Cuida o presente artigo de análise acerca da possibilidade de efetuar licitação para a escolha de instituição financeira administradora dos depósitos relativos à folha de pagamento de servidores públicos (lato sensu).
Utilizamos como base para essa análise a iniciativa do Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região,1 que deu por encargo ao Banco Bradesco S.A., via licitação, a contratação de empreiteira para a realização da obra de construção da sede do Tribunal, e ao Regional coube a seguinte contrapartida: assegurar ao banco contratado, em caráter de exclusividade, pelo prazo de 20 anos, a instalação e funcionamento de agência bancária no prédio a ser construído, com área de 400m2; garantir à instituição bancária a utilização de 20 vagas de garagem no referido imóvel pelo prazo de 20 anos; transferir para o Bradesco, pelo prazo de 20 anos, a folha mensal dos magistrados e dos servidores nas localidades que estão ou venham a ser instaladas as Varas Trabalhistas sob a jurisdição do TRT 18ª Região; manter em caráter de exclusividade a folha de pagamento dos futuros juízes e servidores nas agências da mencionada instituição bancária, nos lugares que estão ou venham a ser instaladas novas Varas Trabalhistas; manter depósitos dos valores recebidos para quitação de precatórios e outros convênios no importe aproximado de R$ 2.000.000,00; conceder exclusividade para consignação de empréstimos em folha de pagamento dos magistrados e servidores, desde que respeitadas as taxas aplicáveis ao mercado; disponibilizar área de 26m2 na sede atual do TRT 18ª Região para instalação provisória de agência do Bradesco.
O fato é que a licitação feita pelo TRT 18ª Região foi objeto de inúmeros questionamentos, tanto na esfera administrativa quanto na judicial, tendo sido nessa última declarada a nulidade do procedimento licitatório, e naquela a repercussão foi o sobrestamento do exame das contas desse Tribunal por parte do TCU, até o julgamento definitivo da Tomada de Contas que envolve esse certame licitatório.
É importante ressaltar que as controvérsias relativas a essa licitação do TRT 18ª Região nem de longe atingem a parte correspondente à licitação da folha de pagamento dos servidores, estando centradas em duas questões: a uma, na discussão sobre a existência de amparo legal do contrato de concessão de obra pública e, a duas, na obrigatoriedade de manutenção de depósito dos precatórios junto ao banco contratado. Passa, pois, incólume a parte da licitação relativa à folha de pagamento.
Como se constata, a experiência do TRT 18ª Região não pode servir como um referencial pleno, entretanto nos traz algo importante, pois não há como negar que a licitação da folha de pagamento é uma iniciativa louvável e constitui uma tendência tanto no setor privado (licitações já realizadas: Votorantim, Tigre, Marco Polo, Boticário, Sadia, Colgate, Goodyear, Philip Morris) quanto no público (Prefeitura de São Paulo, Prefeitura do Rio de Janeiro, Alerj).
Com efeito, a licitação da folha de pagamento empresta maior transparência ao ato de escolha da instituição bancária, implicando, ainda, maiores receitas para o Erário e benefícios para o órgão público beneficiado, como veremos adiante.
Verdadeiramente, inexiste disposição normativa que determine que os depósitos salariais dos servidores sejam feitos em instituição financeira específica, bem como não há empecilho legal para que a Administração fixe uma ou algumas instituições em que devam ser feitos tais depósitos2 visando ao interesse público.
Com efeito, "os recursos existentes para o pagamento de agentes públicos" não integram a disponibilidade de caixa, não sendo esses recursos abrangidos pelo § 3º do art. 164 da CRFB/88, conforme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ipsis verbis:
É que, disponibilidade de caixa não se confunde com depósito bancário de salário, vencimento ou remuneração de servidor público, sendo certo que, enquanto a disponibilidade de caixa se traduz nos valores pecuniários de propriedade do ente da federação, os aludidos depósitos constituem autênticos pagamentos de despesas, conforme previsto no art. 13 da Lei 4.320/64.
Como se observa, as disponibilidades de caixa é que se encontram disciplinadas pelo art. 164, § 3º da Constituição Federal, que nada dispõe sobre a natureza jurídica, se pública ou não, da instituição financeira em que as despesas estatais, dentre elas a de custeio com pessoal, deverão ser realizadas.
Destarte, nada obsta que o Estado desloque de sua disponibilidade de caixa, depositada em instituição oficial, ressalvados os casos previstos em lei, valores para instituição financeira privada com o fim de satisfazer despesas com o seu pessoal, como ocorrido no caso dos autos, desmerecendo reforma, portanto, o acórdão impugnado, vez que proferido na mesma linha desse entendimento. (STF, Ag.Reg na Reclamação nº 3.872-6/DF, Rel. Min. Carlos Velloso.) (Grifamos.)
