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Relação de trabalho e relação de consumo.

Discussão da competência da Justiça do Trabalho pós-Emenda Constitucional nº 45/2004

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Agenda 03/04/2009 às 00:00

3. JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA MATERIAL TRABALHISTAS.

3.1. Jurisdição Trabalhista.

A partir da proibição por parte do Estado de se realizar a autotutela (busca pela justiça por meios próprios) como meio de solução de conflitos, chamou para si mesmo a pacificação destes – artigo 5º, XXXV da Constituição Federal: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Esta busca da justiça pelo Estado é denominada jurisdição, segundo a qual aquele se substitui aos titulares dos interesses envolvidos no litígio para chegar à resolução legal do conflito em questão, com justiça e de modo imparcial. Com o monopólio estatal da Jurisdição, maiores são as chances de se chegar a um desfecho pacífico e justo.

O termo jurisdição provém da palavra em latim "iurisdictio", a qual significa "dizer o direito". José Afonso da Silva afirma ser a "função de compor conflitos de interesses em cada caso concreto [12]". O Estado a realiza por meio da aplicação da legislação, produzida essencialmente pelo Poder Legislativo, concretizando suas normas gerais e abstratas aos casos concretos. Ato jurisdicional seria, portanto, aquele capaz de produzir a coisa julgada.

Dando ao presente conceito um melhor acabamento, podemos afirmar que a Jurisdição é ao mesmo tempo poder, função e atividade, nos seguintes termos:

Como poder, é a manifestação do poder estatal, conceituado como capacidade de decidir imperativamente e impor decisões. Como função, expressa o encargo que têm os órgãos estatais de promover a pacificação de conflitos interindividuais, mediante a realização do direito justo e através do processo. E como atividade, ela é o complexo de atos do juiz no processo, exercendo o poder e cumprindo a função que a lei lhe comete [13].

A jurisdição é una e indivisível, assim como a soberania estatal. Por isso, a rigor, ela não comporta divisões, mas com o escopo de dar à prestação jurisdicional uma maior eficiência e clareza, ela pode ser classificada sob vários aspectos (quanto à matéria: penal, civil, trabalhista...; quanto à especialidade: comum ou especial; quanto à instância: superior ou inferior; quanto à existência de litígio: voluntária ou contenciosa; em meio a outros critérios).

A divisão a ser destacada no presente trabalho é aquela que classifica a Jurisdição segundo sua especialidade, resultando na distinção entre a Jurisdição Especial e a Comum. A Especial é assim nomeada em face da sua competência material diferenciada (a ser analisada no tópico seguinte). Os exemplos taxativos de Jurisdição Especial, relacionados pela Constituição Brasileira, são as Justiças Trabalhista, Eleitoral, Militar e Militar Estadual. A Jurisdição Comum, por sua vez, é constituída pelas Justiças Federal e Estadual Ordinária.

Cada Jurisdição tem, por isso, seus limites, não podendo exceder o seu julgamento a questões que não forem de sua competência.

3.2. Competência Trabalhista.

Percebemos, no tópico anterior, que o significado de competência é importante para a divisão da Jurisdição no tocante à sua especialidade, mas não é necessário para a compreensão do conceito global de jurisdição. A recíproca, vale frisar, não é verdadeira, pois o entendimento do que é Jurisdição deve ser anterior ao da Competência, visto que aquela serve de referência para esta.

A jurisdição é, como visto, "dividida" sob vários aspectos, cabendo a cada ramo do Poder Judiciário uma fração desta, sendo esta medida de jurisdição a competência. Segundo Liebman, "chama-se competência essa quantidade de jurisdição cujo exercício é atribuído a cada órgão ou grupo de órgãos" (grifo do autor) [14]. Jurisdição e competência são institutos distintos, mas não se trata de distinção qualitativa e sim quantitativa.

