forma de organização administrativa, caracterizada pela "precisão, rapidez, univocidade, conhecimento da documentação, continuidade, discrição, uniformidade, subordinação rigorosa, diminuição de atritos e custos materiais e pessoais (...)." [04]

No Brasil, a evolução da fase patrimonialista para a burocrática na Administração Pública importou em significativo avanço ao longo do tempo, consistente na instituição do concurso público - que, em tese, rompeu com o paradigma de apropriação privada dos cargos pelo governante - e na fixação de atribuições determinadas para cada agente, em cada órgão da Administração. Haveria, assim, uma redução substancial da discricionariedade, até então absoluta, dos agentes políticos [05].

Não obstante, Sérgio Buarque de Holanda [06] assevera que a evolução do modelo patrimonialista para o modelo burocrático de serviço público, talvez tenha ficado restrito ao âmbito estrutural, preservando resquícios da fase patrimonialista no que concerne a alguns critérios de pessoalidade vigentes durante aquela fase. Segundo o historiador, para o funcionário "patrimonial", a gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular [07]: as funções, os empregos e os benefícios que obtém, se relacionam a direitos pessoais do funcionário, e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurar garantias jurídicas aos cidadãos.

A escolha dos homens que irão exercer funções públicas, ainda na fase inicial de implementação do modelo burocrático, faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e não de acordo com o potencial de trabalho próprio de cada um. Ausente, portanto, a ordenação impessoal que caracteriza a vida num Estado burocrático. No Brasil, pode-se dizer que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo em um corpo de funcionários puramente dedicado a interesses objetivos e fundado nesses interesses. Deste modo, as raízes da burocracia brasileira "contrariamente ao modelo legal-burocrático de administração pública, estruturam-se no bojo de um Estado formalmente público, mas materialmente privado." [08]

Esse caráter excepcional na impessoalidade do preenchimento dos quadros públicos decorre da manutenção de incontáveis "brechas" na implementação do modelo burocrático de Administração Pública, representadas pela reserva de muitos Cargos de Confiança e de Chefia os quais, até hoje, permitem aos administradores públicos manterem em seu "patrimônio" espaços públicos de grande relevância.

Assim registra Wahrlich, para quem

O único desvio importante que se pode apontar com relação à obediência a esses modelos se refere ao provimento em comissão das chefias e cargos de direção e assessoramento superior, norma que sem dúvida possibilitava uma brecha na neutralidade e impessoalidade da burocracia, apanágio do modelo de Weber (...). [09]

Neste contexto, as Constituições Brasileiras anteriores à Carta de 1988 conservavam um traço marcadamente autoritário no se que referia à possibilidade dos servidores públicos [10] intervirem na relação de trabalho entre eles estabelecida com o Estado.

Até a promulgação da Constituição Federal de 1988, pode-se sustentar, inclusive, que os servidores públicos sequer constituíam uma categoria profissional na verdadeira acepção da palavra, haja vista os fortes resquícios do modelo clientelista de Estado mesmo quando da implementação da fase burocrática, que permitia a contratação de trabalhadores sob os mais diversos regimes jurídicos e a partir de uma vasta gama de razões. Segundo Lima Júnior

A efetiva profissionalização do servidor, tentada várias vezes, nunca ocorreu e sempre conviveu com a multiplicidade de cargos, de planos salariais especiais e de "trens da alegria", típicos de final de Administração [11]

Isto porque a manutenção da possibilidade de contratação de servidores pelos mais diversos regimes jurídicos até a promulgação da Carta de 1988, e a ausência de obrigatoriedade no que referia à realização de processos de seleção para o recrutamento de pessoal, aliadas ao ranço patrimonialista que permitia a contratação por interesses particulares, acarretavam inúmeras e profundas diferenças entre os servidores. Tais diferenças identitárias inviabilizavam a conformação de uma unidade capaz de vinculá-los em torno de interesses comuns, em face da

pesada herança de um processo de recrutamento e alocações de quadros no funcionalismo público marcado, simultaneamente, por falta de critérios, nepotismo e heterogeneidade na sua constituição [12].

