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O conteúdo jurídico do princípio do acesso à justiça.

Possíveis posturas definidoras e proposta

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Agenda 16/07/2009 às 00:00

RESUMO

Este artigo constitui uma introdução ao estudo do princípio do acesso à justiça, numa perspectiva crítica, dando conta da necessidade de construção de premissas elementares à conceituação do conteúdo jurídico dessa norma. Num primeiro momento, dar-se-á a apresentação das possíveis posturas definidoras do princípio; em seguida, far-se-á uma proposta de conceituação.

PALAVRAS-CHAVE

Direito Constitucional. Direitos Humanos. Princípios Jurídicos. Acesso à Justiça. Posturas definidoras. Proposta.


INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, houve uma verdadeira vulgarização da expressão "acesso à justiça". Nessa linha, tanto serviu ao discurso de combate ao excesso de formalismo, quanto àqueles que sustentam uma quase infindável panacéia de recursos. Daí a necessidade de tomar uma postura definidora do presente princípio, ao mesmo tempo, garantidora do direito ao acesso suficiente, eficiente e justo aos propósitos do Estado Democrático de Direito.

Nesse esforço, de forma sucinta, propor-se-á uma exclusão de termos dúbios e, ao longo do texto, será construída uma proposta de definição do princípio do acesso à justiça.

A incursão a outros ordenamentos jurídicos foi necessária, mas, em todos os casos, estritamente vinculada ao objeto e ao proveito do objeto principal desse artigo.

O tema está em constante construção e a discussão está aberta para todos os que queiram contribuir com a construção do conteúdo jurídico do princípio do acesso à justiça.


1. DAS posturas definidoras do princípio do acesso à justiça: vantagens, desvantagens e a proposta adotada pelo trabalho.

O acesso à justiça é um princípio metajurídico, que se destina a resguardar e fomentar a coerência entre pautas de comportamentos plamados pela Constituição de 1988 e a prática dos sujeitos sob o jugo da soberania nacional. Seu estudo deve se iniciar pela apresentação de certas características essenciais, permitindo uma visualização de seus contornos jurídicos.

O tema é de enorme relevância para a edificação de um estudo do Direito sobre bases consistentes e coerentes, sem despencar nos riscos de (des)entender o processo numa perspectiva meramente repetidora de dogmas e prestá-lo ao papel reducionista de amontoado de atos processuais, perdidos em filigranas.

Ressalte-se que o princípio do acesso à justiça pode ser examinado sob vários prismas. Os dois núcleos significativos da expressão acesso à justiça (acesso + Justiça) dão ensejo a especulações riquíssimas. Se, por um lado, pode-se discutir a justiça, de outro, tem-se a questão de saber o que vem a ser acessibilidade. Na primeira discussão – sobre justiça – a parte que se principia poderia tratar de várias indagações, dentre elas: o que é justiça e quais os critérios para estabelecer o que é justo. Mas, de longe, o alargamento da amplitude dos questionamentos não daria lugar a maiores certezas, pelo contrário. No segundo viés, a acessibilidade requer um complemento. Contudo, a acessibilidade é conceito presente em vários dispositivos constitucionais e infraconstitucionais. Aliás, é o tema mais recorrente no estudo do Direito, na perspectiva de cidadania. Acesso aos direitos fundamentais, como saúde [01], educação [02]- [03], previdência [04], cultura [05], meio ambiente, trabalho, cultura, desenvolvimento social e espiritual etc.

Daí indagações prévias são necessárias para a compreensão mínima da questão. A construção do princípio do acesso à justiça enseja o estudo sobre suas relações com o Estado democrático de direito e a soberania, levando a investigações em torno da fundamentação e exercício do poder estatal, bem como ao nível de amadurecimento das instituições, dentre elas, principalmente, a Corte Constitucional.

O valor jurídico e publicístico do acesso à justiça envolve várias discussões decorrentes do que ele é juridicamente, ou seja, qual sua natureza jurídica. Cai-se aqui na própria alocação no mundo das normas jurídicas.