A Competência também pode ser dividida segundo critérios diferenciados, os quais implicam nas classificações das Competências Material, Territorial, e Funcional. Esta última enumera juízes e órgãos por suas funções no processo, enquanto que a anterior é determinada pelos espaços geográficos sobre os quais atua o órgão jurisdicional. Mas apenas a Competência Material nos responde em qual órgão do Judiciário devemos propor a ação, pois divide-as de acordo com a natureza da relação jurídica material a ser julgada. Por isso, só se pode cogitar sobre as competências territorial e funcional da Justiça do Trabalho, se ela for, em primeiro lugar, materialmente competente.

A Competência Material da Justiça Trabalhista é definida constitucionalmente pelo artigo 114, modificado pela Emenda 45, somente lhe sendo atribuída litígios que versem sobre matéria e conteúdo jurídico determinados. Por essa razão, sua Jurisdição é Especial. A Jurisdição Comum, por sua vez, possui competência material residual, julgando o restante dos litígios não avaliados pela Jurisdição Especial, como os de naturezas civil, penal, comercial, tributária dentre outros.

Apesar de especificada em lei federal, as opiniões dos aplicadores do Direito em geral sobre a competência da Justiça do Trabalho não são pacíficas, divergindo especialmente quanto ao binômio "relação de trabalho", do inciso I do artigo 114 da Constituição, a ser analisado no capítulo a seguir.


4. A RELAÇÃO DE TRABALHO E A EMENDA CONSTITUCIONAL 45/2004.

4.1. A Emenda Constitucional 45/2004.

A Constituição de um país é a sua lei suprema, pois é ela que fixa os limites a serem seguidos pelo legislador infraconstitucional na criação do restante do ordenamento jurídico. Cabe à Constituição determinar os princípios básicos do Direito, bem como as garantias e direitos fundamentais do cidadão a ela submetida. Todavia, a Constituição "não é um produto lógico e absoluto, válido para todas as idades, atualizado para todas as gerações. (...) A imutabilidade constitucional, tese absurda, colide com a vida, que é mudança, movimento, renovação, progresso, rotatividade [15]". A sociedade evolui rapidamente e cabe à Constituição agregar os novos valores e ideologias à realidade jurídica.

Por essa razão, a Constituição cria meios para que o seu próprio texto possa ser melhorado, seja por meio de modificações (emendas) ou ampliações (leis complementares), desde que respeitados os limites para a reformulação constitucional. Paulo Bonavides explica a importância da Emenda Constitucional, prevista nos artigos 59, I e 60 da Carta Magna:

"[...] é o caminho normal para a introdução de novas regras ou preceitos no texto da Constituição. O estatuto supremo tem nesse instrumento do processo legislativo o meio apropriado para manter a ordem normativa superior adequada com a realidade e as exigências revisionistas que forem se manifestando [16]".

A Emenda Constitucional 45/04, concebida no começo da década de 90, foi promulgada apenas em 08 de dezembro de 2004 e encontra-se em vigência desde o dia 31 destes mesmos mês e ano, trazendo várias inovações importantes. Porém, a que nos interessa no presente momento é Reforma da competência da Justiça do Trabalho pela alteração do artigo 114 da Constituição. Antes da modificação em questão, tal dispositivo possuía o seguinte texto:

Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas.

§ 1º - Frustrada a negociação coletiva, as partes poderão eleger árbitros.

§ 2º - Recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem, é facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo, podendo a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições, respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho.

§ 3° Compete ainda à Justiça do Trabalho executar, de ofício, as contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir. [17]

(grifo nosso)

O inciso grifado da antiga norma utilizava duas expressões diferentes (empregado e trabalhador), o que poderia levar ao entendimento de que outras relações trabalhistas, que não a empregatícia, poderiam ser julgadas pela Justiça do Trabalho. Porém, a interpretação deste artigo foi pacificada pela doutrina no sentido de que "o termo trabalhador é correlato a empregado; [...] havendo empregador de um lado, só poderia ele estar vinculado a um trabalhador por uma relação de emprego [18]" (grifos do autor). Por esse motivo, a Justiça do Trabalho era chamada de "Justiça do Emprego", apesar de também ser competente para julgar outras relações jurídicas, desde que previstas por texto legal. Tais exceções eram a pequena empreitada (art. 652, III, a da CLT), o trabalho avulso (art. 643 da CLT) e o temporário (art. 19 da lei 6.019/74).