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Tratando das dificuldades de formação de um corpo coletivo homogêneo, em face da existência simultânea de distintos regimes de trabalho na Administração Pública, Ramón Parada, ao analisar a realidade espanhola, que a partir da edição da Ley de Funcionarios de 1964, passou a admitir contratações de servidores sob outro regime que não o estatutário, observa que a coexistência de diversos regimes de trabalho numa mesma esfera operacional impõe "graves diferenciais y por ello inevitables tensiones y conflictos entre los dos colectivos". [13]

Exemplificativamente, pode-se examinar o quadro delineado na Administração Pública Federal. Até o advento da Constituição Federal de 1988, muitos servidores eram contratados mediante prévia seleção em concurso público, e, neste diapasão, tinham sua relação de trabalho com o Estado regida pela Lei nº 1.711/52, então Estatuto [14] dos Funcionários Públicos. Entretanto, paralelamente a estas contratações, uma significativa parcela de trabalhadores era empregada sem qualquer critério de seleção, muitas vezes com o intuito de suprir necessidades pessoais, próprias dos agentes públicos que autorizavam as contratações ou as executavam.

Desta forma, não fosse a vigência de um modelo constitucional que negava a possibilidade dos servidores públicos comporem coletivamente seus interesses com a Administração, tal hipótese ainda manter-se-ia inviável, seja pela ausência de identidade no interior do corpo funcional administrativo, seja pela falta de garantia que gerava a ausência de independência da maioria destes trabalhadores. Era um sistema que conduzia à manutenção da subserviência dos mesmos frente aos superiores hierárquicos que, assim como dispunham de largo poder decisório na definição das necessidades do serviço público e designação dos indivíduos que iriam suprir tal carência, também dispunham de ampla liberalidade para demiti-los.

A tendência natural do universo dos servidores era a de formação de um espírito corporativo no sentido histórico da expressão. Tendiam a isolar-se, divididos por estamentos com interesses próprios, em busca de vantagens corporativas frente aos demais. Tendências essas hostis à formação de uma identidade coletiva, característica inerente às categorias profissionais.

Sobre a questão, são igualmente relevantes os apontamentos de Alan Supiot, os quais remetem a análise da mesma à "fraternidade", que designa o vínculo daqueles que, por fé ou vontade, reconhecem entre si um ascendente comum, algo a compartilhar, um conjunto de direitos e deveres, de ajuda e assistência mútua. Não obstante, aduz o autor que tal conceito se presta tanto a integrar os indivíduos e a viabilizar a formatação de uma vontade coletiva, como também para desintegrar, pois "Al definir el círculo de los que consideran que proceden de um mismo autor, la fraternidad excluye, por tal circunstancia, a todos los demás." [15]

Neste contexto, a fraternidade serve para estabelecer uma oposição entre "eles" e "nós", da qual se valem os indivíduos para operar a exclusão, pois ""Ellos" se hallan excluídos de los deberes, pero también de los derechos a la ayuda, a la asistencia y al reparto, que caracterizan el círculo familiar." [16]

Assim, foi a rede de conveniências - marcada pelo corporativismo e pelo clientelismo, para a qual o interesse público não despertava maiores atenções – que praticamente dominou o cenário dos quadros de pessoal da Administração Pública até a fase de abertura política, no início da década de 80, consolidada com o advento da Carta de 1988. Resultado do fenômeno descrito foi o comprometimento da possibilidade dos servidores organizarem-se coletivamente, em face da incompatibilidade de interesses existente entre eles.

Contudo, mesmo timidamente, a evolução da fase patrimonialista para a fase burocrática no serviço público revelou o início de uma transformação não apenas estrutural, relativamente à distribuição das funções públicas em "estamentos" hierarquizados, como também política, haja vista a lenta compreensão de que, antes de atender aos interesses pessoais dos governantes, a Administração Pública deveria atender aos anseios sociais que justificavam a existência do Estado. Tornou-se premente, assim, o desenvolvimento de "um tipo de administração que partisse não só da clara distinção entre o público e o privado, mas também da separação entre o político e o administrador público" [17].

1.1.2 A concepção autoritária de Estado e sua influência na relação da Administração com seu corpo funcional

No lento processo de aceitação da idéia de que o Estado tem funções sociais a cumprir, se inseriram também as acepções acerca das suas relações com os cidadãos destinatários dos serviços por ele prestados, bem como com os agentes públicos.