A relevância é apontada no texto constitucional, seja na forma de cláusulas gerais, como ocorre na Constituição da Republica Federativa do Brasil, artigo 5º, inciso XXXV (previsão geral), artigo 7º, inciso XXIX (específico do O direito de ação do trabalhador), mas, também, em todas as normas que tratam de processo, procedimento, competência, organização e divisão judiciária. Ele exerce função operativa que lhe é ínsita dentro da realização do poder estatal. Soma-se a esta descrição do conteúdo do princípio do acesso à justiça os dispositivos que lhe dão finalidade, como o princípio da dignidade da pessoa humana, do valor social do trabalho, da livre iniciativa etc.

No estudo histórico do acesso à justiça como direito do homem a Declaração dos Direitos do Homem de 1948, em seu artigo 6º [06] é o documento mais repetido pelas Constituições posteriores ao incidente da Segunda Guerra Mundial.

Há, contudo, mesmo em sede da história do acesso aos tribunais, antecedentes importantes [07], como, na Inglaterra, o Bill of Rigth de 1689, fruto da Revolução Gloriosa, a declaração da Virgínia, em 1776, a declaração de Massachusetts, de 1780 e a declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1789.

Da mesma forma, pode-se verificar o fenômeno na Lei Fundamental da República Federativa da Alemanha, no Tratado de Maastrich, no Pacto de São José da Costa Rica, todos com referências explícitas ou implícitas ao princípio do acesso à justiça.

Para estudar o princípio do acesso à justiça deve-se, de logo, encará-lo como direito fundamental. A questão não tem escopo meramente acadêmico, já que o mais significativo avanço da doutrina constitucional hodierna é especificidade da hermenêutica jurídica aplicada à temática dos direitos fundamentais [08]. A decorrência imediata dessa classificação é sobre a interpretação e aplicação do princípio, uma vez que se faz mister que o sistema democrático concretize os valores fundamentais elegidos por ele, pois, afinal, a Constituição tem apenas uma "pretensão de eficácia" [09]. Isso tudo torna necessário erigir algumas observações sobre as características do Direito na Contemporaneidade e o papel da Hermenêutica Jurídica. Certamente, isso facilitará a compreensão da evolução do conteúdo do acesso à justiça.

Se definir um fenômeno é descrever os seus elementos essenciais, ou seja, aqueles sem os quais não se reconhece o que se define, deve-se somar a isso a observação dos nexos que se estabelecem entre eles.

Na verdade, existem várias posturas possíveis para definir algo. Pode-se dividi-las em três concepções básicas: subjetivas, objetivas e mistas.

Numa concepção subjetivista, o foco da definição é sobre os sujeitos. Ou seja, o acesso à justiça seria centrado sobre o prestador do serviço e o cliente da atividade prestada. Comumente, é definido por esse ângulo como acessibilidade ao Poder Judiciário pelos jurisdicionados de uma determinada ordem soberana.

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As concepções objetivistas baseiam-se no conteúdo. Disso, normalmente, define-se como acessibilidade à prestação da atividade jurisdicional.

Por fim, numa visão mista combinam-se os dois enfoques acima. A definição mais comum seria o acesso ao poder estatal, exercido pelo Poder Judiciário, prestado àqueles que dele necessitam, consistente na atividade de dirimir conflitos de interesses tutelados pela ordem jurídica de um determinado Estado. Ou como aponta Bulos [10]: "O principio da inafastabilidade do controle judicial se posta como uma liberdade pública subjetiva, genérica, cívica, abstrata e incondicionada, conferida às pessoas físicas e jurídicas, nacionais e estrangeiras, sem distinção ou retaliações de nenhuma espécie".