Os litígios decorrentes de outras relações jurídicas que tinham como objeto o labor humano eram dirimidos tão somente pela Justiça Comum.

Depois da promulgação da Emenda 45, o dispositivo legal em questão passou a ter a seguinte escrita:

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Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:

I – as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;

II – as ações que envolvam exercício do direito de greve;

III – as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores;

IV – os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição;

V – os conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado o disposto no art. 102, I, o;

VI – as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho;

VII – as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho;

VIII – a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir;

IX – outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.

§ 1º - Frustrada a negociação coletiva, as partes poderão eleger árbitros.

§ 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente.

§ 3º Em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público, o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo, competindo à Justiça do Trabalho decidir o conflito. [19]

(grifos nossos)

A partir de então, novas discussões sobre a Competência Material da Justiça do Trabalho surgiram, dentre elas aquela no tocante à delimitação de "Relação de Trabalho".

4.2. Relação de Trabalho.

A referida expressão é constituída de dois vocábulos. Para que possamos entender seu conceito e alcance, é necessário fragmenta-la, chegando à definição de cada termo.

4.2.1. Relação (Jurídica).

O conceito de relação é "filosófico, que denota as múltiplas conexões entre objetos materiais e ideais em diferentes formas [20]". Assim sendo, surgem relações de todos os tipos, entre coisas, idéias, animais e seres humanos. Entre as relações de vida humana, há as provenientes de amizade, família, necessidades, sejam estas profissionais ou circunstanciais. A questão central é saber quando a relação passa a ser jurídica, pois somente ela importará para o Direito.

A relação jurídica é uma relação da vida (gênero próximo), regulada pelo direito (diferença específica). Esta regulamentação pelo Direito lhe dá uma característica própria – a exigibilidade coercitiva, ou legítima a aplicação da pena, quando o comportamento é violado. [...]

A relação jurídica é a síntese desses dois fatores [vida e leis]. O Direito não cria os elementos da relação jurídica, que lhe são necessariamente anteriores: enchentes, acidentes, violação de sinal de trânsito, dispensa de empregado, declaração de vontade. Mas, para que esses fatos, naturais ou humanos, se transformem em fato jurídico, é necessário que o Direito crie entre eles e um titular uma relação, que é real, mas não é concreta, como se viu anteriormente. Ele não cria fatos nem comportamentos, mas relaciona-os criando direitos e deveres entre eles. [21].

A relação jurídica é o núcleo básico do Direito, pois é a partir dela que são criados e desenvolvidos princípios, regras e institutos jurídicos compatíveis e reguladores dessa relação surgida.

Portanto, quando escrevemos "relação", ela deverá ser entendida como um conceito jurídico, pois as relações aqui estudadas (de trabalho e de consumo) são formalizadas por meio de contratos, ainda que fáticos, e devem respeitar o ordenamento jurídico.

Miguel Reale explica o alcance da relação jurídica no mundo real:

A relação jurídica é algo que supera as pessoas de um e de outro sujeito e se coloca acima deles, unindo-os em um laço de exigibilidades ou de pretensões. Onde quer que haja fenômeno jurídico, encontramos sempre um nexo transubjetivo, estabelecendo um âmbito de ações possíveis entre ou para dois ou mais sujeitos. [22] (grifo do autor)

Os elementos da relação jurídica são os sujeitos, o objeto e o negócio (ou conteúdo). Os sujeitos delimitam o campo de abrangência da relação jurídica, sendo que um deles é o devedor da obrigação, a qual será realizada em benefício do sujeito que se encontra no pólo oposto, o seu credor. O objeto, por sua vez, é o bem jurídico pretendido pelo credor da obrigação, por meio do qual surgem os direitos e deveres. Por último, o negócio jurídico é o revestimento dado à obrigação, consistindo em uma ação humana do devedor.

4.2.2. Trabalho.

O vocábulo "trabalho", por sua vez, possui várias acepções, referindo-se aos mais diferentes ramos do conhecimento humano, como a Física, Biologia, História e Direito. Os sentidos das ciências biológicas ou exatas não nos interessam, mas é interessante analisarmos rapidamente o histórico do trabalho, antes de adentrarmos no seu conceito jurídico.