Até a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, em 1988, os servidores públicos não tinham qualquer possibilidade de interferir na relação de trabalho que mantinham com o Estado, conforme anteriormente referido. [18] A doutrina administrativista anterior à promulgação da Constituição Federal de 1988 é enfática ao rechaçar toda e qualquer possibilidade de organização coletiva dos servidores com vistas a gerar oposição ao Estado. A justificativa, em regra, é a necessária observância, pelos servidores, dos deveres de obediência, hierarquia e legalidade, como também a atuação da Administração voltada única e exclusivamente à persecução do bem comum. [19]

Desta forma, até a promulgação da Carta Cidadã, sequer o direito à sindicalização [20] - mais significativo e fundamental instrumento de composição coletiva de interesses, dentre aqueles reconhecidos como tais pela doutrina moderna – era assegurado ao funcionalismo público. [21]

O suporte teórico desta formatação era uma concepção autoritária de Estado, que não admitia a existência de conflitos de interesse nas relações de trabalho mantidas com o Poder Público e tampouco a possibilidade de se instituir uma relação democrática com o Estado, na qual as partes poderiam acordar ou apenas ajustar a relação que entre si estabelecida, pois, conforme ressalta Ernildo Stein, "sem a participação efetiva de todos na elaboração das instituições, estas sempre se convertem em estruturas de violência e dominação." [22]

Para Francisco Liberal Fernandes, tal concepção de Estado tem fundamento em quatro aspectos fundamentais. Segundo leciona, a relação laboral no serviço público é composta pela integração de duas faces que podem, inclusive, ser consideradas antagônicas, em que pese ambas se realizarem na pessoa do agente público. São elas: a realidade do trabalhador que presta seus serviços à Administração, que conforma o epicentro das expectativas e anseios deste em relação ao seu espaço social, e o seu condicionamento à qualidade de membro do organismo administrativo, em nome do qual atua no exercício da autoridade pública. [23]

Contudo, a doutrina administrativista clássica reduziu esta dualidade a um monismo, privilegiando o segundo aspecto em detrimento do primeiro, razão pela qual a realização pessoal do agente público passou a ser ignorada nessa relação, abrindo espaço para que a vontade unilateral do Estado passasse a ser a única fonte que a conformava. [24]

O segundo aspecto que contribuiu para a concepção da doutrina clássica foi a redução do agente público à condição de mera peça da máquina administrativa [25], cuja razão de existir não era outra senão a de manter viva e em funcionamento a estrutura a qual pertencia o servidor. Nesta condição, o funcionário deixava de ser detentor de qualquer autonomia ou relevância pessoal para passar a ocupar a condição de sujeito que, portador de alguma capacidade produtiva, servia à Administração, não, contudo, de forma especial, o que importava no fato de que qualquer outro particular, detentor das mesmas capacidades impessoais, pudesse executar as mesmas tarefas sem qualquer prejuízo ao todo, representado pela Administração.

Sob este prisma organicista, a vontade do agente não passava de mera reprodução da vontade do Estado, razão pela qual eventuais conflitos de interesse eram inconcebíveis. Com o tempo, esta visão foi flexibilizada para dar espaço à interpretação segundo a qual a vontade do agente não se confundia com a vontade do Estado, o que possibilitou a conferência de certa autonomia jurídica aos trabalhadores e o vínculo que unia os pólos da relação passou a ser tratado como relação jurídica [26].

O terceiro argumento que conferia sustentabilidade à clássica concepção autoritária de Estado encontrava guarida na desigualdade das partes que compunham a relação de trabalho fixada entre servidores e Administração, pois a

existência de uma posição de supremacia do ente administrativo relativamente aos seus agentes tornava-se incompatível com o recurso a modelos que pressupunham a paridade, ainda que formal, das partes em presença. [27]

A essa razão, agregue-se, ainda, a instrumentalidade do agente à consecução do interesse público, e a noção de absoluta soberania da vontade do Estado, que contribuíam para a idéia de que de que a Administração não pudesse se limitar pela eventual obrigação de considerar vontades estranhas à sua. [28]

