Sumário: Introdução - 1 A liberdade de associação - 1.1 Surgimento e inserção no Direito Internacional - 1.2 Direito pátrio - 1.3. Elementos - 1.3.1 Direito à reunião pacífica - 1.3.2 Direito de associação - 1.3.3 Direito de se tornar ou não membro de uma associação - 2 O Cooperativismo - 2.1 As cooperativas - 2.2 Criação do Sistema Cooperativista - 2.3 A maximização da OCB - 2.4 A representação das cooperativas hoje - 2.5 O SESCOOP e sua competência legal - 3 Fiscalização das cooperativas - 3.1 O programa da Lei 5.764/71 - 3.1.1 Revogação pela Constituição - 3.3 Os atos constitutivos e a omissão do Registro do Comércio - 3.4 O papel do Ministério Público – 4. O que está por trás dos números - Conclusão
Introdução
Uma das mais festejadas conquistas populares dentre as que figuraram inéditas na Constituição Republicana de 1988 certamente foi a liberdade de associação. Foram muitas as mudanças promovidas por esta inovação jurídica, seja pelo foco coletivo da faculdade dos grupos sociais existirem como personalidade – antes um privilégio de classes de direita – seja pela garantia dada ao indivíduo que pretenda unir-se ou desvincular-se de qualquer tipo de associação no momento em que bem entender.
Destaque-se o fato de que se permitiu às coletividades possuir identidade e respaldo suficientes para colocarem-se como parte processual perante a Justiça. Passam a defender os mais diversos direitos e, como consequência lógica, observa-se o amadurecimento de suas reivindicações. O parâmetro para lidar com a opressão – vinda das camadas abastadas ou mesmo do Estado – não é mais apenas o da soma desconexa dos esforços de indivíduos. A dimensão de uma entidade civil organizada pressupõe outras condições, outras prerrogativas.
Com estas mudanças positivas sucintamente apontadas, faz-se então necessário vislumbrar que o enfoque que é dado aqui, ao direito de associação, é de exceção. No contexto do cooperativismo no Brasil, aponta-se uma análise demonstrativa de que não houve mecanismo que preenchesse a função fiscalizatória outrora desempenhada pela Organização das Cooperativas Brasileiras.
Enxerga-se, ao final, consequências destrutivas da ordem social e do espírito de paridade das armas no combate diário pelo fim do desemprego, pela inclusão social.
A criação da Organização das Cooperativas Brasileiras - OCB, no ano de 1970, inaugurou o que se pode chamar de sistematização do movimento cooperativista, cuja disseminação no Brasil há muito havia iniciado. O fato de ter havido uma estruturação oficial do Estado, com a edição da Lei 5.764/71, acabou por dar ao processo um aspecto ditatorial e controlador, ainda reflexo do militarismo.
Pouco tempo depois, juntou-se à estrutura da OCB o Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo - SESCOOP, órgão do Sistema S criado pela Medida Provisória 1.715, de 3 de setembro de 1998, responsável pela formação profissional relacionada ao cooperativismo e ainda com a incumbência regimental de "operacionalizar o monitoramento, a supervisão, a auditoria e o controle em cooperativas, conforme sistema desenvolvido e aprovado em Assembleia Geral da Organização das Cooperativas Brasileiras – OCB", segundo o art. 2º, II, anexo do Decreto 3.017 (BRASIL, 1999).
Hoje são muitas as cooperativas não participantes deste Sistema, que, juridicamente, é um complexo de associações, cujo registro forçado deixou de existir pela superveniência da liberdade de associação Constituição Federal de 1988. Dessa forma, o simples arquivamento dos atos constitutivos destas sociedades nas Juntas Comerciais passou a ser o único pressuposto de seu funcionamento.
Fica o questionamento: como pode o SESCOOP, que recebe recursos públicos para tal, fiscalizar sociedades cujo registro oficial lhe escapa completamente aos olhos, já que não tem como forçá-las a prestar quaisquer informações ou, pelo menos, obtê-las por prerrogativa de sua função junto ao Registro do Comércio?
Anote-se que é função do Ministério Público fiscalizar as cooperativas, simplesmente por sua missão constitucional de custos legis quanto aos interesses sociais. Num momento posterior, ver-se-á que lhe faltam condições para isso.