Na Antiguidade, a atividade laboral não era tida como digna, mas sim como uma tarefa penosa, um castigo. Segundo alguns historiadores, a palavra trabalho teria raízes etimológicas no tripalium, máquina de tortura com três pontas ou paus. O conceito em questão, entretanto, foi sofrendo modificações, preenchendo páginas da História com diferentes valores e delimitações.

De malvisto e malquisto, na Antigüidade, ganhou influxo dignificante com o Cristianismo, acabando por atingir o valor máximo no Renascimento, com o destino do homem, voltado para a vida, para as conquistas, para a ação.

Com o Humanismo e a Reforma, cada um devia seguir sua livre vocação, procurando desenvolve-la para seu bem e da própria sociedade [...]. Não ter um trabalho é que passou a ser vergonhoso. [23]

O trabalho passou a ser um valor social universal, o centro da vida humana, sendo que, hoje em dia, rege toda ela. Desse modo, os estudos que enfocam este instituto são de grande valia para sociedade atual.

Já para o Direito, o trabalho representa o objeto da relação jurídica. Em outras palavras, a relação jurídica é criada por um contrato e este tem no trabalho prestado o seu objeto, o qual pode ser conceituado da seguinte maneira:

Um fazer caracterizado ordinariamente por um ato positivo (ou uma seqüência desses atos), mas que se pode plasmar também como omissão útil ao contratante. Esse fazer pode ser material (por exemplo, a reforma de uma casa) ou imaterial (v.g., serviços de orientação ou assessoramento) e é a causa da relação jurídica. [24]

Em resumo, é a concretização de um serviço, Porém, há que se destacar a importância do benefício percebido pelo contratante, pois "em sua concepção econômica, o trabalho constitui insumo para a produção de outros bens, não constituindo um produto final pronto para ser produzido. [25]".

4.2.3. Relação (Jurídica) de Trabalho.

Unindo os conceitos acima avaliados, temos que a relação de trabalho seria aquela situação que une trabalhador, sempre pessoa física (condição a ser estudada no tópico 4.2.4.1), e tomador de serviços, em busca da realização de uma obrigação (negócio) centrada em um bem (objeto), criando exigibilidades para ambas as partes.

A conceituação de relação de trabalho é abrangente, pelo seguinte motivo, apontado por Godinho Delgado:

[A relação trabalhista se refere] a todas as relações jurídicas caracterizadas por terem sua prestação essencial centrada em uma obrigação de fazer consubstanciada em labor humano. A expressão relação de trabalho englobaria, desse modo, a relação de emprego, a relação de trabalho autônomo, a relação de trabalho eventual, de trabalho avulso e outras modalidades de prestação de labor (com trabalho de estágio, etc). Traduz-se, portanto, o gênero a que se acomodam todas as formas de pactuação de prestação de trabalho existentes no mundo jurídico atual [26].

Logo, a tão importante relação de emprego, base para a criação do Direito do Trabalho e objeto único da CLT, é apenas mais uma das espécies de relações trabalhistas. Como já visto, o Direito do Trabalho pré-Emenda 45 tratava essencialmente de relação de emprego. Assim sendo, ela também passou a ser indicada pela denominação correspondente ao seu gênero (relação de trabalho). Em 2001, escreveu Mauricio Godinho Delgado:

Essa tendência, embora possa ser criticada sob o enfoque estritamente técnico-jurídico, já está hoje absolutamente consolidada. A consolidação de tal tendência – que se originou, é verdade, da incontestável hegemonia fático-jurídica da relação empregatícia no universo de todas as relações de trabalho – torna meramente acadêmica e formalista a insistência em se recusar a validade teórica às expressões tradicionais (relação de trabalho e contrato de trabalho) para designar a relação e instituto de caráter específico (relação de emprego e contrato de emprego). [27]

