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Aspectos anticoncorrenciais dos incentivos fiscais estaduais: a análise do CADE

Agenda 01/12/2000 às 00:00

Diversos Estados da Federação vêm oferecendo incentivos para atrair investimentos privados em seus territórios. Tal fenômeno, apesar de conhecido por "guerra fiscal", consiste na concessão de incentivos fiscais e de incentivos financeiros, além de outros incentivos de natureza variada.

Os incentivos financeiros consistem na concessão de financiamentos realizados por meio de bancos estaduais, em geral bancos de investimentos, contando com recursos de fundos estaduais ou programas de desenvolvimento.

Os incentivos fiscais, objeto desse estudo, são aqueles de natureza tributária, consistindo, principalmente, na redução ou, até mesmo, isenção da cobrança do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços - ICMS, a ser cobrado das empresas estabelecidas nos Estados, conforme ressalta trabalho do IPEA/FUNDAP:

"Cria-se um fundo de incentivos, alimentado por recursos orçamentários e outras fontes usuais, que conceda financiamento para capital de giro. O montante do crédito é definido de forma a corresponder, grosso modo, ao montante esperado do recolhimento de ICMS da empresa. Quando é um empreendimento novo, é usual a devolução integral do imposto gerado. Quando se trata de ampliação, o crédito devolve o chamado ICMS incremental. Em terceiro lugar, há que garantir a necessária transferência dos recursos escolhidos via arrecadação para o fundo de incentivos".

Tais incentivos podem ser concedidos por meio de Lei Complementar ou através de Convênios interestaduais, celebrados e ratificados pelos Estados, que somente passam a ter eficácia após aprovação por Decreto Legislativo.[1]

Tanto os mecanismos clássicos tributários como os mecanismos financeiros de concessão de incentivos fiscais relacionados ao ICMS têm efeitos semelhantes em termos de benefícios para as empresas e de impacto sobre a concorrência e sobre o mercado.

Em atenção aos aspectos anticoncorrenciais dos incentivos fiscais, deve-se primeiramente colocar que a legislação brasileira, com fundamento no art. 6º do Código de Subsídios e Medidas Compensatórias do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade), hoje Organização Mundial do Comércio (OMC), conceitua "subsídios" como as várias modalidades de auxílio financeiro, fiscal e comercial oferecido pelo governo aos produtores e/ou exportadores, inserindo-se, portanto, os incentivos fiscais nesse conceito.

Com relação a este primeiro enfoque, devemos citar estudo realizado por Hartigan et al. (1994), da Universidade de Oklahoma, que com base na análise dos resultados da aplicação de Medidas antidumping e Compensatórias, concluiu que práticas comerciais subsidiadas por governos são mais perigosas aos países importadores do que o dumping propriamente dito. Com efeito, segundo o estudo, maior ênfase deve ser dada aos processos da OMC onde a participação de subsídios governamentais estão presentes, pois o potencial de dano material à indústria doméstica do país importador é maior do que via prática de dumping normal.

Os aspectos anticoncorrenciais da concessão de incentivos fiscais, já plenamente reconhecidos pelo direito internacional através da OMC, resultam de um raciocínio lógico e simples. A incidência de tributação sobre o valor de certo produto desloca para cima a curva da oferta a curto prazo na medida do valor do tributo, o que eleva o preço de mercado do produto, reduzindo o nível de produção total da indústria. Assim, analisando-se a questão por outro lado, percebe-se que a empresa beneficiada com um incentivo fiscal de um determinado Estado possuiria vantagem sobre suas demais concorrentes, uma vez que a curva de oferta seria deslocada para baixo em relação às demais. A concessão de incentivos fiscais, por conseguinte, influi na formação de preços no mercado, matéria intrinsecamente ligada à defesa da concorrência.

Apesar da falta de estudos a respeito do tema, a lógica do tratamento legislativo no caso de transações interestaduais dentro do Brasil tem sido a mesma que na legislação de comércio exterior. Assim como se reconhece internacionalmente que a concessão de um subsídio estatal por outro país pode justificar imposição de direitos compensatórios, também no que se refere à concessão de incentivos pelos Estado brasileiros, a legislação brasileira prevê, ao menos teoricamente, a possibilidade de negativa de crédito por parte do Estado de destino, relativo ao tributo não recolhido no Estado de origem em função de incentivo não aprovado nos termos da lei.

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Os incentivos fiscais estaduais já foram objeto de consulta ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE realizada pelo Pensamento Nacional das Bases Empresariais - PNBE, objetivando buscar uma manifestação acerca da nocividade, ou não, à livre concorrência, da prática da "guerra fiscal".