O último pilar da concepção autoritária de Estado propagava a idéia de que a relação que vinculava o servidor à Administração não tinha caráter patrimonial, diferentemente de relações semelhantes estabelecidas em âmbito privado. Significava dizer que o agente público não trabalhava com vistas à obtenção do resultado econômico daquela relação, e o resultado pecuniário de seus esforços não tinha caráter de contraprestação, mas sim de indenização, ao contrário do trabalhador da iniciativa privada, fator este que, segundo a visão a partir daí concebida, distanciava, definitivamente, as relações de trabalho estabelecidas nas searas pública e privada, principalmente no que referia ao regramento aplicável a cada espécie. [29]

Fernandes [30] ainda leciona que

(...) segundo a doutrina clássica, o trabalho na Administração não podia ser qualificado como uma actividade laboral em sentido técnico, mas como uma manifestação do exercício da competência que era conferida ao agente com a tomada de posse, constituindo, por isso, o substracto material da função desempenhada; neste contexto afirmava-se ainda que o dever de prestar não se dirigia à satisfação de um crédito, porquanto o Estado não dispunha sobre a actividade dos seus dependentes um direito de natureza obrigacional, mas de caráter público.

Nesta concepção, o vínculo laboral tinha natureza de fidelidade, de forma que o servidor aderia aos fins institucionais da Administração.

Também com o intuito de explicar o autoritarismo do Estado, no que tange às relações surgidas no âmbito interno da Administração Pública, Rogério Viola Coelho [31] refere que o Estado Iluminista foi concebido a partir de uma nova racionalidade, que substituiu a vontade absoluta do monarca, até então tida como expressão da vontade divina, pela vontade geral do povo.

Neste momento histórico marcado pelo Iluminismo, a racionalidade transcendente deu lugar a uma racionalidade imanente, fruto da vontade do povo, fato este que, por si só, denotava a superioridade dessa nova forma de pensar o Estado.

Não se pode olvidar, contudo, que as pressões da burguesia, orientadas por interesses concernentes à produção capitalista, acabaram por enfocar esta nova racionalidade emergente sob dois postulados específicos: a proteção ao indivíduo e a proteção do seu patrimônio.

Ao eleger tais referências para a sua área de atuação preferencial, o modelo de Estado então emergente acabou por privilegiar a atividade externa do Estado, de modo que foi na sua relação com os cidadãos "o primeiro espaço onde incidiu o direito, abrangendo a legislação primeiramente as relações dela, Administração, com os administrados." [32]

Disso decorreu uma dicotomia na atuação do Estado, haja vista que, de um lado, quando da sua atuação nos aspectos concernentes à proteção do indivíduo e do patrimônio, ele se movimentava no plano do direito. De outro lado, no que tange às regras de organização interna da Administração Pública, o Estado permaneceu atuando albergado pelo paradigma do não-direito, resguardando, assim, um reduto de livre arbítrio no seu interior e para com aqueles que, neste espaço, exerciam suas funções, de forma que a

organização e o funcionamento do Estado resistiu à nova racionalidade emanada da vontade geral, persistindo aí a racionalidade do Estado Monárquico, absolutamente autoritário. [33]

E é justamente neste espaço que até os dias atuais se encontra a Administração Pública, que permaneceu subordinada a uma racionalidade autoritária, mesmo após a limitação da atuação do Estado pelo direito. Segundo o autor

Em que pese tenha sido grande o avanço produzido nos marcos formais, substancialmente continuou prevalecendo, e até recrudescendo, com as dimensões alcançadas pelo estado Moderno, a concentração do poder no topo da Instituição, na pessoa do Chefe do Poder Executivo. Tudo se passava, e ainda se passa, especialmente nos países periféricos, como se o espírito do monarca absoluto incorporasse de forma recorrente no chefe do Poder Executivo. [34]

Pertinente, nesse contexto, a lição de Hans Kelsen acerca do tema, para quem tal doutrina

se nutre na religiosidade presente no senso comum, para conceber o Estado como um ser transcendente à sociedade, como Deus transcende o mundo, e personificando no chefe do Poder Executivo o poder absoluto do monarca. [35]

1.2 A ruptura com o modelo clássico de Estado na Constituição Federal de 1988

Em que pese a persistência do modelo autoritário de Estado nas relações desse com seus servidores, que determinou o enraizamento de tal concepção em todos os âmbitos da vida social, o fato é que ele foi, paulatinamente, sendo contrastado por novas concepções, gestadas pela dinâmica social e, posteriormente, institucionalizadas pela legislação pertinente, mesmo que de forma não uniforme.