Entendemos que à época, tal distinção não se fazia realmente necessária, já que a espécie empregatícia era tratada praticamente como gênero pela Justiça do Trabalho; e depois, as outras espécies de trabalho não interessavam ao Direito do Trabalho (que, a bem da verdade, era o Direito do Emprego), pois estavam sob a tutela da Justiça Comum. Depois da promulgação da Emenda Constitucional 45/04, todavia, tal situação mudou totalmente, pois "os conceitos até então adotados na doutrina especializada não servem para o novo momento histórico. Isso porque se faz referência à expressão relação de trabalho com o escopo único de mencionar o gênero do qual a relação de emprego (contrato de trabalho) é espécie. [28]". Desse modo, apesar de abrangente, o conceito de relação de trabalho também é impreciso. Por isso, é preciso determinar as diferenças entre tais termos, para que possamos descobrir quais são "ações oriundas da relação do trabalho".

4.2.4. Critérios Identificadores das Relações Trabalhistas.

Para que sejam diferenciadas entre si, tais relações precisam possuir características diferentes. Porém, para que sejam abarcadas sob o mesmo gênero, necessitam ter ao menos uma delas em comum. Descobrindo essa característica em comum, verificaremos sua existência ou não nas relações de consumo e, por conseguinte, encaixá-la-emos ou não nas relações do trabalho.

Ressaltamos que a relação empregatícia possui todos os critérios adiante. Este fato não denota maior importância a ela; apenas demonstra que está inserida no gênero de relações do trabalho, assim como as relações que não tenham presentes um, dois ou três critérios. Reginaldo Melhado se utiliza de lógica inversa, pois se o vínculo empregatício "não é reconhecido pelo juiz, por exemplo, porque não comprovada a subordinação jurídica, e estando delineados outros traços característicos do próprio emprego, como a pessoalidade, a não-eventualidade ou a alteridade, por certo tratar-se-á de uma relação de trabalho. [29]".

4.2.4.1. Pessoa física.

Sendo o trabalho a realização de um serviço, poderíamos considerar que as pessoas jurídicas, as máquinas e os animais o desempenham tanto quanto as pessoas físicas (naturais). Porém, apenas estas últimas são consideradas trabalhadores para o Direito do Trabalho.

Novamente, Godinho Delgado nos socorre e demonstra o porquê desta exclusão: "Os bens jurídicos (e mesmo éticos) tutelados pelo Direito do Trabalho (vida, saúde, integridade moral, bem-estar, lazer, etc.) importam à pessoa física, não podendo ser usufruídos por pessoas jurídicas. [30]". Ademais, em última instância é sempre o ser humano que está no comando da pessoa jurídica, máquina ou animal realizador fático da atividade. A inclusão ou exclusão das atividades não-empregatícias na competência da Justiça do Trabalho decorrem da teoria adotada, mas há a certeza de que as incluídas sempre serão realizadas por pessoa física.

As garantias e direitos trabalhistas foram todos criados a partir da desigualdade existente entre o trabalhador e o tomador de seu serviço (hipossuficiência, a ser analisada no último tópico deste capítulo) e não há razão para estendê-los às pessoas jurídicas. Ademais, estas últimas já têm suas atividades reguladas pelo Direito Civil há muito tempo, restando-lhes a Justiça correspondente para reclamarem eventuais pleitos decorrentes da prestação de seus serviços.

Em conclusão, a pessoa física é um critério identificador das relações trabalhistas. Entenda-se "pessoa física" como aquele que está executando o serviço, ainda que com a roupagem de pessoa jurídica (ex: representante comercial que trabalha sozinho e presta serviços como pessoa jurídica). Além do mais, se verificado que a pessoa jurídica foi constituída com o intuito de fraudar a lei, esta será desconsiderada, sendo a Justiça Trabalhista a competente.

4.2.4.2. Pessoalidade.

A existência deste elemento em um negócio jurídico indica que o contratado não pode ser substituído durante o processo e não possui liberdade para subcontratar um terceiro que desempenhe funções originariamente suas. Essa infungibilidade do trabalhador decorre das suas qualidades únicas e pessoais. Obviamente que este aspecto não está presente na figura do tomador de serviços, que pode vir a ser substituído, sem problema de manutenção dos direitos adquiridos (arts. 10 e 448 da CLT sobre sucessão empresarial).