Das posturas concebidas as subjetivas são certamente as cientificamente mais frágeis. Não se pode basear o estudo de um princípio apenas nos sujeitos que o interpreta e aplica ou naqueles que são abrangidos por estas ações. Some-se ainda a insuficiência de cingir ao sujeito Poder Judiciário à prestação de justiça. Ele não é o único sujeito que interpreta e aplica a justiça. Na verdade, em situações normais, ele não exerce tal função. Simplifique-se em três argumentos: a) a interpretação e aplicação do Direito dão-se, normalmente, por todos os sujeitos de uma sociedade [11], de forma espontânea (independentemente de provocação) ou voluntária (mesmo se provocados, mas antes de medidas coercitivas); b) mesmo as situações de conflitos de interesses qualificados pela resistência de cumprimento não gera a intervenção necessária do Estado, havendo largo espaço para a atividade alternativa ao poder estatal; c) mesmo a atividade jurisdicional não é exclusiva do Poder Judiciário, como ocorre no julgamento do Presidente da República pelo Senado Federal, ou, como sustentam vários autores, na questão da natureza jurisdicional da arbitragem.

Contudo, as definições subjetivistas trazem como vantagem à construção do conteúdo jurídico do acesso à justiça um maior reforço da função teleológica do princípio (e do próprio Direito), voltado a servir de meio adequado de prestar àqueles que têm interesses juridicamente tutelados pela ordem jurídica um resultado satisfatório. Esse caráter teleológico firma-se na imposição de uma prestação do serviço básico e fundamental em moldes capazes de atender a quem o busca e dar-lhe uma resposta constitucionalmente adequada e efetiva. Em consectário, há um reforço do direito fundamental do cidadão e, por outro lado, ocorre uma preocupação com as garantais às instituições e aos membros dos órgãos prestadores de atividade pacificadora de conflitos de interesses.

As definições objetivistas apresentam-se mais satisfatórias que as subjetivistas. Ocorre nelas uma maior vinculação do conteúdo do acesso à justiça à sua função – como direito fundamental – de possibilitar a adequada pacificação dos conflitos de interesses. É enfatizada a instrumentalidade. Abre-se para a importância da estruturação institucional e elaboração de técnicas de resolução de conflitos.

São as concepções mistas as mais adequadas. Elas têm a vantagem de unir o caráter teleológico de tutela do direito fundamental ao sentido instrumental do acesso à justiça. Assim, o princípio do acesso á justiça é a norma jurídica de índole fundamental que serve aos sujeitos que têm interesses juridicamente tutelados pela ordem jurídica e, ao mesmo tempo, impõe o dever ao Estado de prestar tal serviço e fomentar as condições das pessoas, se assim quiserem, conseguirem por si sós, ou por terceiros, a resolução de seus conflitos.

A definição acima ilustra a classificação do acesso à justiça como direito fundamental, a proteção ao seu titular, o dever estatal de prestar o serviço e também de criar condições para facilitar a implementação de alternativas à prestação estatal.

Em suporte nesse quadro, o acesso à justiça pode, ainda que para efeitos meramente didáticos, ser apresentado em sentido estrito, amplo e integral. Em sentido estrito corresponde ao acesso ao Poder Judiciário. É bem comum reduzi-lo ainda mais e igualá-lo ao próprio direito de ação. Contudo, o problema do sentido estrito é duplo. Seja pela limitação ao Poder Judiciário, como exposto quando se tratou das definições subjetivistas, seja ainda pelo reducionismo a apenas uma das facetas do direito fundamental de acesso à justiça, ou seja, pelo simploriedade de igualá-lo ao exercício do direito subjetivo, constitucionalmente assegurado, de ingressar com demanda em juízo. Nesta visão, seria um retrocesso do estudo do Direito Processual. Pelo sentido amplo (ou geral) passa a corresponder à própria concretização do ideal de justiça [12]. É, de logo, critério mais satisfatório do que o outro já exposto. Entretanto, cai-se indubitavelmente no problema do que é justiça.

