1. Introdução
A constitucionalidade de qualquer intervenção do Direito Penal deve necessariamente passar pela análise do bem-jurídico subjacente à norma incriminadora. E em se tratando de crimes fiscais, o consenso nunca foi apanágio das discussões acerca do bem-jurídico tutelado.
Desde a publicação da Lei n. 8.137/90, com a superveniente edição dos arts. 168-A e 337-A do Código Penal, a doutrina tem se esforçado para desvendar qual seria a legitimidade de incriminação da evasão tributária, sem, no entanto, chegar a um denominador comum.
Escudados em argumentos moralistas, axiológicos e políticos, há aqueles que acreditam inexistir fatores concretos que justifiquem a tutela penal dos ilícitos tributários. Para sustentar a imoralidade da incriminação fiscal, Hugo de Brito Machado, embora não seja partidário de uma descriminalização, chega a "chover no molhado" quando ressalta os adjetivos que norteiam a administração pública de terrae brasilis, como a má qualidade dos serviços públicos, o mau exemplo dos governantes e o tratamento tributário injusto a que os contribuintes estão sujeitos. Além disso, assevera, remetendo-se a Gonzalo Rodríguez Mourullo, que no Brasil o ilícito penal fiscal representa "el terror penal para que la gente satisfaga los tributos" [01].
Há, também, a secção da doutrina que sustenta a impossibilidade de incriminação a partir da proibição (pela Constituição da República e pelo Pacto de San Jose da Costa Rica) da prisão civil por dívida. Os defensores desta tese acreditam que o tributo constitui uma dívida ordinária, sendo que a cominação de pena seria apenas uma maneira de ofuscar as verdadeiras intenções arrecadatórias (e predatórias) do Estado.
Tanto para um quanto para outros, a inidoneidade da tipificação criminal implicaria a sanção da evasão fiscal apenas na seara administrativa, considerando a conduta ilícita como de natureza civil. Preservar-se-ia, assim, a ultima ratio do Direito Penal, uma vez que a ofensa ao bem jurídico protegido pelos crimes fiscais não teria o condão de produzir lesividade suficiente para a incriminação. Essa postura descriminalizante, em grande parte, é justificada pela concepção de que o bem-jurídico dos crimes fiscais adquire feições meramente patrimoniais, objetivando salvaguardar tão-somente a arrecadação estatal.
Contudo, parte significativa da doutrina tem vociferado no sentido da legitimidade/constitucionalidade dos delitos fiscais, sobretudo em razão das peculiaridades do(s) bem(ns) jurídico(s) protegidos pelas respectivas normas penais incriminadoras. Tal tendência doutrinária é resultado de exame detido das da abrangência da proteção estatal insculpida no tipo penal incriminador, e advém da constatação de que a norma penal destina-se à salvaguarda de interesses difusos, não-individualizados.
O presente trabalho tem por objetivo justamente contribuir, ainda que brevemente, ao estudo (da importância) do(s) bem(ns) jurídico(s) tutelado(s) pelos crimes fiscais, a fim de rechaçar os argumentos jurídicos ou (des)moralizantes propensos a coadunar com o ideário da descriminação da evasão de tributos. Pugna-se, assim, pela constitucionalidade da criminalização.
Fique claro, desde já, que a abordagem não se restringe aos ditos "delitos fiscais materiais", mas também aos crimes fiscais formais, em que se prescinde do elemento defraudador e do resultado, especialmente porque o bem-jurídico a ser analisado em muito se assemelha em todos eles.
Ressalve-se, igualmente, que a análise não objetiva concluir pela constitucionalidade de incriminação de toda e qualquer evasão fiscal, mas tão-somente rebater os argumentos que bradam pela inconstitucionalidade das normas penais encerradas nos tipos já em vigência, notadamente os arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90 e arts. 168-A e 337-A do Código Penal. Em razão de suas nuanças e peculiaridades, o crime de descaminho não será objeto deste estudo específico.
2. O bem jurídico protegido pelo crime fiscal: uma perspectiva constitucional. A necessidade de intervenção criminal.
A problemática da seletividade do bem-jurídico pressupõe uma adequada compreensão dos princípios e objetivos traçados na Constituição da República. A tutela penal, como é consabido, deve recair somente sobre aquelas condutas que representem grave lesão a um bem jurídico socialmente relevante. Tudo em acordo com os princípios da intervenção mínima, subsidiariedade e fragmentariedade, que norteiam a aplicação de um Direito Penal verdadeiramente democrático.