Um desenhista é contratado por uma empresa de marketing não porque ele sabe fazer o desenho de um homem com palitos no lugar dos membros, como qualquer criança de 10 anos, mas porque seu trabalho é diferenciado dos outros profissionais e ele é bom no que faz, restando comprovada a pessoalidade. Assim também ocorre com os profissionais liberais (advogados, personal trainers, contabilistas, engenheiros etc) que estão disponíveis de maneira que o contratante possa escolher qualquer um para realizar o serviço desejado, esperando que correspondam às suas expectativas.

As opiniões sobre a existência da pessoalidade nos contratos trabalhistas lato sensu são as mais variadas. Francisco Rossal de Araújo argumenta pela existência do elemento em questão:

[...] a pessoalidade é requisito essencial da relação de trabalho (elemento pressuposto). No que diz respeito a matéria de competência da Justiça do Trabalho (art. 114, I, Constituição federal), o corolário é que os litígios decorrentes das relações de trabalho somente serão resolvidos pela Justiça do Trabalho quando as relações de trabalho forem intuitu personae. [31]

Segundo grande parte dos defensores deste pensamento, a pessoalidade das relações trabalhistas seria conseqüência direta da prestação de serviço por pessoa física.

Reginaldo Melhado confronta a afirmação acima, opinando pela existência eventual do presente elemento: "Há um caráter intuitu personae, embora muito menos rígido. O objeto do contrato é o trabalho pessoal, que entretanto pode receber, tangencialmente, o concurso da atividade de outros profissionais ou até empregados do contratado. [32]". Márcio Túlio Viana [33] opina no mesmo sentido, assim como José Antônio Ribeiro Silva:

De modo que a diarista ou a faxineira que comparece uma ou duas vezes por semana em determinada residência ou empresa, mesmo se fazendo substituir por outra pessoa em alguns dias, poderá reclamar o pagamento do serviço contratado e direitos outros que entender devidos perante a Justiça do Trabalho. [34]

Nesse sentido, colocam-se os exemplos da prestação de serviços (art. 605 do CC/02), do mandato oneroso (art. 667 do CC/02), da pequena empreitada etc. Contudo, no tocante a este último exemplo, há entendimento jurisprudencial crescente de que a pessoalidade subsiste na empreitada, mesmo quando contratados ajudantes, desde que o empreiteiro original também realize trabalho.

Fato é que, mesmo que a pessoalidade seja elemento intrínseco à empreitada, ela não o será de outras relações trabalhistas, excluindo-a como característica destas.

4.2.4.3. Não-eventualidade.

A existência deste elemento se expressa pela permanência do trabalhador no serviço, ou seja, seu trabalho não é esporádico. Tenhamos em mente que a duração da jornada ou a habitualidade com que é prestada não importam. Exemplo clássico é o da diarista que trabalha todas as segundas, quartas e sextas, com horário reduzido, mas definido. Sabe-se que ela será encontrada na casa da patroa, em dias e horário certos. Há a certeza da necessidade da realização do serviço por parte do seu tomador.

Todavia, a eventualidade pode ser encontrada em várias relações trabalhistas, como uma diarista (de um dia só ou que seja chamada muito esporadicamente); pintor; bóia-fria etc. Devido às características únicas e ao grande contingente destes indivíduos, uma categoria definida dentre os trabalhadores na qual eles são incluídos – a dos eventuais. Há tempos também são considerados espécimes daqueles, comprovando a desnecessidade da não-eventualidade para a configuração das relações trabalhistas. Nesse sentido, argumenta Amauri Mascaro Nascimento [35].

4.2.4.4. Onerosidade.

Onerosidade é a existência de contraprestação econômica do beneficiado pelo serviço entregue ao seu realizador. Tal elemento denota o caráter sinalagmático da relação trabalhista, pois há criação de obrigações recíprocas para satisfação de necessidades também recíprocas. Segundo Paulo Vilhena, "para que o trabalho seja objeto de uma relação jurídica, torna-se indispensável seja um trabalho por conta alheia. [36]".