O vocábulo "justiça" é plurívoco. Sua origem e significados são tocados desde Platão, passando pelo cristianismo com destaque à idéia de justiça social. Aliás, com nos ensina Hans Kelsen [13]:

De todo o grande contingente daqueles que – desde que o ser humano adquiriu a capacidade de pensar – se ocuparam da questão da justiça, duas cabeças alçam-se muito acima das demais. A primeira, cingida do glorioso esplendor da especulação filosófica; outra, da coroa de espinhos da crença religiosa. Tanto quanto o divino Salvador, Jesus de Nazaré, apenas o filósofo de Atenas, o ‘divino’ Platão, lutou pela justiça. Aquele, mais ainda com sua vida do que com sua doutrina; este, mais com sua doutrina do que com sua vida. Somente os diálogos de Platão revelam-se tão completamente impregnados do pensamento na justiça quanto o está a pregação de Jesus. Se a questão da justiça constitui o problema central de toda teoria e prática social, então o pensamento europeu atual, em uma de suas esferas mais importantes, apresenta-se fundamentalmente marcado pela maneira como o filósofo grego e o profeta judeu colocaram essa questão e a responderam. Se é que nos cabe esperar encontrar uma resposta para ela, para a questão da justiça absoluta, haver-se-á de encontrá-la em um ou no outro – ou, do contrário, tal questão será inteiramente irrespondível. E isso porque inexiste, e decerto nem pode existir, pensamento mais profundo e querer mais sagrado voltados para a solução do enigma da justiça.

Dessa forma, não parece ser o melhor caminho ater-se à discussão do que é justiça. A realidade é que não há consenso sobre um conceito de justiça, nem poderia tê-lo. Sequer se pode propor uma aproximação entre Direito e justiça [14]. Isso ofenderia à própria realidade.

Tanto o sentido estrito, por ser a menor do que o complexo do acesso à justiça, quanto o sentido geral, por sua imprecisão idealizante, carecem de serem superados por uma visão mais completa do fenômeno acesso á justiça. Aliás, ajuda tal tarefa a busca no direito comparado pela definição do princípio do acesso à justiça. Como, por certo, parece ter feito Francisco Barros Dias [15], ao conceituar o acesso à justiça como:

Um processo justo, o acesso ao devido processo legal, a uma Justiça imparcial; a uma Justiça igual, contraditória, dialética, cooperatória, que ponha à disposição das partes todos os instrumentos e os meios necessários que lhes possibilitem, concretamente, sustentarem suas razões, produzirem suas provas, influírem sobre a formação do convencimento do Juiz.

Não é à toa a semelhança com o artigo 24 [16] da Constituição espanhola, sob o designativo de tutela judicial efetiva:

1. Todas as pessoas têm direito a obter tutela efetiva dos juízes e tribunais no exercício de seus direitos e interesses legítimos, sem que, em nenhum caso, possam produzir-se situações em que alguém fique sem defesa. 2. Também, que todos têm direito a Juiz ordinário predeterminado pela lei, à defesa e à assistência de advogado, a serem informados da acusação formulada contra eles, a um processo público sem dilações indevidas e com todas as garantias, de utilizarem os meios de prova pertinentes para sua defesa, de não declarar contra si mesmos, de não se confessarem culpados e à presunção de inocência. A lei regulará os casos em que, por razão de parentesco ou segredo profissional, não se estará obrigado a declarar sobre fatos presumidos delituosos.

Ainda nesse esforço de buscar no direito comparado a definição mais útil do princípio do acesso à justiça, o art. 19 [17], n. IV, da Constituição Federal da Alemanha preocupa-se em defini-lo [18].

Para a compreensão total do princípio do acesso à justiça tem-se que considerá-lo da forma mais abrangente possível. Nasce então o sentido integral do princípio do acesso à justiça. Como fez Antônio Herman Benjamin [19]:

Seria, então, o próprio ‘acesso ao Direito, vale dizer, a uma ordem jurídica justa (= inimiga dos desequilíbrios e destituída de presunção de igualdade), conhecida (= social e individualmente reconhecida) e implementável (= efetiva), contemplando e combinando, a um só tempo, um rol apropriado de direitos, acesso aos tribunais, acesso aos mecanismos alternativos (principalmente os preventivos), estando os sujeitos titulares plenamente conscientes de seus direitos e habilitados, material e psicologicamente, a exercê-los, mediante superação das barreiras objetivas e subjetivas (...) e, nessa última acepção dilatada, que acesso à justiça significa acesso ao poder.

Ou, como complementa Carlos Henrique Bezerra Leite [20], é nesse sentido que o "acesso à justiça assume caráter mais consentâneo, não apenas com a teoria dos direitos fundamentais, mas, também, com os escopos jurídicos, políticos e sociais do processo".