No caso, o CADE deveria analisar se a "guerra fiscal" poderia configurar infração à ordem econômica. A caracterização da infração contra a ordem econômica ocorre através da configuração do efeito, efetivo ou potencial, da conduta empresarial de acordo com o artigo 20 da Lei 8.884. A esse respeito nos ensina o Professor e Conselheiro João Bosco Leopoldino da Fonseca:

"Para caracterizar tais atos como infrações contra a ordem econômica, terá o julgador que verificar se eles são concretamente aptos a produzir qualquer dos efeitos, mesmo que estes, na vida econômica real, não sejam alcançados. E os efeitos previstos são os seguintes:

1.lesão da livre concorrência e da livre iniciativa;

2.formação de mercado relevante de bens ou serviços;

3.situação de lucros arbitrários;

4.exercício de posição dominante."[2]

Em resposta a essa consulta, o CADE considerou que o incentivo fiscal poderia configurar o inciso primeiro do artigo 20 da lei 8.884, podendo, assim, vir a ser considerado infração à ordem econômica:

"Art. 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:

I – limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa;"[3]

Seguindo este entendimento, o CADE se considerou competente à análise dos incentivos fiscais estaduais:

"Dado o vínculo mais do que demonstrado entre incentivos fiscais e concorrência (econômico e jurídico, no Brasil e no mundo), e dado ficar estabelecida a competência do CADE para abordar a matéria, nos termos legais, por exemplo como ora faz nesta Consulta, nos termos do artigo 7º da Lei de Defesa da Concorrência: "responder a consultas sobre matéria de sua competência" (inciso XVII) (estas na forma da Resolução CADE nº18), e "instruir o público sobre as formas de infração da ordem econômica" (inciso XVIII)."[4]

Sendo ente da administração pública competente, conforme os ditames legais, o CADE não pode se eximir do exercício de sua competência.

A competência do CADE é exercida através dos três papéis que lhe são atribuídos por lei: o educativo, o preventivo e o repressivo[5].

O papel educativo consiste na difusão da cultura da concorrência, que pode ser promovida através de palestras, seminários, intercâmbios, página na internet, fórum permanente da concorrência, dentro outros métodos.

O papel preventivo se dá por meio da análise de atos de concentração, como, por exemplo, fusões, aquisições, join ventures e alterações societárias.

O papel repressivo, por sua vez, realiza-se pela instauração de processos administrativos acerca da verificação de infrações à ordem econômica.

Como os incentivos fiscais estaduais não são atos de concentração, mas sim possíveis infrações contra a ordem econômica, cabe ao CADE apenas o exercício de duas de suas formas de atuação, a educativa e a repressiva.

A análise dos incentivos fiscais estaduais como infração à ordem econômica pressupõe a instauração de um processo administrativo regulado pela Lei 8.884, como o de qualquer outra infração.

Ocorre que, em se tratando de subsídios provenientes dos Estados brasileiros, questionamentos devem ser levantados a respeito da aplicabilidade dessa Lei, bem como das implicações que podem ser levantadas aos Estados.

O artigo 15 da Lei 8.884 define a aplicabilidade da Lei 8.884:

"Art.15. Esta Lei aplica-se às pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado, bem como a quaisquer associações de entidades de pessoas, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, mesmo que exerçam atividade sob regime de monopólio legal."[6]

Como se vê, esta lei é aplicável a toda e qualquer pessoa, seja ela física ou jurídica, de direito público ou privado.

Desse artigo, ao propósito específico desse trabalho, o que interessa são as pessoas jurídicas de direito público e mais propriamente, os entes da federação.

A esse respeito, existem dois entendimentos doutrinários que merecem ser destacados: O Primeiro, do ilustre Professor Fábio Ulhoa Coelho, considera que o artigo 15 não identifica especificamente o agente ativo da infração contra a ordem econômica, mas apenas se refere às pessoas às quais a Lei se aplica, considerando que as pessoas jurídicas de direito público não são possíveis agentes ativos de infração à ordem econômica:

"Assim, a referência às pessoas jurídicas de direito público não deve ser necessariamente entendida como a definição de um gênero de agente ativo de infração contra a ordem econômica, mas sim considerada no amplo universo das pessoas em relação às quais a lei se aplica, não necessariamente para submetê-las a sanções."[7]

Discordando deste entendimento, o Conselheiro João Bosco Leopoldino considera que o artigo 15 não somente faz referência às pessoas às quais a Lei se aplica, mas, também, coloca a pessoa jurídica de direito público como possível agente ativo da infração contra a ordem econômica:

"Tais infrações podem provir quer de pessoas físicas, quer de pessoas jurídicas, sejam elas de direito privado ou público, tenham-se constituído segundo as exigências legais, quer sejam sociedades meramente de fato."

Sob o ponto de vista do Professor Fábio Ulhoa, um processo administrativo do CADE não poderia ter o Estado como agente causador de uma infração da ordem econômica, não podendo, assim, o Estado ser parte desse processo. Sob o ponto de vista do Conselheiro João Bosco, por outro lado, não há óbices a um processo administrativo do CADE que tenha o Estado como agente causador de uma infração e, consequentemente, que o Estado seja parte.

De fato, a pessoa jurídica de direito público pode ser agente ativo de infração contra a ordem econômica, assim como, na análise em foco, o Estado é agente ativo da "Guerra Fiscal" que, através do incentivo fiscal do ICMS, pode afetar a concorrência e ser considerado como infração. Neste sentido, não se poderia acordar com o Professor Fábio Ulhoa, sendo mais consistente o posicionamento expresso pelo Conselheiro João Bosco Leopoldino.