Contudo, o Direito como um todo aceita a realização de trabalhos não onerosos, sendo que alguns deles também integram o gênero de relações trabalhistas. Há outros, porém, que apesar de configurarem trabalho prestado nunca seriam considerados como relação trabalhista pelo Direito, como explica Reginaldo Melhado:

O trabalho prestado a título gratuito, tal como nas relações de família (o "trabalho" da dona de casa feito em favor dos filhos e do marido; o trabalho do marido e dos próprios filhos na célula familiar) ou no âmbito de atividades religiosas, por exemplo, não pode ser considerado como objeto das relações de trabalho a que se refere a competência Justiça do Trabalho. As atividades relacionadas à fé a e à caridade não configuram labor em sentido técnico. Há preeminência do conteúdo moral dessas relações. [37]

Por outro lado, existem serviços não onerosos presentes numa relação trabalhista, como o estágio ou serviço voluntário. A onerosidade, portanto, também não é elemento indicador de relação trabalhista.

4.2.4.5. Subordinação.

A subordinação limita a autonomia do trabalhador, enquanto estiver prestando o serviço, devendo alienar o poder de direção ao seu tomador. As conseqüências da existência deste elemento, segundo Amauri Nascimento [38] são o poder de organização (meios de prestação ou produção criados pelo tomador), poder de controle (fiscalização e direção do serviço por alguém hierarquicamente mais alto) e disciplinar (sujeição às sanções disciplinares).

De todos os elementos caracterizadores da relação empregatícia, a subordinação é o mais importante. Tanto é assim que o emprego é denominado por muitos como "trabalho subordinado". Porém, ela também existe em outras situações, como, por exemplo, nos trabalhos eventuais e temporários.

Há casos em que ela também inexiste, como para os trabalhadores autônomos, que autodisciplinam sua atividade. Exemplos destes seriam a prestação de serviços, representação comercial, empreitada, agência e distribuição, colaborador-jornalístico, profissionais liberais etc. Desse modo, assim como no tocante aos outros elementos, não há porquê se considerar a subordinação como característica essencial da relação de trabalho.

Ao assumir o poder de direção, o tomador de serviços também assume os custos decorrentes de sua realização. "O risco inerente à prestação de serviços e a seu resultado, além dos riscos do próprio empreendimento empresarial, são todos estranhos à figura do prestador (o obreiro, portanto), recaindo sobre o adquirente de tais serviços. [39]". Essa conseqüência é denominada alteridade e não é considerada sequer elemento de caracterização da relação empregatícia, apesar de ser conseqüência direta da subordinação.

4.2.4.6. Hipossuficiência do trabalhador.

Há que se destacar, primeiramente, que a hipossuficiência não é requisito para a configuração da relação de trabalho, mas uma seqüela da existência de algum dos elementos acima. Porém, apesar de não ser elemento de configuração da relação trabalhista, serve de auxílio para a constatação de sua existência, além de criar conseqüências diretas para o trabalhador.

Hipossuficiência é a desigualdade enfrentada pelo trabalhador na sua relação para com o tomador dos seus serviços. Quando da criação e evolução do Direito do Trabalho, as manifestações incipientes já demonstravam que em se tratando de um ser humano como trabalhador haverá sempre desigualdade na sua relação para com o tomador de serviços, não importando as situações em que se encontrem. Paulo Gustavo Merçon explica mais detalhadamente o surgimento dessa disparidade:

Na relação de trabalho, ao alienar seu trabalho a uma organização produtiva, o prestador dos serviços, ainda que não subordinado juridicamente ao tomador, é absorvido por uma situação de hipossuficiência econômica relativa; dizemos relativa porque – do mesmo modo que ocorre na relação de emprego – tal condição é aferida de forma intrínseca à relação de trabalho; é irrelevante que, no lado externo da relação de trabalho, o trabalhador detenha mais recursos econômicos que o tomador dos serviços; no âmago daquela relação jurídica o prestador dos serviços é a parte mais vulnerável porquanto, ao invés de explorar sua mão-de-obra em proveito econômico próprio, aliena-a a um corpo produtivo que não lhe pertence, e do qual de alguma forma passa a depender economicamente. Alguns juristas denominam a esse fenômeno subordinação econômica. [40] (grifos do autor).