Observe-se somente o cuidado quanto à distinção de Direito e ordem jurídica justa, conforme fez Kazuo Watanabe [21]:

A ordem jurídico-positiva (Constituição e leis ordinárias) e o lavor dos processualistas modernos têm posto em destaque uma série de princípios e garantias que, somados e interpretados harmoniosamente, constituem o traçado do caminho que conduz as partes à ordem jurídica justa. O acesso à justiça é, pois, a idéia central a que converge toda a oferta constitucional e legal desses princípios e garantias. Assim, (a) oferece-se a mais ampla admissão de pessoas e causas ao processo (universalidade da jurisdição), depois (b) garante-se a todas elas (no cível e no criminal) a observância das regras que consubstanciam o devido processo legal, para que (c) possam participar intensamente da formação do convencimento do juiz que irá julgar a causa (princípio do contraditório), podendo exigir dele a (d) efetividade de uma participação em diálogo -, tudo com vistas a preparar uma solução que seja justa, seja capaz de eliminar todo resíduo de insatisfação. Eis a dinâmica dos princípios e garantias do processo, na sua interação teleológica apontada para a pacificação com justiça.

Ante o exposto, a mais útil e adequada definição para o princípio do acesso à justiça é aquela que o considere sobre a concepção mista e, buscando atender toda a sua amplitude no Estado democrático de Direito, expresse-se no sentido integral, observada lição acima exarada sobre o que vem a ser uma ordem jurídica justa.


2. Problemas terminológicos: os vários designativos e a justificativa da escolha do trabalho.

A utilização da expressão "acesso à justiça" no título da dissertação já antecipa a opção na seara terminológica. Contudo, isso não torna prescindível certos esclarecimentos, mesmo ligeiros e circunstanciais sobre tal escolha.

A denominação acesso à justiça tornou-se dominante no plano atual dos estudos jurídicos. Numa primeira vista, parece estar consagrada na doutrina, jurisprudência e também nos inúmeros diplomas normativos sobre a matéria.

Contudo, tanto na doutrina, quanto no direito positivo (nacional ou internacional), utilizam-se diversas outras expressões, tais como "acesso ao Judiciário", "acesso à jurisdição", "inafastabilidade do controle jurisdicional", "direito de ação", "direito à prestação da tutela jurisdicional", "prestação da tutela dos direitos", "acesso à ordem jurídica justa", apenas para referir-se a algumas mais conhecidas.

A primeira menção direta a um epíteto dessa natureza ocorreu com a Constituição Federal de 1946. O princípio da inafastabilidade surgiu no Brasil na Constituição de 1946 para suprir lacunas incontornáveis no cenário nacional no aspecto legislativo. Tentou-se atacar a famigerada questão política, tão cotidiana na prática daqueles dias, mas imune pelo texto constitucional ao controle constitucional, embora, no plano doutrinário, Rui Barbosa discutisse o assunto há décadas.

Nesse quadro, a heterogeneidade funda-se em três pontos: o primeiro, por descaso na aplicação da expressão; outro, na ausência de consenso na esfera conceitual e terminológica; e, por fim, nos diferentes momentos históricos.

Exsurge, portanto, a necessidade de construir o significado e conteúdo do termo utilizado. Ilustrativamente, somente após a Emenda Constitucional n. 45, de 2004 é que a Constituição utilizou-se da expressão "acesso à justiça", mais especificamente nos § 3º, do art. 107, § 3º [22], do art. 115, § 2º, do art. 125, § 6º, no tratamento dos Tribunais Regionais Federais e do Trabalho, além dos Tribunais de Justiça, com sua utilização de cunho genérico para expressar a complexidade desse conceito.

Assim cumpre desvelar ser tal designação um gênero que engloba igualmente as diferentes funções exercidas com a finalidade de pacificar conflitos de interesses, de acordo com parâmetros desenvolvidos pela doutrina iniciada na segunda metade do século XIX, incrementada e burilada, principalmente e em maior intensidade, após a Segunda Guerra Mundial, pelo novo direito constitucional e processual, recepcionados pela Constituição de 1988, mormente o direito de defesa, os direitos de cunho prestacionais, bem como todos os direitos-garantia e as garantias institucionais.