Considerando as demandas judiciais contra as sociedades que descumprem a lei das cooperativas no que ainda vige, há muito chegou o momento de repensar uma forma de prevenir abusos aos direitos sociais intrínsecos à relação do associado com a entidade, quase sempre consequência da falta de um mecanismo de controle estatal prévio.
As razões que levaram à unicidade de representação jurídica, política, social e cultural do cooperativismo nacional pela Organização das Cooperativas Brasileiras - OCB, garantida, no plano formal, pela publicação da Lei 5.764, de 16 de dezembro de 1971, não mais se coadunam com o espírito libertário gerado pelo direito fundamental à liberdade de associação.
O Sistema OCB/SESCOOP, portanto, ficaria absolutamente impotente para tomar providências administrativas contra o que ocorre à margem da legislação pertinente, quando se trata da atuação das sociedades não filiadas.
A obrigatoriedade do registro, que a OCB defendeu por muito tempo mesmo após a promulgação da Constituição [01] é hoje completamente inexigível face aos contornos atuais daquele direito de liberdade.
Por outro lado, o abolicionismo do qual não abrem mão muitas cooperativas, muitas vezes pretende apenas mascarar sua intenção de não prestar contas da atividade desempenhada a quem quer que esteja fora do seu quadro societário. Isso possibilita um desregramento que já se mostrou extremamente maléfico para o Estado e para a sociedade como um todo.
Disso advém a burla a direitos sociais e a necessidade, quase sempre, da ação individualizada do ex-participante da sociedade. Após um processo judicial díspar, fica visível que o mesmo nunca deveria ter sido chamado de sócio, quando o contexto era de empregado, sem direitos que lhe caberiam.
As unidades estaduais do Sistema, em vez de contarem com um controle oficial, por vezes lançam mão da diplomacia para celebrar acordos com os órgãos de Registro do Comércio. Nesse mecanismo, as Juntas Comerciais fornecem dados sobre as sociedades constituídas como cooperativas e, então, em ato de mera consultoria, aquelas unidades propõem que não sejam aceitos desrespeitos ao ordenamento jurídico vigente.
É assim que a lei brasileira vem (des)tratando esse problema que, apesar de parecer pontual, é um dos grandes entraves ao desenvolvimento econômico de camadas sociais cuja proteção não pode ser desprezada, ou então não se queira tomar essa civilização como minimamente consciente do seu dever.
1 A liberdade de associação
O direito de criar grupos de interesse comum é um Direito Humano. A organização de pessoas sempre foi um instrumento basilar da pretensão de influência dos cidadãos sobre seus governos, dos empregados sobre seus patrões.
O direito à liberdade de associação é garantido em vários tratados internacionais de direitos humanos. Todavia, este direito foi mais bem definido e elaborado no direito internacional do trabalho, dadas as ligações particulares entre estes direitos e a capacidade dos trabalhadores de assegurarem suas conquistas paulatinas. A liberdade de associação é um dos primados institucionais da Organização Internacional do Trabalho, para que empregados do mundo inteiro possam negociar coletivamente.
Eis o conteúdo do artigo 20º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948): "Toda a pessoa tem direito à liberdade de reunião e de associação pacíficas. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação". Como resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, a Declaração não tem efeito vinculativo, apesar das opiniões em sentido contrário. Não se contesta, porém, sua aplicabilidade como parte do Direito Internacional consuetudinário.
É extensa a lista de documentos outros de Direito Internacional que incluem a matéria:
- Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951) (artigo 15º);
- Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966) (artigo 8º);
- Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (1966) (artigo 21º, 22º);
- Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) (artigo 15º);
- Declaração sobre o Direito e a Responsabilidade dos Indivíduos, Grupos ou Órgãos da Sociedade de Promover e Proteger os Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais Universalmente Reconhecidos (1998);
- Convenção (nº 87) da OIT sobre a Liberdade Sindical e Proteção do Direito Sindical (1948);
- Convenção (nº 135) da OIT relativa à Proteção do Direito de Organização e aos Processos de Fixação das Condições de Trabalho da Função Pública (1987);
- Declaração relativa aos Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho (1998);
- Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (1981) (artigo 10º, 11º);
- Carta Africana dos Direitos e Bem-Estar da Criança (1990) (artigo 8º);
- Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (1949) (artigo 11º);
- Carta Social Europeia (1961) (artigo 5º, 6º);
- Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000) (artigo 12º);
- Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969) (artigo 15º, 16º).
