INTRODUÇÃO
Outra vez o legislador brasileiro, em um contexto de aumento inquestionável da violência, é chamado a promover alterações nas regras processuais penais, especialmente no vetusto Código de Processo Penal, lavrado no contexto antidemocrático da Era Vargas, em pleno Estado Novo.
O texto de 1941 parece chegar ao esgotamento, pois nem bem entrava em vigor a reforma pontual promovida pelas Leis 11.689/2008, 11.690/2008 e 11.719/2008 e já se anunciava a formação de uma comissão de notáveis juristas para confecção de um novo Código de Processo Penal [01], adequado aos novos tempos, especialmente aos 20 anos de nova ordem constitucional estável, inaugurada desde a redemocratização, nos anos 80, do século XX.
É nesse contexto que o presente trabalho propõe-se a analisar dois pontos das alterações legislativas, relacionados às disposições dos ritos procedimentais inovados. O primeiro, referente ao posicionamento do interrogatório após a colheita da prova oral. O segundo, relacionado ao momento de apresentação do rol de testemunhas pela defesa.
O exame tem como foco principal o favorecimento ou não de tais disposições ao efetivo implemento do contraditório e da ampla defesa, considerando a contemporânea teoria do processo penal, como sistema de garantias do acusado.
1.PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Segundo Marcellus Polastri Lima (2007), o princípio do contraditório significa que se deve proporcionar a uma parte a possibilidade de pronunciar-se sobre atos da parte contrária, sendo-lhe conferidos meios reais para que possa contrariá-los, especialmente à luz de um procedimento que garanta identidade de forças ou identidade de armas entre os contendores.
Para Vladimir Aras [02], em artigo intitulado "Princípios do Processo Penal", o princípio do contraditório implica o exercício da afirmação e da negação, tendo por corolários e por implicações os seguintes pontos, que assim especifica:
a) a igualdade das partes ou isonomia processual; b) a bilateralidade da audiência e a ciência bilateral dos atos processuais (audiatur et altera pars); c) o direito à ciência prévia e a tempo da acusação, podendo o acusado "dispor do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa"; d) o direito à ciência precisa e detalhada dessa acusação; e) direito à compreensão da acusação e do julgamento, ainda que por meio de tradutor ou intérprete; f) o direito à ciência dos fundamentos fático-jurídicos da acusação; g) a oportunidade de contrariar a acusação e de apresentar provas e fazer ouvir testemunhas;h) a liberdade processual de especificar suas provas e linha de defesa, escolher seu defensor e mesmo de fazer-se revel. (GN)
Destarte, não se pode falar em um processo penal autenticamente garantista, caso não seja proporcionada à defesa, em tempo e em modo adequados, a possibilidade de contrariar a prova produzida por indicação da parte acusadora.
Ressalte-se que não é só a possibilidade posta à disposição das partes, de participar ativamente da atividade probante, que possibilita o efetivo exercício do contraditório. O momento processual, em que tal abertura deve ocorrer, precisa contemplar tanto a necessidade de dar conhecimento às partes da existência de ação e de todos os atos do processo, mas, sobretudo, oferecer a possibilidade de as partes reagirem aos atos processuais que lhe sejam desfavoráveis. (JUNIOR, 2000)
2.PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA
Para a boa doutrina, a ampla defesa é a outra face do princípio do contraditório. Enquanto este último liga-se ao direito de participação, o princípio da ampla defesa impõe a realização efetiva desta participação. (OLIVEIRA, 2005)
No processo penal especialmente, tomando por premissa que o direito de defesa é ínsito ao princípio do contraditório, pode-se afirmar, com base na doutrina de Rangel Dinamarco, citada por Aury Lopes Jr. (2006), que verbis,
"Para participar é imprescindível ter a informação. A participação no processo se realiza por meio da reação, visto como resistência à pretensão jurídica (acusatória e não punitiva) articulada..."
Também é na seara do processo penal que o direito à ampla defesa desdobra-se em duas hipóteses de atividade processual formulada pela parte ré: a autodefesa e a defesa técnica. A primeira, constitui-se em faculdade a ser exercida pelo acusado, de apresentar seu discurso de resistência à pretensão punitiva estatal diretamente ao Estado-Juiz, tendo por ponto alto o interrogatório.
Já a exigência de que todo acusado deve ser assistido por advogado, ou seja, por defensor técnico, é conquista do devido processo legal, representando capítulo recente da história do processo penal contraditório [03].