Visto que a lei é perfeitamente aplicável e o Estado pode ser agente ativo de uma infração contra a ordem econômica, não há como se questionar a possibilidade de o Estado figurar como parte no processo administrativo do CADE.

A polêmica mais significante nesse caso, contudo, não se refere à aplicabilidade da Lei 8.884, mas sim ao teor de uma decisão de um processo administrativo do CADE que tivesse o Estado como parte.

Como se sabe, todos os entes públicos são constitucionalmente dotados de isonomia. Dessa forma, o CADE, como autarquia federal, não é dotado de poder hierárquico e, consequentemente, sancionador, sobre quaisquer desses entes, ou mesmo dos órgãos da Administração direta e autarquias. A esse respeito, registre-se a fala do Professor Fábio Ulhoa Coelho:

"Esse é o único entendimento possível, em face da isonomia constitucional dos entes públicos. O CADE, como autarquia federal, e a SDE, órgão do Ministério da Justiça, não têm poder hierárquico e sancionador sobre a União e seus desdobramentos de natureza pública (órgãos da Administração direta e autarquias); não têm igualmente ascendência hierárquica sobre os estados, o Distrito Federal, os Territórios e os Municípios."[8]

Trata-se de constatação importantíssima no caso em foco, pois já que limitada constitucionalmente qualquer sanção a ser imposta pelo CADE ao Estado, não haveria meios de coerção direta do CADE frente ao Estado.

Não é dado ao CADE poder sancionador sobre os Estados, mas, tão somente, como deixa claro o artigo 7º, X, a capacidade de solicitar as medidas necessárias ao cumprimento da Lei 8.884:

"Art. 7º Compete ao Plenário do CADE:

X – requisitar dos órgãos do Poder Executivo Federal e solicitar das autoridades dos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios as medidas necessárias ao cumprimento desta Lei;"[9]

Para fazer valer o interesse coletivo, restaria ainda ao CADE, utilizando de sua procuradoria, requerer medidas judiciais visando à cessação da infração, conforme deixa claro o artigo 10º, III, da Lei 8.884:

"Art. 10º. Junto ao CADE funcionará uma Procuradoria, com as seguintes atribuições:

(...)

III – requerer, com autorização do Plenário, medidas judiciais visan à cessação de infrações da ordem econômica;"[10]

Percebe-se, enfim, como conclusão a esse estudo, que a Lei brasileira é desprovida de instrumentos jurídico-administrativos antitrustes eficazes voltados aos aspectos anticompetitivos dos incentivos fiscais estaduais.

O problema da "guerra fiscal" é uma realidade, a reforma tributária, em estudo no Congresso Nacional, busca a federalização da legislação do ICMS, objetivando por fim ou, ao menos, diminuir a sua existência.

A instrumentalização da legislação antitruste a esse respeito, criaria um controle flexível, que alcançaria mudanças legislativas e de mercado, evitando-se, assim, a rigidez da fixação de preceitos legais, necessários, é verdade, mas que devem ser complementados, sob pena de se perderem no tempo.


NOTAS

1. A competência tributária é disciplinada pela Constituição Federal (arts. 145 a 152) e somente é outorgada às Pessoas Políticas de Direito Público, quais sejam, União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

2. FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Lei de Proteção da Concorrência – Comentários à Lei Antitruste.3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1999, página 89.

3. Revista de Direito Econômico nº30, legislação atualizada.

4. Resposta a consulta do PNBE sobre "Guerra Fiscal" que pode ser encontrada no site do CADE: www.mj.gov.br/cade

5. Tais papéis estão normatizados pela legislação antitruste: Repressivo (infrações da ordem econômica) Art. 31 (Recursos de ofício em averiguação preliminar), Art. 20 (Processos administrativos), Art. 52 e Resolução 19 (Recursos voluntários), Preventivo Art. 54 (Análise de atos de concentração) e Educativo Resolução 18 (Consultas).

6. Revista de Direito Econômico nº30, legislação atualizada.

7. COELHO, Fábio Ulhoa. Direito Antitruste Brasileiro – Comentário à Lei 8.884/94. 1ª ed., São Paulo: Saraiva, 1995, página 41.

8. COELHO, Fábio Ulhoa. Direito Antitruste Brasileiro – Comentário à Lei 8.884/94. 1ª ed., São Paulo: Saraiva, 1995, página 41.

9. Revista de Direito Econômico nº30, legislação atualizada.

10. Revista de Direito Econômico nº30, legislação atualizada.

Sobre o autor
Giovani Loss

advogado, membro do escritório Moura Tavares, Figueiredo, Moreira, Campos & Uchôa, em Belo Horizonte (MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOSS, Giovani. Aspectos anticoncorrenciais dos incentivos fiscais estaduais: a análise do CADE. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 48, 1 dez. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1307. Acesso em: 23 dez. 2024.

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