1.2 Direito pátrio
A primeira constituição brasileira a tratar da liberdade de associação foi a de 1891 [02], seguida pelas de 1934 [03], 1937 [04], 1946 e 1967 (com o mesmo teor da de 1934).
O texto constitucional atual permite, por si só, compreender os desdobramentos do instituto em estudo. Eles traduzem conquistas paulatinas da sociedade e são interligados num micro sistema de garantias. Inclui-se nele o direito de reunião, uma liberdade coletiva que é rubricada como Direito Fundamental autônomo. Contudo, é de tamanha importância contextual para a efetividade da liberdade de associação, que não se poderia deixar de ser mencionada. Seu teor:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;
XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;
XVIII - a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;
XIX - as associações só poderão ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por decisão judicial, exigindo-se, no primeiro caso, o trânsito em julgado;
XX - ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado;
XXI - as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente;
1.3. Elementos
1.3.1 Direito à reunião pacífica
Aqui se trata da independência que os grupos sociais organizados, ou mesmo quaisquer coletividades sem vínculo jurídico algum, têm para ocupar espaços públicos em função de um interesse pacífico que pressuponha uma agregação durante um espaço tempo.
A liberdade de reunião somente poderá ser negada em situações de perturbação ou risco à segurança nacional ou à ordem pública. O direito à reunião violenta não é defendido. [05]
1.3.2 Direito de associação
Pelos motivos que foram expostos no intróito deste trabalho, esta é indubitavelmente uma grande conquista social. Falou-se, em princípio, da faculdade dos indivíduos unirem-se uns aos outros e constituir associações.
Alguns países ainda tentam impor obstáculos à capacidade dos indivíduos de constituírem associações de várias maneiras:
- sustentando que não concordam com os propósitos políticos das associações;
- negando personalidade jurídica que poderia ser essencial para o seu funcionamento quotidiano e para ingressar em relações contratuais;
- impondo processos de registro parciais e incômodos;
- impondo restrições financeiras.
O Código Civil Brasileiro de 1919 já explicitava, no seu art. 18, que
Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição dos seus contratos, atos constitutivos, estatutos ou compromissos no seu registro peculiar, regulado por lei especial, ou com a autorização ou aprovação do Governo, quando precisa.
Poder-se-ia inferir apenas destas normas que bastava o preenchimento de tais requisitos para que uma associação viesse a operar em sua plenitude, com autonomia frente ao Estado para defender seus interesses, já que muitas vezes é contra este que surgem pretensões diversas.
Contudo, dado o momento histórico em que se inaugurou nova ordem jurídica com a promulgação da Constituição Federal, houve por bem positivar que "a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento" (art. 5º, XIII).
Não é demais anotar a importância à autogestão associativa. Dá-se aos membros liberdade para escolher seus representantes e instituir sua regulação interna, apenas com uma autêntica limitação, que é a proteção a outros Direitos Fundamentais.
Um outro aspecto desta liberdade constitucional é sua extensão, nos mesmos moldes, às pessoas jurídicas. Assim, não apenas indivíduos, como seus clubes, organizações, institutos, sindicatos etc. podem agremiar-se para formar corpos mais abrangentes de representação. São comumente conhecidos como federações, regionais e confederações. Esta face é a que interessa ao presente trabalho, como será visto adiante.
1.3.3 Direito de se tornar ou não membro de uma associação
Passada a análise do surgimento e funcionamento das associações, sem interferência estatal, completa-se o sistema garantístico anunciado com a liberdade conferida, tanto às pessoas físicas como jurídicas, de ingressar ou não nestas entidades.
Nestes termos, ser membro de uma associação qualquer é, antes de qualquer coisa, uma opção pessoal. É inadmissível que se desfigure o propósito libertário ínsito a estes institutos jurídicos com o induzimento, mesmo indireto, a alguma espécie de represália pela escolha feita por alguém, para qualquer dos lados.
O Estado pode – e deve – fomentar muitas áreas do desenvolvimento nacional através de incentivo às organizações da sociedade civil que acabam trabalhando como parceiras de diversos programas constitucionais e, por que não dizer, de políticas públicas governamentais.
É, inclusive, recomendado pelos organismos internacionais, incluindo a Organização das Nações Unidas [06], o estímulo ao associativismo e ao cooperativismo como propulsores do que se convencionou nominar economia solidária.