1.2.1 Da lenta extensão de direitos reconhecidos aos trabalhadores da iniciativa privada aos servidores públicos

Muitas inovações foram inseridas a partir do reconhecimento, aos servidores públicos, de alguns dos direitos fundamentais tradicionalmente deferidos apenas aos trabalhadores da iniciativa privada. Essa legitimação conferida pela Constituição de 1988 é incompatível com o modelo autoritário de Estado até então vigente, pois pressupõe uma relativização da prevalência dos interesses da Administração, porquanto estes passaram a encontrar limites nos direitos fundamentais reconhecidos aos seus trabalhadores.

Francisco Fernandes observa que tais avanços ocorreram mediante a importação de alguns institutos típicos das relações privadas de trabalho para a seara pública. Conforme o autor [36],

A emancipação jurídica conferida pela ordem jurídica à situação profissional do agente do Estado fez com que o ramo do direito especialmente vocacionado para tutelar o trabalho dependente passasse a exercer influência directa sobre o regime da função pública. Neste contexto, o Direito do Trabalho surge imbuído de uma força expansiva que lhe confere uma posição de referente, senão mesmo de garantia, em tudo aquilo que se prende com os direitos fundamentais dos agentes da Administração. Daí a legitimidade para transpor regras e princípios daquele ramo de direito para o sector do emprego público.

Com efeito, mesmo antes da vigência da Carta de 1988, quando vigorava o rechaço ao direito dos servidores organizarem-se para constituir e manifestar sua vontade coletiva, e, apesar do desencontro de interesses no bojo desta classe, já mencionado, eles encontraram, paulatinamente, subterfúgios na formação de associações de classe [37], calcados no modelo desenvolvido na iniciativa privada, a partir das quais acabou por se formar uma identidade coletiva, já suficientemente amadurecida para suportar a criação de sindicatos de classe quando da promulgação da Carta de 1988. [38]

Com relação ao clientelismo ainda vigente até a promulgação da Constituição de 1988, e às diferenças verificadas entre os servidores públicos, decorrentes da diversidade de regimes, é relevante ressaltar que a superação destes aspectos restou instrumentalizada a partir de dois postulados constitucionais: (a) a acessibilidade dos cargos públicos a todos os cidadãos - mediante aprovação em processo público seletivo -, e (b) a instituição obrigatória de um único regime jurídico para os servidores públicos de cada esfera, que, no caso dos servidores federais, foi institucionalizado em 1990, através da edição da lei 8.112/90 (Regime Jurídico Único dos Servidores Civis da União).

1.2.2 Avanços constitucionais atinentes à composição coletiva de interesses dos servidores públicos civis

A consagração do Estado Democrático de Direito no Brasil, através da promulgação da Constituição Federal de 1988, trouxe instrumentos capazes de realizar não apenas a liberdade individual, como também o postulado da igualdade material, a partir da institucionalização de mecanismos capazes de promover transformações atinentes à diminuição das desigualdades sociais. Neste sentido, Barreto assevera que num Estado Democrático de Direito a Constituição deve ser lida através de "procedimentos interpretativos de legitimação das aspirações sociais." [39]

Também para os servidores públicos a Constituição aportou consideráveis avanços. Além do reconhecimento de inúmeros direitos e garantias fundamentais, até então assegurados apenas aos trabalhadores do setor privado, o artigo 37, inciso VI da Carta Política também garantiu aos servidores públicos civis "o direito à livre associação sindical".

Por esse modo, a Carta de 1988 instrumentalizou a intervenção dos servidores nas determinações das suas condições de trabalho, através do reconhecimento do direito à livre associação sindical e do direito de greve da categoria, a ser exercido "nos termos e nos limites definidos em lei específica" (inciso VII, art. 37 da Constituição Federal de 1988).

