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Ativismo e protagonismo judicial em xeque.

Argumentos pragmáticos

Vemos, na atualidade, de modo muito recorrente, o discurso de parcela respeitável da doutrina e jurisprudência brasileira a defender uma espécie muito peculiar de ativismo judicial no qual a magistratura deveria ser preparada para proferir decisões nas quais deveria antever os impactos políticos, econômicos e sociais desses provimentos. [01]

Para tanto, várias medidas vêm sendo tomadas [02] no sentido de se criar um corpo de magistrados com formação humanística adequada.

De modo algum podem ser criticadas medidas no sentido de se melhorar a QUALIDADE dos magistrados, até mesmo quando se percebe que a vertente processual vem se tornando a via principal para a obtenção de direitos fundamentais, em países como o Brasil, nos quais não são asseguradas políticas públicas para tanto, incitando a denominada litigância de interesse público (Prozeßführung im öffentlichen Interesse) [03] .

Todavia, não se podem esquecer dois aspectos.

O primeiro, é que esta preocupação não é recente no discurso jurídico (processual). Esta percepção sociológica-econômica e protagonista do Juiz já era defendida por vários estruturadores da socialização processual, desde o final do século XIX, entre eles, com destaque, Franz Klein em palestra em 1901. [04]

Mas este, seguramente, não é o ponto principal a se analisar.

Ao se partir do pressuposto utilizado por essas linhas de pensamento no Brasil (que reputamos completamente equivocadas em seus pressupostos) [05] de que o juiz poderia sozinho vislumbrar os impactos (sociais, políticos e econômicos) de sua decisão, se possuísse uma formação humanística plural (do direito, da sociologia, da filosofia etc.), dever-se-ia analisar se no Brasil existe toda infra-estrutura, para que o juiz possa analisar os casos de modo a obter provimentos qualitativamente bem construídos.

Se realizarmos uma breve investigação nas diretrizes de funcionamento do sistema jurídico brasileiro se perceberá que do juiz é exigida uma altíssima produtividade de decisões no menor espaço-tempo processual possível.

A produtividade, até mesmo, foi guindada a critério constitucional objetivo de promoção por merecimento [06].

Nesses termos, mesmo que fosse possível a um juiz com formação plural antever os impactos de suas decisões (o que desde já não concordamos) [07], para tanto, deveria ser ofertada uma infra-estrutura idônea para tal.

Ao invés de se apostar todas as fichas na "pobre" magistratura (que se vê constrita a: a) administrar o processo sem formação para tal e b) a ofertar alta produtividade de decisões, sem auxilio técnico de nada ou de ninguém, com enorme qualidade e com antevisão dos impactos do provimento) dever-se-iam tomar medidas mais eficientes para se promover a melhoria qualitativa do sistema.

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Sabemos que as reformas pelas quais não apenas o Judiciário no Brasil, mas, todo o Judiciário da América Latina vêm passando são o resultado das necessidades do "mercado", consubstanciadas nas exigências de "previsibilidade" e celeridade nas decisões (e.g., com o uso de Súmulas Vinculantes) e, por vezes, deixando de lado outras exigências [08].

Existe uma tendência da grande maioria dos sistemas processuais em se retirar do juiz a gestão do andamento dos procedimentos e a atribuir a um administrador judicial, [09] deixando ao magistrado o cumprimento da sua função primordial: julgar.

Em outro espectro, já está mais do que no momento de se perceber a diversidade de tipos de litigiosidade: a) individual ou "de varejo" ou "de baixa intensidade": sobre a qual o estudo e dogmática foram tradicionalmente desenvolvidos, envolvendo lesões e ameaças a direito isoladas; b) a litigiosidade coletiva: envolvendo direitos coletivos e difusos, nos quais se utilizam procedimentos coletivos representativos, normalmente patrocinados por legitimados extraordinários (órgão de execução do MP, Associações representativas etc.); e c) em massa ou de alta intensidade: que dá margem a propositura de ações repetitivas ou seriais, que possuem como base pretensões isomórficas, com especificidades, mas que apresentam questões (jurídicas e/ou fáticas) comuns para a resolução da causa [10].

Estes são apenas alguns breves exemplos....

Nesses termos, apesar de reiterar a importância da melhoria qualitativa e humanística dos magistrados (que em verdade deveria ser uma preocupação de todas as profissões), parece ingênuo acreditar que tão-somente deste modo, sem uma reforma infra-estrutural e técnica do Poder Judiciário, obter-se-á os efeitos práticos e de legitimidade que se almejam.