Finaliza-se com as precisas delineações de Jorge Miranda sobre o instituto (MIRANDA, 2000):
"I - O direito de associação apresenta-se como um direito complexo, com múltiplas dimensões - individual e institucional, positiva e negativa, interna e externa - cada qual com a sua lógica própria, complementares umas das outras e que um sistema jurídico-constitucional coerente com princípios de liberdade deve desenvolver e harmonizar.
II - Antes de mais, é um direito individual, positivo e negativo:
1.°) O direito de constituir com outrem associações para qualquer fim não contrário à lei penal e o direito de aderir a associações existentes, verificados os pressupostos legais e estatutários e em condições de igualdade;
2.°) O direito de não ser coagido a inscrever-se ou a permanecer em qualquer associação, ou a pagar quotizações para associação em que se não esteja inscrito, e, no limite, o direito de deliberar a dissolução de associação a que se pertença.
Este direito tem a natureza de liberdade enquanto não implica, para nenhum efeito, a dependência de autorização de qualquer tipo ou de qualquer intervenção administrativa.
III - Revela-se depois um direito institucional, a liberdade das associações constituídas:
1.°) Internamente, o direito de auto-organização, de livre formação dos seus órgãos e da respectiva vontade e de acção em relação aos seus membros;
2.°) Externamente, o direito de livre prossecução dos seus fins, incluindo o de filiação ou participação em uniões, federações ou outras organizações de âmbito mais vasto;
3.°) Como corolário, a susceptibilidade de personificação - se a atribuição de subjectividade jurídica, sem condicionalismos arbitrários ou excessivos, for o meio mais idôneo para tal prossecução de fins;
4.°) Como garantias, a vedação de intervenções arbitrárias do poder político.
2 O Cooperativismo
A Aliança Cooperativa Internacional (International Co-operative Alliance: ICA) define cooperativa como uma associação autônoma de pessoas voluntariamente unidas por suas necessidades e aspirações comuns, sejam elas econômicas, sociais ou culturais, através de uma empresa coletiva e democraticamente administrada.
Em todo o mundo, esta mesma instituição estima que haja pelo menos 800 milhões de associados em cooperativas, e que estas ainda empregam diretamente outras 100 milhões de pessoas. [07]
Do total de 49 trilhões de dólares, o cooperativismo responde por cerca de 23% do PIB mundial. Quase 3 bilhões de pessoas estão envolvidas ou dependem indiretamente de cooperativas no planeta.
Existe uma proximidade ontológica muito forte entre uma cooperativa e uma associação comum e, por isso, todo o tratamento jurídico exposto, até agora, é aplicável a ambas as entidades, para que se garanta a autonomia de suas decisões. Porém, fez bem a lei do cooperativismo em diferenciar as cooperativas tanto das associações civis como das empresas mercantis, para que não houvesse dúvida de que se trata de uma espécie de pessoa jurídica para a qual o Estado deve demonstrar especial atenção. [08]
O Código Civil brasileiro, ao definir associação, declara que é uma união de pessoas que se organizem para fins não econômicos. Desta simplificação já se extrai a diferenciação necessária. Prefere-se, entretanto, enumerar outras peculiaridades sobre cooperativas, para melhor compreensão deste trabalho:
- Valorização da pessoa como detentora do poder de gerir, independentemente do capital social que houver integralizado;
- Princípio das portas abertas, segundo o qual todas as pessoas têm o direito de participar de uma cooperativa, desde que preencham as condições para isso;
- Abertura forçada à participação plural, com proibição de ter na diretoria apenas um ou alguns núcleos familiares;
- Necessidade de renovação do quadro gestor, em função do não favorecimento individualista;
- Publicidade dos atos convocatórios e deliberativos;
- Existência obrigatória de fundos de amparo ao associado etc.
Essas e outras peculiaridades, ao mesmo tempo em que engessam o formato das sociedades cooperativas, às vezes até confundidas com ingerências estatais no funcionamento, são, na verdade, garantias mínimas que tentam manter incólumes as finalidades últimas do cooperativismo: inclusão social e distribuição de renda.
É justamente para atender a essas metas que o Estado precisa fiscalizar se sua atuação atende aos requisitos legais. Caso contrário, perderia totalmente o sentido a instituição de privilégios jurídicos e de políticas públicas às cooperativas. [09]
2.2 Criação do Sistema Cooperativista
Ao longo da história do Brasil, muitos exemplos de cooperação foram dados pela participação jesuítica durante a colonização portuguesa, bem como pela imigração europeia. Porém, o cooperativismo surgiu como movimento socioeconômico e como doutrina apenas no século XIX.