Claus Roxin é enfático ao consignar a necessária reverência constitucional dos bens-jurídicos penalmente relevantes:
Um conceito de bem jurídico vinculante político-criminalmente só se pode derivar dos encargos previstos na Lei Fundamental do nosso Estado de Direito, baseados na liberdade do indivíduo, através dos quais se demarcam os seus limites à pretensão punitiva do Estado. Em conseqüência se pode dizer: os bens jurídicos são circunstâncias dadas ou finalidades que são úteis para o indivíduo e sua livre progressão no âmbito de um sistema social global estruturado sobre a base dessa concepção dos fins, ou para o funcionamento do próprio sistema. [02]
Assim, o vislumbre da legitimidade/constitucionalidade da incriminação da evasão tributária deve ter indispensável referibilidade às propostas capituladas na Constituição Federal de 1988. Deve, igualmente, ter por objeto circunstâncias que, se implementadas, importem ofensa à manutenção da ordem e paz social.
Apenas uma filtragem constitucional do bem-jurídico dos crimes fiscais legitimaria o ensejo de alguma postura crítica contra a criminalização dos ilícitos tributários. Contudo, essa não parece ser a orientação dos apaixonados defensores da descriminação, uma vez que análise detida das pretensões constitucionais levaria inegavelmente a posição diametralmente diversa.
Não é difícil perceber que houve por parte do constituinte o zelo de atribuir ao tributo desideratos manifestamente precípuos no Estado Democrático de Direito. Tanto é assim que toda a matéria tributária encontra-se cuidadosamente esgotada na CF/88, a qual veicula as regras-matrizes de todas hipóteses de incidência possíveis no universo das normas jurídicas.
O tributo, com a promulgação do texto constitucional, adquiriu feições notoriamente construtivas e interventivas, sobretudo porque constitui a principal fonte de custeio do Estado. Com a arrecadação, torna-se possível a atuação estatal nas áreas de maior carência da sociedade, com os objetivos manifestos de concretizar as finalidades mais comezinhas do Estado Democrático de Direito e de, assim, recuperar os nefastos efeitos da modernidade tardia brasileira.
É de se notar, nesse contexto, que a implementação das garantias e direitos insculpidos na Constituição Federal de 1988 pressupõe necessariamente a intervenção, regulação e atuação de um Estado forte, munido dos recursos necessários à consecução de seus fins.
Isso, naturalmente, implica a manutenção de um sistema tributário que forneça o numerário indispensável para a realização das incursões sociais, a fim de que as deficiências advindas de uma modernidade tardia, impregnada de influxos neoliberais, sejam neutralizadas.
Lenio Luiz Streck, com inteira razão, articula as características fundantes do nosso ordenamento constitucional:
O Estado Democrático de Direito representa, assim, a vontade constitucional de realização do Estado Social. É nesse sentido que ele é um plus normativo em relação ao direito promovedor-intervencionista próprio do Estado Social de Direito (...). Desse modo, se na Constituição se coloca o modo, é dizer, os instrumentos para buscar/resgatar os direitos de segunda e terceira gerações, (...) é porque no contrato social – do qual a Constituição é a explicitação – há uma confissão de que as promessas da realização da função social do Estado não foram (ainda) cumpridas. [03]
Por conseguinte, em terrae brasilis, pode-se atribuir ao tributo uma função social, consistente na implementação dos direitos prometidos pelo texto constitucional por meio do ativismo estatal enquanto patrocinador de políticas públicas que visem atenuar as desigualdades sociais. Bem por isso, a função social do tributo pode ser erigida a bem-jurídico de notório valor no ordenamento constitucional. É certo, assim, que eventual afronta à sobredita vocação do tributo deve importar necessariamente em tutela por parte do Estado, o qual se vê frustrado na sua tarefa constitucional de arrecadação e conseqüente intervenção no âmbito social.
Repise-se: o tributo possui uma função constitucionalmente delimitada, consistente na execução das finalidades reputadas como relevantes pela Constituição da República. Constitui, assim, um bem-jurídico coletivo, difuso no seio da sociedade. Essa função resta frustrada quando ocorre uma transgressão ao "dever de levar dinheiro aos cofres públicos" [04], quer se fale em crime fiscal material (v.g. art. 337-A do CP), quer se fale em delito fiscal formal (v.g. art. 168-A do CP), mediante as condutas positivadas nos tipos respectivos.