Notas

  1. Como recentemente divulgou a coluna do ilustre Rodrigo Haidar, juízes estudam impacto das decisões, na respeitável Revista do Consultor Jurídico in: http://www.conjur.com.br/2009-mar-28/juizes-estudam-impacto-social-economico-decisoes. O artigo revela, basicamente, a preocupação dos magistrados com a difícil questão do direito fundamental à saúde (e as ações visando que o Judiciário obrigue a Administração Pública a realizar concretamente este direito), o que, pondera-se, pode levar à "quebra" do sistema de saúde, com o esgotamento dos recursos e prejuízo para os demais cidadãos. Essa tem sido uma preocupação não apenas no meio do Direito, mas também da Administração Pública, Como a Escola de Saúde Pública de Minas Gerais. Ver, e.g., CHAVES, Gabriela Costa; VIEIRA, Marcela Fogaça; REIS, Renata. Acesso a Medicamentos e Propriedade Intelectual no Brasil: reflexões e estratégias da sociedade civil. SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, a. 5, n.8, p. 170-198, Junho de 2008. HUNT, Paul e KHOSLA, Rajat. Acesso a Medicamentos como um Direito Humano. SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, a. 5, n.8, p. 100-121, Junho de 2008. SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde na constituição de 1988. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, nº. 10, janeiro, 2002. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 02/03/2009.
  2. Como a recente Resolução nº 2, de 16 de março de 2009, da ENFAM (Escola Nacional de formação e aperfeiçoamento de magistrados) tratando das diretrizes para os conteúdos programáticos mínimos dos cursos de formação para ingresso na magistratura e de aperfeiçoamento.
  3. CAPONI, Remo. Modelli europei di tutela collettiva nel processo civile: esperienze tedesca e italiana a confronto. In: Atti del Incontro di Studi: le azioni Seriali do Centro Interuniversitario di Studi e Ricerche sulla Giustiza Civile Giovani Fabbrini, junto da Università di Pisa, 04 e 05 de maio 2007.
  4. KLEIN, Franz. Zeit- und Geistesströmungen im Prozesse. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1958.p. 25. Klein idealizou as bases legais da socialização processual para todos os sistemas processuais ocidentai. Cf. NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2008.
  5. Os argumentos são amplamente apresentados em NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. cit. E: NUNES, Dierle José Coelho; BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Por um paradigma democrático de processo. In: DIDIER JR, Fredie. (org.). Teoria do Processo - Panorama doutrinário mundial. Vol. 2. Salvador: Podium, 2009 (no prelo). Conferir também o discurso de nosso grande interlocutor, Prof. Dr. Lenio Luiz Streck, em todas as usas obras, ou de modo abreviado in: http://www.conjur.com.br/2009-mar-15/entrevista-lenio-streck-procurador-justica-rio-grande-sul.
  6. Como já afirmamos noutro lugar: "A confiança nas virtudes diferenciadas dos juízes, em seu protagonismo, já deixou de ser algo defensável, para se transformar em um pesadelo para esses órgãos de execução do Estado, pressionados a fornecer decisões democraticamente formadas, sem auxílio de ninguém (nem mesmo técnico do processo), em escala industrial (alta produtividade, como se pode ver agora como mandamento constitucional: 5º, LXXVIII e 93, II, ‘c’, acrescentados pela Emenda Constitucional de Reforma do Judiciário), sem infra-estrutura adequada e sofrendo críticas de todos os seguimentos da sociedade". NUNES, Dierle José Coelho; BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Por um paradigma democrático de processo, cit.
  7. Ao Juiz, conquanto tenha diante de si um caso, devem lhe interessar as particularidades do mesmo. Por um lado, eles não podem deixar de decidir; por outro, terão de lidar com o ônus de vincular o futuro (cf. BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Constituição, política e judiciário em uma sociedade de risco permanente: um ensaio a partir da teoria dos sistemas. Metacrítica: revista de Filosofia da unidade de Investigação em Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade Lusófona, Lisboa, a. III, n. 6, p. 99-127, 2005). Difícil, então, colocar sobre o magistrado o ônus de tentar "imaginar" quais os efeitos de sua decisão para além das partes que serão atingidas por sua decisão. A solução, quer nos parecer, apenas pode advir do próprio processo: a decisão do juiz deve ser tal que resulte da co-participação de todos os sujeitos processuais no processo. Assim, se, por exemplo, em um caso sobre saúde, se argumenta que a decisão vai implicar em danos ao erário público (e isso implicará na falta de recursos para outros usuários do sistema), tal não pode ser pressuposto, quer pelo juiz, quer pela Administração Pública, mas amplamente provado e debatido nos autos, de forma que o Poder Público, de forma transparente e clara, demonstre suas razões, em contraditório com o autor. O que se vê em boa parte das discussões e julgados, entretanto, são tentativas de fazer com que o juiz avalie, não o caso que tem diante de si, mas eventuais (e supostas) repecurssões "sociais, econômicas, políticas e jurídicas" de sua decisão. O problema dessa racionalidade está em que os direitos fundamentais não podem ser tratados em uma relação pragmática de custo-benefício.