Houve um crescimento vertiginoso de diversos modelos de sociedades em cooperação no início do século XX, especialmente no sul do país. As iniciativas esparsas tiveram uma primeira uniformização do seu formato com a edição do decreto 22.239, de 19 de dezembro de 1932, que adotou a doutrina considerada pioneira no cooperativismo mundial: a dos tecelões de Rochdale, Inglaterra.
A primeira lei nacional a tratar especificamente sobre cooperativas definiu-as como sociedades de pessoas e não de capital, cuidou da constituição, do funcionamento e já as isentava de diversos tributos.
Obviamente, com a vocação agrícola assumida pelo Brasil a partir de 1930, o cooperativismo ia tornando-se, aos poucos, uma saída para o desenvolvimento econômico de muitos grupos. As regulações estatais ao movimento contribuiu fortemente tanto para momentos de ascensão como de crise.
Na segunda metade dos anos 60, sob forte centralização do militarismo, as entidades representativas do cooperativismo em caráter nacional viam-se divergentes, enfraquecidas e com pouco respaldo para lutar pelas reivindicações advindas de suas bases, os cooperados.
Uma iniciativa do Ministério da Agricultura acabou conseguindo a unificação da Aliança Brasileira de Cooperativas com a União Nacional das Associações Cooperativas – criadas em 1956 – numa única representação, a OCB.
2.3 A maximização da OCB
Desde sua criação em 1970, a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) tomou para si a responsabilidade de organizar o cooperativismo em todo o território nacional. Aliada que esteve com o Estado, desde a própria concepção, ela obteve êxito em pouquíssimo tempo num ousado projeto: substituir toda a normatização anterior sobre cooperativas para conferir a si mesma um caráter oficial. A Lei 5.764, de 16 de dezembro de 1971, instituiu o poder de registrar e controlar todas as sociedades que se pretendessem funcionar como cooperativas no país, tomando por ilegais todas as que não obtivessem "permissão" da Organização para funcionar.
Desta forma, surgiram os braços da OCB em todos os estados federados: as organizações de cooperativas estaduais, ou simplesmente OCEs, que viabilizavam um estruturado monopólio.
A partir de 1994, quase todas as OCEs atraíram para si a atribuição de representação sindical, já que o Brasil acompanhou a tendência mundial de tratar também as cooperativas como integrantes de uma categoria econômica. Com a obtenção do Cadastro Nacional de Entidades Sindicais, passaram a contar com a proteção da unicidade sindical. Assim, qualquer cooperativa que necessitasse das dos serviços de um sindicato patronal, estaria mesmo obrigada a filiar-se ao Sistema Cooperativista, mesmo que fossem dissidentes da época do registro obrigatório.
Desde a edição da Lei 5.764, já se contava com a participação permanente de três representantes da OCB entre as oito cadeiras do Conselho Nacional de Cooperativismo, responsável pela orientação geral da política cooperativista nacional. A competência propriamente fiscalizatória das cooperativas cabia ao INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, órgão executivo federal.
Para a OCB, ainda era pouco. Através da Frente Parlamentar Cooperativista, com a justificativa de conferir maior autonomia às cooperativas, editou-se o Decreto 90.393, em 1984, possibilitando ao INCRA a delegação dessa função ao próprio Sistema Cooperativista.
2.4 A representação das cooperativas hoje
Desde que a Constituição Federal garantiu a liberdade de associação, revogando os dispositivos da Lei 5.764/71 que impunham o "registro" no Sistema Cooperativista como requisito de funcionamento de uma sociedade cooperativa, por mais que a OCB quisesse, não se sustentaram as opiniões de que eram ilegais as cooperativas cujos atos constitutivos tivessem assentos apenas nos órgãos de Registro do Comércio.
Maior detalhamento da não recepção constitucional será visto mais adiante. Por hora, faz-se uma análise do panorama atual da OCB. Encontra-se na obra Comentários à Legislação das Sociedades Cooperativas um lúcido esclarecimento a respeito do seu papel e natureza institucional:
Com pouquíssimas outras referências na própria tradição institucional pátria, a OCB une duas finalidades distintas, normalmente identificadas com institutos distintos: a representação de interesses privados, típica de associação; e outra, eminentemente pública, típica de autarquia, que é o monitoramento, regulação de atividade econômica privada, voltada, no caso, para a guarda da doutrina cooperativista. (KRUEGER; MIRANDA; 2007)
Defasada que restou a legislação de 1971, é por demais importante que se delineie um novo perfil jurídico para diversas questões que ela tratava, face às posteriores conjunturas constitucional, sócio-econômica e de polícia administrativa.
