1 - INTRODUÇÃO
No dia 04 de dezembro de 2008, foi publicado no Diário Oficial da União a Medida Provisória nº 4.449, de 03 de dezembro de 2008, que introduziu alterações na Legislação Tributária Federal, dentre as quais o art. 29, que incluiu o inciso IX ao parágrafo 3º do artigo 74, da Lei nº 9.430 de 1996.
Pela análise do dispositivo supracitado, observa-se que as pessoas jurídicas sujeitas ao regime de pagamento mensal do IRPJ e da CSLL sobre a base de cálculo estimada em exercício financeiro anterior, na forma facultada pelo art. 2° da Lei 9.430/96, estão impedidas de realizar o procedimento previsto no caput do art. 74 da referida lei, o qual possibilita ao sujeito passivo compensar seus créditos com débitos próprios relativos a quaisquer tributos e contribuições administrados pela Receita Federal do Brasil.
Tal vedação é inconcebível e injustificada, em razão da compensação ser um direito do sujeito passivo, no intuito de assegurar princípios constitucionais como a propriedade e o não-confisco. Os contribuintes/responsáveis, ao realizarem os chamados "pagamentos indevidos", previstos no art. 165 do CTN, têm o direito de ressarcimento, pois estes valores não são devidos a Fazenda Pública, mas sim pertencentes aos particulares, constituindo o patrimônio privado destes.
Neste sentido, qualquer medida que injustificadamente obstaculizar este direito possui clara natureza confiscatória, cerceando o direito de propriedade do contribuinte, a capacidade contributiva, além de ferir o princípio da moralidade administrativa.
2 - O DIREITO À COMPENSAÇÃO
A idéia da compensação funda-se na quitação de débitos e créditos recíprocos entre credores e devedores simultâneos. A vantagem deste procedimento é incontestável para ambos os pólos da relação jurídica, pois têm seus créditos reconhecidos e débitos extintos, satisfazendo os interesses mútuos e dirimindo o conflito.
A compensação foi regulada pelo já citado artigo 74 da Lei nº 9.430/96, segundo o qual ficou assegurado o direito do sujeito passivo de realizar um "encontro de contas" de seus débitos e créditos para com o fisco. O parágrafo § 3º estabelece quais são os casos que são vedados à realização do procedimento de compensação, mediante a entrega de declaração na qual constarão informações relativas aos créditos utilizados e aos respectivos débitos compensados.
No caso específico, a introdução do inc. IX ao parágrafo 3º da Lei nº 9.430/96 impõe severo ônus fiscal as pessoas jurídicas sujeita a tributação com base no lucro real, optantes pelo pagamento do imposto, em cada mês, determinado sobre a base de cálculo estimada, em razão de obrigá-la a quitar seus débitos fiscais e impedi-las de obter seus créditos, ocasionado um enriquecimento sem causa para o Estado. O Fisco, ao obstaculizar a compensação, não está fazendo outra coisa senão apropriar-se de um dinheiro que não lhe pertence.
Neste sentido, flagrantes os vícios de constitucionalidade impostos pelo art. 29 da MP 449/08 ao modificar o parágrafo 3º do artigo 74, da Lei nº 9.430/96, como será exposto a seguir.
3 - INCONSTITUCIONALIDADE DA MP 449/08
Pela análise do art. 29 da MP 449/08, verifica-se ofensa a vários direitos e garantias individuais do contribuinte, além de princípios fundamentais previstos na CF-88, entre eles, a isonomia, a moralidade administrativa, a propriedade, a vedação ao confisco, a capacidade contributiva, a reserva legal, a anterioridade, o direito adquirido e o da irretroatividade.
De acordo com o princípio da isonomia, previsto no art. 5º c/c o art. 150, II, da CF-88, o Poder Público não pode dar tratamento tributário diferenciando aos contribuintes, o que deve ser analisado sob dois prismas: relação fisco/contribuinte e contribuinte/contribuinte.