Segundo Oliveira (2005), verbis, "a ampla defesa se realiza por meio da defesa técnica, da autodefesa, da defesa efetiva e, finalmente, por qualquer meio de prova hábil a demonstrar a inocência do acusado".
A independência de manifestações, seja da autodefesa, seja da defesa técnica, é possibilidade reconhecida na prática, podendo inclusive ser fonte de manifestações processuais antagônicas por cada uma delas, devendo tais entrechoques serem resolvidos da forma mais favorável ao status libertatis do acusado, conforme revela o entendimento que norteou a feitura do enunciado da súmula da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal de nº 705 [04].
3.PROCESSO COMO SISTEMA DE GARANTIAS
Um processo penal voltado a ser um sistema de garantias não deve desprezar a coexistência da prática do contraditório e da ampla defesa. Aquele contra quem se quer infligir penas da maior gravidade, quais sejam, penas corporais, não pode ser submetido a um sistema de defesa meramente formal e retórico, cabendo, desta forma, ao Estado facultar oportunidades de exercício, mediato e imediato, de articulações reais de resistência pelo réu à demanda processual penal.
Desde 1992, quando o Brasil incorporou ao ordenamento jurídico o Pacto de São José da Costa Rica, alguns consectários das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa foram evidenciados com clareza solar. Nesse sentido, importa colocar em destaque o art. 8º, número 2, alínea "d", da norma convencional acima já aludida, introjetada no ordenamento pátrio pelo Decreto nº678/1992.
d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;
Nessa esteira, o legislador ordinário deve buscar sempre a potencialização máxima da garantia da autodefesa no processo penal, dando ao acusado, dentro do possível, o devido direito de participar e de ser cientificado dos atos processuais, sem descuidar da irrenunciável atividade da defesa técnica, laborada por profissional do direito, devidamente inscrito nos quadrados da Ordem dos Advogados do Brasil [05].
Mas também aventar diretamente tese defensiva e, especialmente, justificar os fatos revelados na instrução processual, indubitavelmente constitui faculdade do réu da demanda penal, que só pode ser exercida se o mesmo tiver a palavra após toda a colheita da prova, e não no umbral da marcha do procedimento, como erroneamente estabeleceu o original texto do Código de Processo Penal de 1941.
À luz da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, é necessário destacar também duas previsões de garantias mínimas processuais contidas no art. 8º, número 2, alíneas "c" e "f", da aludida norma de Direito Internacional, hoje integrante do arcabouço jurídico brasileiro:
Art. 8º
(...)
2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
(...)
c) concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa;
(...)
f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos.
Ora, nessa trilha, não há alternativa a ser adotada estranha à necessidade de garantir-se ao acusado a faculdade de bloquear, pela devida produção de contraprova, as versões apresentadas pelas testemunhas que depõem por indicação do órgão acusador. Contudo, a possibilidade de tal bloqueio, para ser exercida em sua plenitude, carece tanto da faculdade processual do acusado arrolar mesmo número de depoentes que o acusador - o que implementa uma igualdade numérica entre os contendores, quanto da condição de puder arrolá-los após ter conhecimento do conteúdo dos depoimentos prestados pelas testemunhas indicadas pela parte autora da ação penal condenatória - o que implementa isonomia qualitativa entre os litigantes penais.
4.REFORMA PROCESSUAL PENAL
Segundo a lição da doutrina, o objetivo preconizado pela reforma processual penal de 2008 foi modernizar os procedimentos penais, sem desmerecer as garantias processuais do acusado.
Nesse sentido, segue escólio abaixo:
Assim, a reforma, com o intuito de modernizar o tratamento dos procedimentos, modificou-os, para trazer maior celeridade, assegurar defesa efetiva e, também, adaptá-lo ao sistema acusatório. Nesse sentido, consta expressamente da exposição de motivos do anteprojeto: "Para garantir a eficácia do procedimento e a ampla defesa, visando a favorecer a punibilidade concreta das infrações penais, mantendo-se todas as garantias do acusando previstas na Constituição Federal, leis e tratados celebrados pelo Brasil, estão sendo propostos procedimentos penais ágeis e objetivos, cuja dinâmica será facilmente notada pela sociedade".(MENDONÇA, 2008)
Como será examinado em tópico específico, o avanço representado pela ordinarização da possibilidade do acusado, em exercício de autodefesa, após a colheita da prova oral em audiência, pronunciar-se acerca do conteúdo probatório, veio a corrigir inversão indevida, já acima apontada, prevista no texto originário da norma processual penal.