Dos projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional, o que aparece com tramitação mais avançada é o PLS 3/2007, do senador Osmar Dias. Por aventureiro que pareça [10], em termos jurídicos, o projeto reforça o monopólio oficial da OCB em contornos mais firmes que os da lei atual. Dispõe claramente que as Juntas Comerciais só procederão o arquivamento do ato constitutivo e do estatuto quando receberem o aval do órgão da OCB, que "declarará sua compatibilidade com a legislação".
Até os representantes do Governo, membros do Grupo de Trabalho Interministerial do Cooperativismo (Decreto de 4 de julho de 2003), divergem substancialmente de posição sobre a delicada matéria. [11]
A questão envolve muitos aspectos, sendo de suma relevância para o Poder Público, que tem interesse na existência de cooperativas regulares para evitar o risco de evasão fiscal como consequência da proliferação de falsas cooperativas.
Como garantia da segurança no investimento de recursos públicos para o apoio às cooperativas, bem como ampliar o escopo de benefícios tributários relacionados ao "ato cooperativo", cuja regulação ainda se aguarda [12], o Estado precisa não apenas de um mecanismo confiável para o controle da compatibilidade dos atos constitutivos das cooperativas à legislação pertinente, mas, também, para o monitoramento contínuo de suas atividades.
2.5 O SESCOOP e sua competência legal
O Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo é órgão paraestatal integrante do "Sistema S", criado pela Medida Provisória 1.715, de 3 de setembro de 1998, e suas reedições [13], e regulamentado pelo Decreto 3.017, de 6 de abril de 1999.
Para compreender a essência deste órgão, toma-se inicialmente a respeitada doutrina do professor José dos Santos Carvalho Filho, ao tratar que a Administração Pública compreende as pessoas de cooperação governamental (Serviços Sociais Autônomos).
As pessoas de cooperação governamental são pessoas jurídicas de direito privado, embora no exercício de atividades que produzem algum benefício para grupos sociais ou categorias profissionais.
Apesar de serem entidades que cooperam com o Poder Público, não integram o elenco das pessoas da Administração Indireta, razão por que seria impróprio considerá-las pessoas administrativas.
(...)
Sua criação depende de lei autorizadora (...), embora não tenham elas sido mencionadas no art. 37, XIX, da Lei Maior. Entretanto, recebem recursos de contribuições pagas compulsoriamente, e obrigações dessa natureza reclamam previsão em lei.
(...)
Os estatutos são delineados através de regimentos internos, normalmente aprovados por decreto do Chefe do Executivo.
A partir do surgimento do SESCOOP, as cooperativas passaram a receber em serviços a contribuição que antes recolhiam ao governo em benefício das instituições nacionais Senai, Sesc, Sesi, Senac, Senat, Sest, Sebrae e Senar – o polêmico "Sistema S". Seus objetivos são extraídos do mencionado decreto. Eis o art. 2º do seu anexo, o Regimento Interno da entidade:
Art. 2º Constituem objetivos do SESCOOP:
(...);
II - operacionalizar o monitoramento, a supervisão, a auditoria e o controle em cooperativas, conforme sistema desenvolvido e aprovado em Assembleia Geral da Organização das Cooperativas Brasileiras - OCB;
Entre muitos pontos de árdua compreensão no âmbito das estruturas das pessoas jurídicas administrativas no Brasil, encontra-se a questão da legitimidade da direção dos órgãos do "Sistema S". Desde o início, ficou disposto que O SESCOOP será presidido pelo Presidente da OCB, o qual terá direito nas deliberações somente a voto de qualidade (art. 9º, § 1º da MP 2.168-40).
Na prática, OCB e SESCOOP são uma organização só. Compartilham não apenas suas direções, como também seu patrimônio, sua política institucional, seu poder representativo, seus funcionários. Enfim, sua identidade diferenciada em associação + sindicato (entidades essencialmente privatísticas), de um lado, e serviço de aprendizagem paraestatal (com fortes traços públicos), de outro, só existe em normas, discursos e relatórios, quando se precisa prestar contas das verbas públicas aplicadas pelo poderoso Sistema Cooperativista.