O fisco, sempre que possui débitos para com os contribuintes, realiza a compensação com seus respectivos créditos, automaticamente e sem a necessidade de anuência destes. Exemplo típico é a compensação dos valores do imposto de renda restituído ao contribuinte que apresentou declaração fora do prazo legal. A Fazenda lança multa de mora pelo atraso na entrega da declaração do rendimento e deduz, desde logo, o valor correspondente da quantia que tem o devedor a restituir. Veja que nesta situação o crédito do Fisco ainda não é líquido, uma vez que ainda caberia ao contribuinte impugnar o lançamento da penalidade.
Desta forma, o que justificaria um tratamento diferenciado ao contribuinte na compensação de seus créditos? Se a Fazenda pode arbitrariamente realizar a compensação, o que impediria ao sujeito passivo realizar de forma legítima este procedimento?
Ademais, a isonomia visa assegurar tratamento diferenciado para pessoas em situações díspares e tratamento igualitário entre os que se apresentam em condições equivalentes. Neste sentido, o que justifica o impedimento da realização da compensação apenas no caso das pessoas jurídicas sujeitas ao regime de pagamento mensal do IRPJ e da CSLL sobre o lucro real ou base de cálculo estimada? Por que esta vedação não foi estendida para as pessoas jurídicas sujeitas a outros regimes de apuração do IRPJ e CSLL? A adoção do regime de apuração do IRPJ e da CSLL leva em consideração critérios de conveniência e praticidade optados pelos contribuintes. Porém, independentemente do regime de apuração, os contribuintes encontram tratamento diferenciado de acordo com a renda que auferem e não pela opção do sistema de tributação, de modo que estabelecer critérios desiguais, quanto à oneração da carga fiscal, levando como critério o sistema de apuração, é evidentemente inconstitucional.
A conduta das autoridades administrativas, além de ser regulada e limitada pelo princípio da legalidade, deve estar em consonância com o Princípio da Moralidade Administrativa, sob pena de nulidade do ato, conforme o art. 37 da CF-88.
O Princípio da Moralidade Administrativa dispõe que os atos e normas das autoridades públicas, além de lícitos, devem estar de acordo com preceitos éticos e morais, coibindo desvios de poderes, abuso de autoridade e arbitrariedades, assim como vantagens excessivas e desproporcionais para a administração.
Resta evidente que a MP 449/08, ao vedar a compensação de créditos tributários dos sujeitos passivos com seus respectivos débitos, fere o Princípio da Moralidade Administrativa. Não é preciso um esforço teórico muito profundo para demonstrar a imoralidade de um credor (União) exigir seus débitos, inclusive por meios coercitivos, e se recusar a cumprir seus débitos. Pelo senso comum, nós chamamos isso de "calote".
Cumpre ressaltar que, entre os direitos e as garantias fundamentais previstas no art. 5º da CF-88, destaca-se o direito de propriedade em seu inciso XXII. A propriedade, direito fundamental do cidadão, deve ser entendida em seu conceito amplo, abrangendo os bens materiais e imateriais. Destarte, não apenas os bens imóveis estão protegidos por essa prerrogativa, mas também, entre outros, os direitos creditícios. Neste sentido, os créditos dos sujeitos passivos contra a Fazenda Pública estão, indubitavelmente, abrangidos pelo conceito de propriedade; logo, constituem garantia fundamental do contribuinte.
Destarte, limitações ao direito de propriedade devem estar pautadas ao princípio da proporcionalidade, onde haja adequação entre meio e fim, observados a proporcionalidade em sentido estrito, assim como a razoabilidade. O próprio STF [01] já proferiu decisões no sentido de que, na elaboração de leis que limitem garantias individuais, deve-se levar em conta não apenas o princípio da reserva legal, mas também o da proporcionalidade, consagrando o princípio da "reserva legal proporcional".
No presente caso, está evidente que as alterações introduzidas no artigo 74 da Lei nº 9.430/96 ferem claramente o direito de propriedade dos contribuintes. Ao impossibilitar a compensação de seus créditos com débitos devidos ao fisco, o Poder Executivo, por meio da MP 449/08, está esvaziando o direto creditício dos sujeitos passivos, possuindo tal medida clara natureza expropriatória.