Rodrigo Sanchez Rios, delineando com clareza os bens-jurídicos ofendidos pela sonegação fiscal (art. 1º da Lei nº 8.137/90), contribui para a desmistificação dos argumentos pró-descriminalizantes:
Afastando esses posicionamentos quanto à descriminação e à permanência do tipo penal fiscal no âmbito do ilícito administrativo, a doutrina penal moderna, para justificar a tipificação do crime fiscal, socorre-se da dimensão que efetivamente têm os "tributos" no Estado social de Direito, não bastando hodiernamente a mera alegação abstrata do "interesse público" para corroborar a objetividade jurídica do tipo penal fiscal. [05]
Mais adiante, alinhando-se à teoria do bem-jurídico como "unidade funcional", o mesmo autor arremata:
Recentes estudos a respeito têm sustentado que a conduta típica do crime fiscal incide contra o "dever de lealdade" (do cidadão para com o Estado em relação ao mandamento tributário), a "fé pública", "a função social do tributo no Estado de Direito" e, obviamente, a "Fazenda Pública", na sua conotação patrimonial. Dentre elas, apenas a orientação patrimonial e a função social do tributo no Estado de Direito irão conseguir o consenso que justifique a razão de ser do tipo penal fiscal.
Percebe-se, nesse passo, que a doutrina tem dado aos delitos fiscais uma dupla função: (i) proteger o interesse estatal na arrecadação de tributos; e (ii) salvaguardar a função social do tributo e a redistribuição da arrecadação por meio de políticas públicas.
É nesse sentido que Luiz Régis Prado, comentando o crime de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A do CP), afirma:
Embora seja essencialmente o patrimônio da Seguridade Social o bem jurídico lesado, cumpre ele uma função representativa, uma vez que, na configuração do injusto, verifica-se a lesão a um bem jurídico imediato (conotação patrimonial: arrecadatória) e a um bem jurídico mediato, lesado com uma função representativa (o financiamento da Previdência Social), verdadeiros critérios delimitadores dos delitos econômicos. [06]
Portanto, é possível inferir que a conduta que frustra o recolhimento da contribuição fiscal enseja efeitos duplamente reprováveis (mediatos e imediatos) no ordenamento jurídico brasileiro [07]. E é daí que exsurge a questão que será abordada no próximo tópico.
3.
A resposta é, obviamente, negativa. Diante da já ressaltada pujança da função social do tributo, torna-se inviável a crença de que a sanção administrativa é suficiente para proteger a sociedade das condutas desviantes salvaguardadas pelos tipos fiscais em apreço no presente trabalho.
Na verdade, as posições tendentes a descriminalizar o delito fiscal têm por substrato o amálgama de uma "baixa" compreensão constitucional com a indevida retração do conceito de bem jurídico, que é visto por boa parte da doutrina tão-somente pelo viés individualista-liberal decorrente dos postulados da (antiquada) filosofia da consciência [08].
Os difusores da descriminalização do crime fiscal ignoram essa indubitável danosidade social advinda da evasão tributária fraudulenta. Não levam em consideração os múltiplos efeitos negativos, difundidos pela sociedade, provenientes da supressão ou redução de tributo. Aliás, se aceitam a repressão dos delitos fiscais em vias meramente administrativas, com aplicação de juros e multa, devem sustentar, necessariamente, a perspectiva absurda de que, v.g., furtar é mais grave do que sonegar (art. 337-A do CP) ou não-recolher tributo arrecadado de terceiro (art.168-A do CP).
Do que se depreende, inevitavelmente, que para esses doutrinadores o patrimônio individual (furto) se sobrepõe ao patrimônio coletivo. Aí reside, efetivamente, a visão individualista do Direito, articulada sob a égide da (impertinente) filosofia liberal. Trilhando esse rumo, não seria de todo exagerado concluir que os defensores dessa tese também devam sustentar que o furto de um celular em concurso de pessoas seja mais reprovável do que a evasão de milhares ou milhões de reais mediante alguma das condutas tipificadas nos arts. 1º e 2º da Lei 8.137/90 ou arts. 168-A e 337-A do Código Penal. Seria a apropriação indevida do celular suscetível de censura mais aguda do que a sonegação? Seria a intervenção penal neste furto qualificado plenamente justificável na medida em que a evasão constituísse somente um ilícito civil? No mínimo paradoxal...