Contudo, sem desmerecer os avanços que as leis reformadoras de 2008 trouxeram ao processo penal, sem dúvida alguma, a celeridade se sobrepôs ao sistema de garantias quando o legislador insistiu na visão míope acerca de algumas disposições da marcha procedimental, desprezando, como na hipótese em exame, a necessidade da defesa de arrolar suas testemunhas e declinar seu arsenal de provas depois de conhecer o que colhido contra o acusado, em fase judicial e contraditória.
5.INTERROGATÓRIO COMO ATO DERRADEIRO - AVANÇO
Em boa hora o legislador de 2008, tanto no procedimento comum, sumário e ordinário (art. 400 e 531, do Código de Processo Penal), quanto no procedimento do júri (art. 411 e 474, do Código de Processo Penal), fixou como derradeiro ato de audiência a colheita do interrogatório do réu.
Tal modificação enaltece os postulados da ampla defesa e do contraditório, acima referenciados, porquanto vem a corrigir a falha procedimental já aludida acima, decorrente do nosso Código de Processo Penal de 1941, de ideologia fascista e autoritária, que mais atende aos preceitos do sistema inquisitivo medieval.
As garantias da ampla defesa e do contraditório, previstas no art. 5º, inciso LV , da Constituição Federal, com as reformas implementada pelas Leis 11.689/2008 e 11.719/2008, passam, nesta parte da alteração legislativa, a ser mais efetivas, pois, doravante, o interrogatório tem assentamento, na audiência de instrução e julgamento, após a colheita da prova oral, sendo tal alteração elemento de induvidosa exclamação do devido exercício da autodefesa.
Nesse sentido, assim constatou a doutrina de Leandro Galluzzi dos Santos (2008), verbis:
É evidente que não se obriga o acusado a se manifestar, mas, para que ele possa verdadeiramente exercer o seu direito à autodefesa, era primordial que houvesse essa modificação legislativa, iniciada na Lei 9.099/1995, a fim de permitir que ele pudesse dar sua versão dos fatos ao final.
6.AUDIÊNCIA ÚNICA – RETROCESSO
Por outro lado, o formato inadequado com que o legislador tratou o momento processual para a defesa arrolar testemunhas sempre foi percebido pelos militantes e estudiosos do processo penal como um importante obstáculo ao efetivo exercício da ampla defesa.
Como é regra na par condicio do Processo Penal, a parte ré sempre é quem fala por último. Na normatização posta, decorrente do texto original do Código de Processo Penal de 1941, restou mitigada aludida regra, pois o réu tinha que arrolar suas testemunhas no tríduo legal destinado à confecção da defesa prévia, em momento anterior ao início da instrução processual.
Desta forma, o acusado era interrogado e, tomando por base apenas o inquérito policial ou as peças avulsas que aparelhavam a inicial acusatória, precisava o defensor arrolar testemunhas para contrapor o que seria futuramente falado pelas pessoas arroladas pela acusação.
Ora, aludida previsão causava indiscutível prejuízo ao acusado, especialmente quando as testemunhas chamadas pela parte autora da ação penal condenatória traziam inovações gravosas ao réu, não relatadas, por exemplo, na fase pré-processual, que agora necessitavam ser contraposta pela defesa.
A questão foi objeto de observação formulada pelo Ministro, então presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, quando do julgamento de medida liminar, no polêmico Mandado de Segurança nº 25.647-8 DF [06], que discutia a inversão da ordem da prova testemunhal, em procedimento administrativo para a cassação de mandato de parlamentar federal, envolvido no famoso "Escândalo do Mensalão".