Violado o direito de propriedade a norma tributária, conseqüentemente, estará tendo um efeito confiscatório, o que é vedado pelo art, 150, inc. IV da CF-88. Ora, a União ao impossibilitar aos contribuintes a utilização de seus créditos mediante compensação, não está fazendo outra coisa senão confiscar recursos que não lhe pertencem oriundo de pagamentos indevidos de tributos. Não se pode esquecer que o sujeito passivo adquire créditos contra a Fazenda Pública em decorrência do pagamento a maior de tributos ou erro na identificação da ocorrência do fato gerador.
Impedir o ressarcimento desses valores é desrespeitar a capacidade contributiva, o que se torna mais grave em se falando de IRPJ e CSLL, por serem tributos de caráter pessoal, os quais levam em consideração o poder econômico dos respectivos sujeitos passivos. O sistema de compensação visa, justamente, fazer com que os contribuintes não tenham uma carga tributária elevada a ponto de comprometer o próprio exercício da atividade econômica.
Ademais, no direito tributário vigora o Princípio da Reserva Legal, mediante o qual, apenas a lei em sentido estrito é instrumento apto para criar ou majorar tributos. O constituinte originário dispôs que determinadas matérias só podem ser reguladas por meio de lei complementar, entre essas hipóteses destaca-se os empréstimos compulsórios, previsto no art. 148 da CF/88. Ocorre que a União, por diversas vezes, utilizou a figura dos empréstimos compulsórios "travestidos" de impostos. Isso ocorre em razão daquele tributo demandar a obrigatoriedade de lei complementar para sua instituição, além de só poder ser criado nas hipóteses discriminadas no art. 148 da CF-88, quais sejam: 1 - guerra externa ou sua iminência; 2 – calamidade pública; 3 - investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional. Diante das dificuldades normativas para se instituir o empréstimo compulsório, a União já utilizou no passado limitações ao direito de compensar, como por exemplo, ao instituir a Lei nº 8981/1995, que limitava a compensação dos prejuízos fiscais acumulados em 30% (trinta por cento) [02].
Em razão das modificações impostas pelo artigo 29 da Medida Provisória nº 449/2008, as pessoas jurídicas sujeitas ao regime por estimativa que fazem o pagamento do IR e da CSLL mensalmente não poderão compensar os créditos mês a mês. A compensação só poderá ser utilizada no ajuste - quando se calcula o que foi pago por estimativa e quanto é realmente devido. Esse ajuste total do ano é calculado no dia 31 de dezembro e só é declarado em junho do ano seguinte, quando ela poderá, então, compensar os créditos. Nesta sistemática, resta evidente que a União está instituindo um empréstimo compulsório e não uma limitação do direito ao crédito, pois irá obrigar os sujeitos passivos a pagar tributos que deveriam ser compensados com seus respectivos créditos. Ou seja, o Poder Público está se apropriando temporariamente destes valores, para posteriormente restituí-los. Contudo, esta prática não foi realizada mediante Lei Complementar, mas sim através de Medida Provisória, o que é vedado.
Não obstante, a MP 449/08 impossibilitou as pessoas jurídicas sujeitas ao regime de pagamento mensal do IRPJ e da CSLL sobre a base de cálculo estimada a realizar compensações de seus créditos tributários com os respectivos débitos, violando os preceitos contidos no art. 150, III, alíneas "b" e "c" da CF-88. Estas disposições constitucionais, verdadeira garantia fundamental do contribuinte, são conhecidas como "Princípio da Anterioridade" ou "não surpresa". Teleologicamente, sua função é dar tempo hábil para que o sujeito passivo possa ter conhecimento da norma que instituiu ou majorou o tributo e, assim, venha a se planejar financeiramente para arcar com o novo ônus fiscal.
A MP 449/08 foi publicada no dia 04/12/08 e, de acordo com seu art. 66, ela passa a vigorar na mesma data da sua publicação. É importante ressaltar que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é assente ao reconhecer que limitações ao direito de compensação constituem gravame tributário, logo, devem respeitar a regra da anterioridade. [03]
Ademais, o art. 62, § 2º da CF é taxativo ao expor que Medida Provisória em matéria tributária, salvo as exceções (que não se apresentam aqui), só produzirão efeitos no exercício financeiro seguinte em que forem convertidas em lei. A MP 449/08, ainda está em tramitação, não podendo produzir efeitos quanto ao seu art. 29, em virtude da vedação quanto à compensação de tributos constituir a majoração da carga fiscal. Destarte, este dispositivo, caso em hipótese absurda fosse reconhecida sua legalidade, só poderia irradiar seus efeitos no exercício financeiro seguinte da lei que vier a regulá-lo (se a MP for convertida em lei, pois o Congresso Nacional pode vir a rejeitá-la).