Desse modo, a hipossuficiência, existiria até mesmo para os trabalhadores autônomos, pois apesar de não se subsumirem a poder de direção algum, a exceto o seu próprio, realizam um serviço em benefício de outrem, com finalidade produtiva, e por conta deste. Todo trabalho é prestado deste modo e somente isso já configuraria a hipossuficência.

Poder-se-ia argumentar que esta situação, também denominada de subordinação econômica, seria contraditória ao afirmando no tópico anterior, de que a subordinação não é elemento definidor da relação trabalhista. Porém, as subordinações analisadas são diferentes, sendo aquela a jurídica, decorrente do poder de direção, e esta a econômica, consequência da prestação por conta alheia. Mesmo um estagiário que não receba bolsa é hipossuficiente, pois apesar de não receber remuneração, deve respeitar o poder de direção de seu superior.

Importante frisar que a pessoa jurídica não é considerada hipossuficiente, já que não é trabalhador no sentido aceito pelo Direito do Trabalho.

Este ramo jurídico buscou igualar a desigualdade fática no plano jurídico, dando ao trabalhador garantias e direitos imperativos a qualquer contrato, por meio do Princípio Protetivo ou Tutelar. Este princípio é base de todo o Direito do Trabalho e visa estruturá-lo com o objetivo de sempre proteger a parte hipossuficiente da relação. Tal princípio possui várias manifestações dentro do texto jurídico trabalhista, quais sejam: o princípio do in dúbio pro operário; da indisponibilidade dos direitos trabalhistas; da irretroatividade das nulidades; da condição mais benéfica; da imperatividade das normas trabalhistas; da norma mais favorável etc. Em suma, "sem a idéia protetivo-retificadora, o Direito Individual do Trabalho não se justificaria histórica e cientificamente [41]".

Faz-se necessário frisar que a qualidade de hipossuficiência não é mais característica única dos empregados. Quando da criação e institucionalização do Direito do Trabalho, a relação empregatícia era de fato a modalidade trabalhista em que a desigualdade estava mais presente e, por isso, buscou-se resguardar de maneira mais acentuada os direitos destes prestadores de serviços. Hoje em dia, entretanto, ser empregado é uma virtude. Aquele que tem emprego é considerado um indivíduo de sorte, pois há os que nem sequer o conseguem e precisam trabalhar na marginalidade, de forma autônoma, apenas fazendo "bicos". Ninguém, em sã consciência afirmaria que estes últimos são menos hipossuficientes do que o empregado com carteira assinada, com direitos e garantias estabelecidos. Contudo, também não afirmamos que sejam mais hipossuficientes, pois há que se analisar cada caso concreto, separadamente.

O que se busca concluir é que, a desigualdade é decorrência direta da pessoa física como único elemento identificador da relação de trabalho, bem como pelo fato de esta se dar por conta e em benefício alheios. Por ser a hipossuficiência intrínseca a qualquer trabalhador, todos os possíveis contemplados pela nova competência da Justiça do Trabalho seriam agraciados pelo Princípio Protetivo e suas conseqüências, mesmo que em graus diferenciados.

Ainda que a tendência seja de inserir no objeto do direito do trabalho outras categorias de trabalhadores, dando-lhes, ao menos, um mínimo de proteção, é certo que jamais poderá se igualar àquela dispensada aos empregados, inclusive em seus reflexos no direito processual, em face da condição destes últimos, de trabalhadores subordinados, e, portanto, em situação mais desfavorável que os não-subordinados. [42]

Resta, portanto, verificarmos qual a possibilidade das lides decorrentes dos serviços prestados por trabalhadores não-empregados serem incluídas na competência da Justiça do Trabalho.

Sobre o autor
Pedro Fauth Manhães Miranda

Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Londrina e Especilizando em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Estadual de Londrina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Pedro Fauth Manhães. Relação de trabalho e relação de consumo.: Discussão da competência da Justiça do Trabalho pós-Emenda Constitucional nº 45/2004. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2102, 3 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12577. Acesso em: 24 nov. 2024.

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