Naquela oportunidade, assim se pronunciou aquele integrante da Suprema Corte Brasileira, verbis:
... o nosso Código de Processo Penal tem uma filiação fascista muito forte, e aquele problema de alegação do rol, da obrigação do réu, após o interrogatório, no tríduo da defesa prévia, apresentar o seu rol de testemunhas, determinava à defesa algumas situações muito específicas – e confesso a Vossa Excelência que fiz isso aprendendo com meu pai, velho advogado criminalista -, quando as testemunhas arroladas na denúncia tivessem sido ouvidas no inquérito policial, tinha-se uma noção da natureza do depoimento futuro dessas testemunhas; no entanto, quando a denúncia arrolava uma pessoa absolutamente desconhecida, que não tinha sido ouvida no processo, surgia um dilema para o advogado de defesa: que dirá essas testemunhas, e contraprova terei eu de fazer, já que ela vinha de surpresa. O que faziam os advogados experientes? Arrolavam uma testemunha para substituí-la ao final do depoimento daquela para conseguir contra-arrestar prova. ... no caso do Processo Penal Brasileiro, tem este vício, enquanto o eminente Representante do Ministério Público tem toda a possibilidade de fazer o seu rol, fica da defesa, naquele tríduo, antes de saber o que foi dito, ser representada. (GN)
Ora, do mesmo vício legislativo acima apontado padeceram a Lei dos Juizados Especiais [07] e a Lei Antidrogas [08].
A primeira assim disciplinou a matéria:
Art. 78. Oferecida a denúncia ou queixa, será reduzida a termo, entregando-se cópia ao acusado, que com ela ficará citado e imediatamente cientificado da designação de dia e hora para a audiência de instrução e julgamento, da qual também tomarão ciência o Ministério Público, o ofendido, o responsável civil e seus advogados.
§ 1º Se o acusado não estiver presente, será citado na forma dos arts. 66 e 68 desta Lei e cientificado da data da audiência de instrução e julgamento, devendo a ela trazer suas testemunhas ou apresentar requerimento para intimação, no mínimo cinco dias antes de sua realização.
(...)
Art. 81. Aberta a audiência, será dada a palavra ao defensor para responder à acusação, após o que o juiz receberá, ou não, a denúncia ou queixa; havendo recebimento, serão ouvidas a vítima e as testemunhas de acusação e defesa, interrogando-se a seguir o acusado, se presente, passando-se imediatamente aos debates orais e à prolação da sentença.
(GN)
Na mesma esteira, preconizou a mais moderna lei de combate ao uso e ao tráfico de substâncias entorpecentes:
Art. 55. Oferecida a denúncia, o juiz ordenará a notificação do acusado para oferecer defesa prévia, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.
§ 1º Na resposta, consistente em defesa preliminar e exceções, o acusado poderá argüir preliminares e invocar todas as razões de defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas que pretende produzir e, até o número de 5 (cinco), arrolar testemunhas.
(GN)
Tão infeliz, data venia, foi também o legislador de 2008, ao regrar no art. 400 (rito ordinário), no art. 531(rito sumário) e no art. 411 (rito do júri), todos do Código de Processo Penal, a realização de audiência de instrução e julgamento para a oitiva das testemunhas de acusação e de defesa, estas últimas previamente arroladas pelo réu, quando a bipartição do ato, em uma primeira parte, para a oitiva de testemunhas arroladas pela acusação, e uma segunda, parte para oitiva de testemunhas de defesa e para realização do interrogatório do acusado, patrocinaria, com maior precisão de forma, o devido resguardar às garantias do contraditório e a ampla defesa.
Embora seja constatado como verdadeira a assertiva dando conta de que a prática processual penal não mais suportava o rito procedimental penal desdobrado em contraproducente concerto de três atos (o primeiro, consistente no interrogatório do acusado, o segundo, realizado para a oitiva das testemunhas arroladas pela acusação e o terceiro, destinado a ouvir as testemunhas da defesa), a dose de celeridade implementada pelo legislador da reforma de 2008, com a devida licença, não propicia o bom exercício dos princípios caros ao Estado Democrático de Direito já exaustivamente referido neste trabalho.
Isso porque, o reformado Código de Processo Penal ainda prevê, como ato anterior à oitiva das testemunhas indicadas pela parte autora da ação penal condenatória, a formulação de rol de testemunhas pela defesa, que numa atitude de quase clarividência, precisa tentar deduzir possíveis desdobramentos de conteúdo dos depoimentos das pessoas apontadas para depor pela acusação e, assim, declinar em momento prematuro da marcha processual os nomes daqueles que pretende ouvir em juízo. Isso porque tanto no rito comum, quanto no rito do júri, a indicação dos nomes e qualificações das testemunhas de defesa deve ocorrer quando da resposta à peça acusatória, prevista nos artigos 396 (procedimento comum) e 406 (procedimento do júri), do Código de Processo Penal [09].