No mesmo sentido, o Princípio da Irretroatividade a lei tributária não poderá atingir fatos ocorridos antes do início da sua vigência [04]. Essa regra de matiz constitucional também é consubstanciada pelo instituto do direito adquirido; segundo o qual, as situações prontas e acabadas pela norma anterior, incorporadas ao patrimônio jurídico do contribuinte, através do ato jurídico perfeito, não podem ser atingidas pela legislação posterior.
Desta forma, ainda que não se entenda como inconstitucional o art. 29 da MP 449/08, o que não se acredita, sua eficácia está restrita aos créditos constituídos após sua vigência não podendo alcançar créditos incorporados antes da data da sua publicação. Este entendimento está pacificado na Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, conforme os seguintes acórdãos: REsp 611604 / PE; RECURSO ESPECIAL 2003/0208338-4 / Ministra DENISE ARRUDA / PRIMEIRA TURMA / Data do Julgamento: 03/08/2006 / Data da Publicação/Fonte: DJ 28/08/2006 p. 217; AgRg no REsp 703715 / RS; AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 2004/0152569-1 / Ministro LUIZ FUX / PRIMEIRA TURMA / Data do Julgamento: 28/03/2006 / Data da Publicação/Fonte: DJ 10/04/2006 p. 138) (Grifos apostos.
O entendimento aqui exposto já foi objeto de apreciação pelo Poder Judiciário, tendo inclusive o Tribunal Regional Federal da 4ª Região analisado o tema e proferido liminar favorável ao contribuinte no sentido de determinar o recebimento e o processamento dos pedidos de compensação de créditos cujos recolhimentos foram efetuados antes do início da vigência da MP 449/08, com débitos de estimativa de IRPJ e CSLL.
CONCLUSÃO
A MP 449/09 foi editada no final do ano passado, em meio a grave crise econômica que assola as economias mundiais. O reflexo disso está diretamente relacionado com a queda de arrecadação tributária pela União, uma vez que com a retração da produção interna, decorrente da baixa do consumo a nível global, a tributação incidente sobre essas atividades econômicas encolheu na mesma proporção.
Para atenuar os efeitos da crise, é preciso oferecer elementos que baixem o custo da produção e incentivem o consumo de bens. Tais medidas têm como condão direto aumentar a respectiva arrecadação, constituindo caixa para o fisco. Em direção oposta, o governo federal, por meio do art. 29 da MP 449/09, está onerando a produção ao impedir a compensação de créditos devidos e legítimos, o que acaba por tornar mais tormentosas a situação do setor produtivo e, conseqüentemente, diminuir a obtenção de receitas tributárias.
De acordo com dados oficiais da Receita Federal do Brasil, a arrecadação tributária no início de 2009 é menor que a de 2008, no mesmo período, e está abaixo do previsto [05]. Neste panorama, é certo que o Governo Federal não pode aumentar a carga fiscal dos contribuintes, de forma ardilosa e desrespeitando direitos e garantias individuais, sob o pretexto de baixa na arrecadação. Deste modo, concluímos pela inconstitucionalidade do at. 29 da MP 449/08 em razão de todos os argumentos já expostos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DI PIETRO. Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 12ª ed. São Paulo: Atlas. 2000.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 25ª ed. São Paulo: Malheiros. 2004.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva. 2008.
Notas
- ADIN-MC 2.623.
- AgRg no Ag 967969 / SP - Ministro JOSÉ DELGADO / PRIMEIRA TURMA - Data do Julgamento: 08/04/2008 / Data da Publicação/Fonte: DJe 24/04/2008
- RE 232710 / SP - Relator(a) p/ Acórdão: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE / Órgão Julgador: Primeira Turma / Julgamento: 11/05/2004
- Art. 5º, inc. XXXVI C/C ART. 150, inc. III, "a"; CF-88
- http://www.receita.fazenda.gov.br/Publico/arre/2009/Analisemensaljan09.pdf