1.2.3 O Significado do Direito à Sindicalização e à Greve dos Servidores Públicos na Carta de 1988

Ao consagrar tais direitos, o constituinte de 1988 institucionalizou a possibilidade do funcionalismo público interferir nas determinações concernentes às suas condições de trabalho - inclusive através de processos de pressão, rompendo com o autoritarismo na relação de trabalho com a Administração. [40] Hoje, é consensualmente reconhecido que a sindicalização produz o sujeito social, ensejando o exercício da autonomia coletiva de grupos humanos portadores de interesses particulares comuns, atinentes ao exercício de determinada profissão. Por isto, ela é o instrumento hábil a garantir que a relação laboral não será fixada unilateralmente pelo tomador de serviço. Isto porque a constituição da categoria profissional como sujeito social, a relação de trabalho subordinado tende a deixar de ser uma relação de poder para ser fruto da composição dos interesses dos dois pólos que a integram.

É certo que, ao longo da vigência do novo ordenamento jurídico, estas duas inovações foram alvo de muitos debates, nos quais foram analisados os limites e as implicações do reconhecimento dos direitos em questão ao funcionalismo público, mormente no que diz com o direito de greve [41]. Importa-nos, contudo, ressaltar que, não obstante as discussões acerca dos limites do exercício do direito de greve dos servidores, eventuais regulamentações acerca do tema não poderão esvaziar o instituto.

Na linha de reconhecimento e instrumentalização da possibilidade dos servidores intervirem nas suas condições de trabalho, o direito à negociação coletiva [42] parecia estar implícito no texto constitucional, visto que este mecanismo é o instrumento que serve à natural composição dos interesses veiculados pela greve e pelos sindicatos [43].

Entrementes, a este respeito a Constituição Federal de 1988 apresentou-se silente. No que diz com os servidores públicos, a Carta Constitucional, além das disposições expostas, limitou-se a determinar, indiretamente, que a sua relação de trabalho seria conduzida pelas disposições legais, através do conteúdo do caput do artigo 37, que condiciona a atuação da Administração Pública ao Princípio da Legalidade, dentre outros.

O quadro exposto expressa a constatação de Norberto Bobbio, no sentido de que a democracia praticada na atualidade permanece atrelada à concepção originária de democracia, concebida no seio de uma sociedade individualista, que inclusive reprimiu, num primeiro momento, a constituição de organismos sociais capazes de intermediar as relações de poder entre Estado e sociedade, como é o caso dos sindicatos. [44]

Importa aqui destacar que a omissão do legislador constituinte, sobre a possibilidade de negociação coletiva entre sindicato de servidores e Administração Pública, acabou por acarretar grande prejuízo, não só ao avanço das relações de trabalho e, neste passo, ao aperfeiçoamento do serviço público, como também, e principalmente, à harmonia do ordenamento constitucional, que reconheceu a legitimidade da potencialização dos conflitos, através do direito à greve e, contraditoriamente, negou a possibilidade de solução dos mesmos pela via negocial. [45] Gino Giugni ressalta que não é a natureza pública ou privada do vínculo laboral o fator determinante a conflitualidade da relação. O que gera o conflito é uma distribuição desigual de poder, consubstanciada, no caso, pelo reconhecimento do direito de greve da categoria, desacompanhado do correlato direito à negociação coletiva. [46]

No que concerne ao significado histórico do reconhecimento da possibilidade da realização da negociação coletiva na esfera pública, é relevante a lição de Carlos Carrera Ortiz, quando declara que

El reconocimento de los derechos sindicales en el empleo público, especialmente el derecho de huelga y el de negociación colectiva se hace possible con la quiebra del modelo autoritario de la relación entre la Administración Pública y sus funcionarios, en el que, supuestamente, no existe el conflicto de intereses, ni la paridad siquiera formal entre las partes que se reconocen en el sector laboral, por lo que las ideas de sindicalización y contratación colectiva son completamente extrañas a aquél dado que la regulación y la gestión de dicha relación las lleva a cabo unilateralmente la AP en el marco de su propio ordenamiento interno. [47]

Diante do contexto jurídico exposto, apresenta especial relevo a análise dos princípios que regem a liberdade sindical, a greve e a negociação coletiva, como manifestações da autonomia da vontade coletiva, a bem de elucidar não apenas seu potencial de alteração do contexto social, como também de reconhecer a necessidade de convivência dos três pilares que a externam nas relações de trabalho.