Sendo assim, resta definir como seria feita a seleção da instituição financeira pela Administração, no caso de se optar por não deixar a critério exclusivo do beneficiário dos proventos tal decisão. É fato que, em vista dos princípios da impessoalidade, moralidade e isonomia, é vedado ao administrador público escolher, de forma subjetiva, o particular a ser contratado, principalmente porque este irá auferir benefícios em decorrência dessa escolha.
É certa, também, a natureza contratual do ajuste em questão e a conseqüente aplicação obrigatória dos ditames da Lei nº 8.666/93, já que se pretende estabelecer um acordo de vontades com obrigações recíprocas entre a Administração Pública e o particular, enquadrando-se perfeitamente na definição do art. 2º, parágrafo único, daquele Estatuto.
Nem se diga, por outro lado, que tal avença poderia ser considerada um convênio e não contrato, pois para a formalização daquele exige-se o interesse comum entre os partícipes, o que não se vislumbra no caso, uma vez que o suposto interesse do banco contratado consistiria precipuamente nos lucros financeiros advindos da administração das contas-salário dos servidores, o que de forma alguma se compatibiliza com o interesse público.
Por esses motivos, entendemos que o procedimento licitatório é, por regra, obrigatório para a seleção da instituição financeira, o qual recomendamos seja sempre implementado, principalmente pelos benefícios que podem advir para a Administração Pública e, em última análise, para toda a coletividade.
No nosso sentir, a licitação poderia ser desenvolvida na modalidade concorrência, do tipo maior oferta. Desta poderiam participar instituições financeiras públicas ou privadas, já que não cabe conferir qualquer privilégio aos bancos oficiais, em face dos preceitos do art. 173 da CRFB/88.
O critério de julgamento poderia ser a maior oferta percentual sobre o valor total mensal depositado na instituição financeira, de forma a conferir objetividade ao julgamento. Sagrar-se-ia vencedora aquela que, portanto, oferecesse em favor do órgão público o maior percentual incidente sobre o total da folha de pagamento.
Havendo disponibilidade de espaço para instalação de agência bancária privada no prédio do órgão, sugerimos, ainda, para tornar mais atrativa a competição, seja ofertada tal cessão de uso ao primeiro colocado na licitação, facilitando o acesso dos servidores aos serviços bancários correlatos.
Há ainda a opção do modelo de licitação recentemente adotado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, isto é, pregão presencial do tipo maior oferta, com estipulação de valor inicial mínimo a ser ofertado pelos proponentes, calcado na pirâmide salarial dos servidores. Esse valor inicial mínimo, no caso da Prefeitura do Rio, foi de R$ 150.000.000,00, sendo que havia ainda, na licitação, previsão de instalação de PABs de área mínima de 20m2 e caixas eletrônicos.
A regra tem sido o retorno entre R$ 1.500 e R$ 2.500,00 per capita para os contratantes, sendo que as variações são explicadas principalmente pela composição da pirâmide salarial dos servidores.
Vale trazer a lume os ditames das recentes Resoluções do Conselho Monetário Nacional (CMN) nºs 3.402, de 06.09.2006, e 3.424, de 21.12.2006, que interferem no panorama fático aqui estampado, e alteram não apenas as condições das licitações, mas também as expectativas de retorno por parte dos órgãos públicos.
Com efeito, a Resolução nº 3.402/06, ao favorecer a liberdade de movimentação de recursos isenta de custos aos beneficiários, e tornar obrigatória a utilização das contas-salário na prestação de serviços de pagamento de salários e similares, coloca em questão tanto a manutenção do interesse das instituições financeiras em participar das licitações como as projeções de retorno para os órgãos públicos.
A Resolução nº 3.424/06, contudo, altera essas condições iniciais para resguardar os efeitos dos contratos firmados antes da vigência da Resolução nº 3.402/06.
Dessa maneira, os dispositivos da Resolução nº 3.402/06 aplicar-se-ão a partir de 01.01.2012 aos servidores e empregados públicos, na condição de que os contratos tenham estabelecido a vedação de cobrança de tarifas especificadas. Assim, mantém-se a livre negociação entre instituições bancárias e órgãos/entidades públicas, desde que garantidas as isenções arroladas nas alíneas do inc. II do art. 6º da Resolução nº 3.424/06, verbis:
Art. 6º O disposto na Resolução 3.402, de 2006, não se aplica à prestação de serviços de pagamento:
I - (...)