O raciocínio daqueles que apregoam ser o tributo dívida ordinária é facilmente rebatível. Primeiro, porque a adesão do Brasil ao Pacto de São José da Costa Rica não importa em suplantação ou minoração dos efeitos do direito constitucional interno, porquanto este é hierarquicamente superior.
A questão deve ser analisada, portanto, à luz do art. 5, LXVII da CF/88, que reza: "Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel".
Admitir o crime fiscal como prisão civil por dívida revela, de início, confusão acerca das modalidades de prisão existentes no ordenamento brasileiro. Com efeito, a prisão civil não se assemelha com a prisão derivada de tutela penal a bem-jurídico, notadamente porque enquanto a primeira é meio coercitivo para a satisfação de algum crédito civil, cessando com o devido pagamento, a segunda deriva de condenação pelo cometimento de crime, sendo efeito da sentença penal condenatória.
Explicitado que o bem-jurídico tutelado pelo crime fiscal, em razão de sua inexorável importância para a consecução das finalidades constitucionais, é sim um bem-jurídico penalmente relevante, torna-se evidente que eventual condenação pela prática de crimes fiscais não tem por conseqüência a imposição de uma prisão civil. Esse, inclusive, foi o entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal em decisão liminar no HC n. 77.631/SC.
Vale transcrever, aqui, o entendimento de Pedro Roberto Decomain, citado por Hugo de Brito Machado:
O que a regra da Lei Maior proíbe é que se ameace com prisão o devedor civil, com o objetivo puro e simples de compeli-lo a pagar o que deve. Não foi, porém, o que fez o inciso II do art. 2 da Lei n. 8.137/90. Este em verdade considerou crime não repassar ao fisco aquilo que se cobrou de terceiro exatamente com o objetivo de destinar-se ao pagamento de um tributo. Desta sorte, o inciso em referência não padece de inconstitucionalidade, podendo ser aplicado a todo e qualquer tributo cujo ônus haja sido previamente repassado a terceiro, mas que não tenha sido recolhido aos cofres públicos pelo contribuinte ou responsável, que já havia recebido ou descontado de terceiro o seu valor. [09]
De igual modo, os argumentos vitimológico-moralizantes não ensejam fundamentação capaz de arrostar os fins propostos pela Constituição da República. Andreas Eisele é enfático ao desvendar a fragilidade das ponderações morais que objetivam a descriminalização da evasão tributária. Aduz:
A utilização dos argumentos vitimológicos como instrumento neutralizante da reprovabilidade do fato, de modo a justificar a conduta no âmbito da culpabilidade penal pelos agente que realizam delitos contra a ordem tributária, tem como característica a falta de critérios criminológicos, além da inadequação metodológica. Isso ocorre devido ao fato de não serem argumentos identificáveis a partir de uma investigação empírica, com métodos sociologicamente adequados de avaliação de situações concretas e estatísticas, mas recursos retóricos empregados para fundamentar a elaboração da defesa de um sujeito. [10]
Ademais, no estágio atual da ciência jurídica, e considerando o papel criativo dado ao Poder Judiciário na solução dos conflitos, é certo que os obstáculos porventura existentes devem ser resolvidos dentro do próprio direito, ou seja, do direito para o direito, mediante a aplicação da hermenêutica constitucional baseada na filosofia da linguagem [11], e não sob influxos de argumentos morais, políticos ou axiológicos desprovidos de qualquer fundamento científico/empírico. A reaproximação da moral e do direito permite que a resolução mais adequada seja tomada dentro dos procedimentos hermenêuticos desvinculados da metafísica e da filosofia da consciência, sempre em referibilidade aos valores positivados implícita ou explicitamente na Constituição da República.
Consignada a importância da arrecadação tributária para a realização dos fins do Estado Democrático de Direito, infere-se que a inexistência de norma penal incriminadora revelar-se-ia incompatível com o próprio ordenamento constitucional.