  8. Sergio J. CUAREZMA TERÁN, referindo-se às reformas judiciais na América Central, destaca que no "contexto de este proceso complejo de reforma de la justicia, no debe sorprendernos que las reformas económicas, estructurales que se vienen llevando a cabo en muchos países en desarrollo impulsan a los de la región a abordar la reforma de la justicia como complemento necesario a la reforma económica y no como en lo que en realidad debe ser, un camino para el mejoramiento del Estado Social de Derecho y de la democracia y de mayor respeto para los derechos humanos", com isso, "la justicia, y particularmente la penal, que en su inicio postulaba como un requisito esencial para la promoción la tutela de los derechos humanos, comienza a verse en estrecha relación con el desarrollo económico, como un presupuesto para garantizar seguridad en la presencia de actores económicos y empresariales y promover las inversiones privadas nacionales y extranjeras". CUAREZMA TERÁN, Sergio J. La reforma de la justicia en Centroamérica: avances, naturaleza, retos y peligros. El caso de Nicaragua. In: SERRANO CALDERA, Alejandro et al. (Ed.). Legalidad, legitimidad y poder en Nicaragua. Managua: Fundación Friedrich Ebert, 2004, p. 117-131. Também WILSON (et al) lembra daqueles que criticam a ampliação do acesso à justiça, já que isso colocaria em risco o mandamento da estabilidade do mercado: "Cuando este acceso se hace más amplio, también resulta más difícil predecir el contenido sustantivo de las sentencias de la Corte. No hay motivo para asumir que ampliar el acceso necesariamente resultará en decisiones que favorezcan las reformas de libre mercado" (WILSON, Bruce M; RODRÍGUEZ CORDERO, Juan Carlos; HANDERBERG, Roger. A Mayores Previsiones... Resultados Imprevistos: reforma judicial en América latina – indicios sobre costa rica. Revista América Latina Hoy, Salamanca, v. 39, 2005, p. 99). Ver também BAHIA. Os Recursos Extraordinários e a Co-originalidade dos Interesses Público e Privado no interior do processo: reformas, crises e desafios à jurisdição desde uma compreensão procedimental do estado democrático de direito. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo A.; MACHADO, Felipe D. Amorim (coord.). Constituição e Processo: a contribuição do processo no constitucionalismo democrático brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 363-372.
  9. Na Espanha a Reforma ocorrida a partir de 2001 alterou o nome (e o funcionamento) da "secretaria judicial", que passou a ser denominada "escritório judicial" (oficina judicial), dentro de uma concepção gerencial. Uma peça central nessa mudança foi a redefinição (e aumento) de funções do "Secretário Judicial", que passou a ser responsável pela organização e funcionamento do escritório judicial, de forma que o juiz tenha mais tempo para se dedicar à função de julgamento (cf. MORATO, Manuel Martín. El Nuevo Modelo de Oficina Judicial. Revista Jurídica de Castilla y León, n. 5, Enero 2005, p. 173-190). Noutra oportunidade se afirmou: "Sabe-se que os magistrados não possuem formação administrativa a viabilizar o gerenciamento conjunto de milhares de processos sob sua responsabilidade e direção. Desse modo, a criação de um administrador judicial, um novo tipo de escrivão com formação específica, permitiria que o juiz desempenhasse tão-somente a função que lhe cabe: julgar. No direito alemão, o administrador judicial (Rechtspfleger) profere algumas decisões durante a tramitação processual, fato que permite ao magistrado uma participação ativa durante todo o processo. Como informa Hess, o papel dos administradores judiciais na Alemanha é importantíssimo, exercendo a competência em questões executivas, na expedição de ordens de pagamento (Mahnsverfahren – monitórias puras) e nos processos de insolvência. A França e o Conselho da Europa também possuem uma tendência de transferência de atividades não jurisdicionais a escrivães ou assessores judiciais. No direito brasileiro, seria perfeitamente possível a criação da figura de um administrador judicial, que teria o encargo de administrar e controlar a tramitação sistemática e contínua dos feitos, além de poder proferir os despachos, de modo a permitir a redução dos tempos mortos e garantir ao juiz o exercício da função decisória e de estudo detido dos casos, mediante um diálogo genuíno com as partes, permitindo o proferimento de decisões constitucionalmente adequadas." (NUNES, Dierle José Coelho; BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Eficiência processual: Algumas questões. Revista de Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, no prelo).
  10. MENCHINI, Sergio. Azioni seriali e tutela giurisdizionale: aspetti critici e prospettive ricostruttive. In: Atti del Incontro di Studi: le azioni Seriali do Centro Interuniversitario di Studi e Ricerche sulla Giustiza Civile Giovani Fabbrini, junto da Università di Pisa, 04 e 05 de maio 2007.
Sobre os autores
Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

Mestre e Doutor em Direito Constitucional (UFMG). Professor Adjunto na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e na Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Professor permanente do Programa de Mestrado em Direito da Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Advogado no Cron - Advocacia.

Dierle José Coelho Nunes

Doutor em Direito Processual (PUC Minas / Università degli Studi di Roma “La Sapienza”). Mestre em Direito Processual (PUC Minas). Professor Universitário da PUCMinas, da Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM) e da UNIFEMM. Membro da Comissão de Ensino Jurídico da OAB/MG. Advogado militante. Autor dos livros: "Processo jurisdicional democrático" (Juruá, 2008), "Direito constitucional ao recurso" (Lumen Juris, 2006).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco; NUNES, Dierle José Coelho. Ativismo e protagonismo judicial em xeque.: Argumentos pragmáticos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2106, 7 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12587. Acesso em: 2 nov. 2024.

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