II - até 31 de dezembro de 2011, a servidores e empregados públicos, cujos contratos sejam firmados em decorrência de procedimento realizado pelo Poder Público nos termos da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, e estabeleçam vedação à cobrança de tarifas dos beneficiários para, no mínimo, os seguintes serviços:
a) transferência, total ou parcial, dos créditos para outras instituições;
b) saques, totais ou parciais, dos créditos;
c) fornecimento de cartão magnético e de talonário de cheques para movimentação dos créditos. (Grifamos.)
Contra tal dispositivo, entretanto, foi impetrado mandado de segurança,3 rejeitado, sem julgamento do mérito, pelo Superior Tribunal de Justiça, o que não obsta uma possível discussão futura sobre a matéria em via própria.
Todas essas circunstâncias devem, pois, ser levadas em consideração quando da elaboração dos instrumentos norteadores da licitação, inclusive estimativa de preços pertinente, além das demais regras operacionais que integram as normas do CMN.
No que tange à possibilidade ou não desses créditos representados pelo percentual da folha de pagamento ou oferta serem revertidos diretamente para o órgão público, por meio de recursos financeiros propriamente ditos, trazemos a lume o fato de que a Administração não pode se descurar do princípio orçamentário geral e substancial da Unidade de Caixa, que dispõe que toda e qualquer receita extra-orçamentária do órgão público deve, necessariamente, ser recolhida à conta Tesouro, o que está inclusive, na esfera da União, regulamentado pelo Decreto nº 93.872, de 23 de dezembro de 1986, que "dispõe sobre a unificação dos recursos de caixa do Tesouro Nacional, atualiza e consolida a legislação pertinente e dá outras providências".
O que foi dito acima não afasta, por si só, a possibilidade de que a área financeira e orçamentária do órgão público licitante venha a programar o retorno junto ao Poder Executivo desses recursos recolhidos ao Tesouro, o que deve ser feito por meio de uma negociação.
Outro caminho para utilização dos recursos a serem auferidos com a licitação é a realização de certames subseqüentes, durante a vigência do contrato em questão, para Registro de Preços de bens/serviços utilizados pelo órgão público licitante, cujos pagamentos seriam, então, realizados diretamente pela instituição financeira contratada, no limite correspondente ao respectivo percentual ou valor ofertado, o que se faz, mutatis mutandis, com espeque na inteligência maior do Acórdão nº 277/2003 - Plenário da Egrégia Corte de Contas da União, que considerou regular adquirir um bem novo com oferecimento de parte do pagamento com bem usado, bem como com base no Acórdão nº 1.130/2004 - Plenário - TCU, do qual extraímos o fragmento abaixo:
No processo em exame, além da hipótese aventada de sistematização, em face da conveniência de o TRT 2ª Região concentrar todos os depósitos no Banco do Brasil, verifica-se a possibilidade concreta e material de ganhos decorrentes da reciprocidade estabelecida pelo contrato firmado, tendo em vista que os depósitos que seriam feitos naturalmente em qualquer estabelecimento de crédito permitido pelo art. 666 do CPC, sem nenhum incremento para o TRT, acabarão por assegurar a construção da creche e o fornecimento de mobiliário e dos equipamentos de informática, sem ônus para o órgão contratante. (Grifamos.)
No que toca ao prazo de vigência do contrato, por não acarretar a licitação da folha de pagamento qualquer dispêndio de recursos públicos em favor dos bancos, entendemos inaplicável o art. 57 da Lei nº 8.666/93, norma de cunho orçamentário, ou seja, que pretende evitar que sejam assumidas despesas pela Administração sem a previsão orçamentária correspondente. De todo modo, prudente não estabelecer prazo de vigência contratual superior a cinco anos, analogamente ao que dispõe o inc. II do artigo citado, de forma a evitar a perpetuação do contrato em detrimento do princípio básico da licitação.
Por tudo o que foi até aqui dito, vê-se, claramente, que a licitação da folha de pagamento dos servidores públicos pode e deve ser realizada – preferencialmente na modalidade concorrência, do tipo maior oferta – de modo a selecionar a instituição financeira por meio da qual serão efetivados os créditos relativos aos pagamentos dos servidores públicos.
Notas
1Informações extraídas de diversos documentos disponíveis na internet, entre os quais: clipping eletrônico da Assessoria de Comunicação Social do TCE/SC e sítio eletrônico do Tribunal Regional da 1ª Região (AI N.2005.01.00.013780-2/GO).
2Ver parecer MP/CONJUR/DB nº 0328, 02.09.2002. Disponível em: <http://aplicativos.planejamento.gov.br/conlegis.nsf/93cef5ff1510fd7783256bb4004eb8da/b0530f746f8e692e03256fe900423c73/Conteudo/M2/0328-2.9-2002.rtf?OpenElement>.
3 STJ, MS nº 12700.