Com efeito, Lenio Luiz Streck ensina que "quando o legislador protege deficientemente determinados bens fundamentais – e ninguém pode negar que os crimes fiscais lesam direitos fundamentais de diversas dimensões – a jurisdição constitucional deve intervir, declarando a invalidade da referida lei que protege deficientemente os bens jurídicos." [12]
O Direito Penal, para além do cumprimento do garantismo negativo, ante a impossibilidade de atuar abusivamente em detrimento dos cidadãos, também é dotado de uma faceta destinada ao garantismo positivo, consistente na proteção suficiente a bens-jurídicos tidos como imprescindíveis às finalidades sociais abarcadas na CF. [13]
Sob o prisma constitucional, o Direito Penal, estando sujeito ao princípio da proporcionalidade, é um verdadeiro instrumento para a proteção (negativa e positiva) dos direitos e garantias fundamentais insculpidos na Constituição Federal. Significa dizer: se o legislador ordinário escusa-se de elaborar leis voltadas à proteção de bens jurídicos relevantes, ou, ainda, se promove uma proteção deficiente [14], o Poder Judiciário tem o dever de proceder ao controle de constitucionalidade da indevida negligência, objetivando permitir a incidência de tutela estatal suficiente para a salvaguarda dos bens-jurídicos mais custosos à sociedade.
É bem por isso que eventual descriminalização do crime fiscal não só seria imoral, mas antes de tudo inconstitucional, tendo em vista a já repisada função diretiva exercida pelo tributo na ordem constitucional brasileira. E não é só: mesmo raciocínio valeria para uma arbitrária redução da pena cominada para tais delitos, caso a cominação restasse desproporcional e insuficiente à reprovação do desvalor da conduta/resultado.
Veja-se que o raciocínio da vedação da proteção deficiente também poderia ser aplicado ao art. 9º, §2º, da Lei nº 10.684/03. Com efeito, para reforçar os (falaciosos) argumentos descriminalizantes dos delitos fiscais e demonstrar a monstruosidade predato-arrecadatória estatal, é constantemente invocada a possibilidade legal de extinção da punibilidade quando efetuado o "pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios" durante qualquer fase da persecução criminal.
Não é propósito do trabalho discordar da leviandade do referido dispositivo legal. Duas opções se afloram diante desta possibilidade legal: se considerada constitucional a extinção da punibilidade nos moldes do art. 9º, §2º, da Lei nº 10.684/03, a medida, necessariamente, em respeito ao princípio da isonomia, deve ser estendida (analogia in bonam parte) aos demais crimes patrimoniais não-violentos, notadamente porque, embora estes sejam muito menos lesivos e protejam bens-jurídicos individualizados, o tratamento legal da restituição da coisa indevidamente apropriada constitui mera causa de diminuição de pena (art. 16 do CP), sendo muito mais gravoso do que aquele destinado ao pagamento integral dos débitos fiscais.
Contudo, o art. 9º, §2º, da Lei nº 10.684/03 pode ser enxergado pelas lentes da proibição da proteção deficiente. Sem dúvida, cuida-se de benefício incompatível com a natureza do crime tributário, especialmente levando em consideração o já acentuado e reiterado protagonismo do tributo na consecução dos fins almejados pelo Estado Democrático de Direito. Assim, à exemplo da descriminação dos delitos fiscais, a extinção de punibilidade veiculada pela norma em apreço não se coaduna com o imperativo de tutela efetiva por parte do Estado, padecendo de patente inconstitucionalidade [15]. Essa segunda perspectiva, com efeito, parece ser a mais adequada e coerente com a pujança constitucional da função social do tributo.
Por fim, consignado que o crime fiscal bem revela uma das modalidades de proteção positiva de direitos fundamentais, a inconstitucionalidade poderia ter por fundamento, igualmente, a eficácia vedativa do retrocesso, que permite que o Judiciário declare "a invalidade de revogação de normas que, regulamentando o princípio, concedam ou ampliem direitos fundamentais, sem que a revogação em questão seja acompanhada de uma política substitutiva ou equivalente" [16].
Isso porque a criminalização dos ilícitos fiscais, conforme já ressaltado, representa inegável proteção a bem-jurídico coletivo, relativo a interesses difusos na sociedade. Sobredito bem-jurídico, por sua vez tem referibilidade à realização, mediante atuação do Estado, dos direitos fundamentais do Estado Democrático de Direito, sendo que a revogação de sua proteção por parte do Direito Penal constituiria flagrante retrocesso social.