O uso do epíteto "acesso à justiça" pelo constituinte reformador brasileiro é fato de sua inspiração no sentido que esta expressão ganhou nos últimos anos nos documentos internacionais, assimilando o discurso de cunho garantista da concretude constitucional.

Além desse forte argumento ligado ao direito positivo [a adoção pela Constituição], o qual por si só já bastaria para justificar a opção terminológica do presente trabalho, a moderna doutrina constitucional, ressalvadas algumas exceções, vem rechaçando progressivamente a utilização de vários outros termos, por se apresentarem anacrônicos com a natureza de direito fundamental deste fenômeno dento de um Estado democrático de Direito, até mesmo a nível internacional. Além de revelarem, com maior ou menor intensidade, uma flagrante insuficiência no que concerne às suas abrangências, visto que atrelados apenas a prismas específicos do gênero "acesso à justiça".

Sobre o designativo acesso ao Poder Judiciário reafirme-se o dito sobre as definições subjetivistas mais no início desse trabalho. O mesmo se diga sobre acesso à jurisdição, inafastabilidade da jurisdição, inafastabilidade do controle jurisdicional e direito de ação, todas carecem das limitações das definições objetivistas. Neste particular, não há dúvidas de que o acesso ao Judiciário, de certa forma, é também sempre acesso à justiça, no sentido de que a noção de justiça é mais larga e não se circunscreve ao exercício da função jurisdicional, nem ao titular de uma estrutura organizacional denominada "Poder Judiciário" ou, como insistem certos dispositivos da Constituição, "Justiças".

Em face destas constatações, as expressões "acesso à justiça" e "acesso ao Judiciário" (ou similares), em que pese sua habitual utilização como sinônimas, reportam-se a significados distintos. No mínimo, para os que preferem o termo "acesso ao Poder Judiciário", há que referir – sob pena de correr-se risco de gerar uma série de equívocos – se ele está sendo analisado pelo prisma do direito fundamental de receber a tutela jurisdicional adequada e, jamais, somente na acepção do acesso àquela instituição estatal. Reconhecer a diferença, contudo, não significa desconsiderar a íntima relação entre o "acesso à justiça" e o "acesso às Justiças" [23], uma vez que, ao final das contas, estabelecido o conflito e relutantes as partes em solvê-lo em sede extraprocessual, em regra, haverá a possibilidade de resolução pela via jurisdicional.

Outra é a conclusão quanto à utilização da designação acesso à ordem jurídica justa. Ela detém muitas vantagens, dentre elas, objetivar o conteúdo a qual se dá acesso e evitar especulações sobre o termo justiça. No mesmo sentido, deve-se privilegiar o acesso à tutela dos direitos, como acesso ao resultado jurídico sobre o direito material buscado.

Entretanto, ainda assim, mesmo do ponto de vista teórico, deve-se preservar o epíteto acesso à justiça. É que ele tem carga histórica amplíssima, principalmente dentro do movimento de acesso à justiça. Além de estar consagrado na experiência normativa, doutrinária e jurisprudencial desde os meados do século XX.

Em qualquer caso, outra observação é que será de grande densidade ideológica dentro do Estado democrático de Direito, a utilização do termo acesso. Acessibilidade é o tema mais recorrente no estudo do Direito, como já foi dito. O termo dá idéia de transitividade, participação, pluralidade devendo ser privilegiado numa ordem tendente a ser democrática.

Fixadas e justificadas, tais premissas, por todo o exposto, o epíteto acesso à justiça é o escolhido no transcorrer do trabalho.

Sobre o autor
Antonio Gleydson Gadelha de Moura

Professor de Direito Constitucional e Processual. Professor Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOURA, Antonio Gleydson Gadelha. O conteúdo jurídico do princípio do acesso à justiça.: Possíveis posturas definidoras e proposta. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2206, 16 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13161. Acesso em: 17 nov. 2024.

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