1.3 A autonomia da vontade coletiva

A análise da negociação coletiva, seja na esfera pública, seja na esfera privada, pressupõe que se esclareça ser ela apenas uma das faces mediante as quais se revela a autonomia da vontade coletiva, esta sim, fundamento onde se legitimam os mecanismos disponíveis aos trabalhadores para a intervenção nas questões que lhes são concernentes, inclusive através de produção normativa. Neste sentido, Carrasco [48] refere que a autonomia da vontade coletiva é um princípio superior no qual se fundamenta a fonte negocial e, portanto, integra outros mecanismos conexos à negociação coletiva, como a organização dos sujeitos, através do exercício da liberdade sindical, que inclui a livre constituição e atuação dos sindicatos, e do exercício do direito de greve.

1.3.1 Interdependência dos mecanismos de formatação e veiculação da autonomia da vontade coletiva

Carrasco leciona que, baseados na autonomia coletiva da vontade, visando fazer valer os postulados desta, a sindicalização, a greve e a negociação coletiva são institutos interdependentes e intrinsecamente vinculados. Afirma o autor que os três institutos estão

indisolublemente conectadas entre si, de manera que, representado aspectos parciales de esse poder em que consiste la autonomia colectiva, se complementan em aras de hacerlo efectivo. La faculdad de autoorganización, articulada jurídicamente mediante el reconocimiento de la libertad sindical, viene a reforzar la posición del sujeito que, por su naturaleza colectiva, necesita la suficiente cohesión interna como para constituir un verdadero contrapoder social con capacidad negociadora. En definitiva, hay que tener presente que el poder del grupo tiene como presupuesto ineludible su organización. De ello se deduce que una eventual intervención legal en materia de negociación colectiva debe tener en cuenta, inexcusablemente, la conexión de esta con la capacidad autoorganizativa de los proprios sujeitos negociadores. Por su parte, la función negocial, además de ser indicativa de la fuerza de la organización, modula al efecto su propia fisionomía. [49]

Note-se que a sindicalização e o direito de greve são reconhecidos como direitos instrumentais para composição coletiva de interesses. A negociação coletiva e a greve são os elementos constitutivos da atividade sindical, [50] sem os quais ela resta comprometida, e sua ação fica reduzida à judicialização dos conflitos sociais, ou às manifestações públicas de protesto, estas últimas praticamente inócuas, mormente quando já prevalece no imaginário social a idéia de responsabilização dos servidores pela ineficiência do serviços públicos, amplamente difundida pelos veículos de comunicação de massa, quando do desenvolvimento de políticas de ajuste do Estado [51].

Em verdade, de nada adianta a institucionalização do direito de greve e a atribuição de personalidade jurídica à coletividade dos trabalhadores se, nesta condição, eles não possuem instrumentos que possibilitem a sua intervenção na determinação das condições de trabalho que lhes são impostas, seja de forma pacífica, através da negociação coletiva, seja através da pressão social do movimento paredista [52]. A doutrina universal reconhece ser a negociação coletiva, assim como a greve, constitutiva do conteúdo essencial da liberdade sindical, que nada mais é senão manifestação da liberdade, fundamento da democracia moderna, ao lado da igualdade.

Apenas para melhor elucidar a íntima relação existente entre os três institutos veja-se, por exemplo, a ligação entre a negociação coletiva e a greve [53]. A negociação coletiva, além de função precípua do sindicato, quando atua institucionalmente em prol dos interesses da categoria por ele representada, também é pressuposto para o exercício do direito de greve. A afirmação pode ser comprovada em dois momentos: (1) por ocasião da deflagração do movimento grevista, quando as tentativas de negociação se mostram inexitosas, e (2) por ocasião do encerramento da paralisação, seja em razão da realização de acordo, seja em razão da constatação de impasse. A negociação coletiva é, assim, o instrumento que veicula as pretensões: é através dela que se discutem as expectativas das partes antagônicas na relação de trabalho, e é, também através dela, que se chega a um consenso ou se conclui, definitivamente, pelo fracasso das tentativas de encontrar uma solução pacífica para os conflitos de interesses.

Sobre a autora
Melissa Demari

Advogada e professora Universitária. Mestre em Direito Público pela UNISINOS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DEMARI, Melissa. A possibilidade da negociação coletiva entre servidores públicos e o Estado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2046, 6 fev. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12289. Acesso em: 23 dez. 2024.

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